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Quarta-feira, Março 27, 2024

Queda do Afeganistão ou do Ocidente?

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

A derrocada do Afeganistão ultrapassa em muito a derrocada do actual inquilino da Casa Branca ou dos EUA, é a derrocada do sistema de valores do que consideramos o ‘Ocidente’.

  1. Dar o ouro ao bandido

Não tenho a pretensão de fazer aqui um balanço cabal das razões do desfecho da tragédia afegã, mesmo se o pressenti quase permanentemente ao longo desta última década em que trabalhei sobre o país.

Se há coisa que aprendi com o Iraque, é que sem mergulhar na realidade humana que queremos analisar não é possível compreender inteiramente aquilo que examinamos, por mais que nos entranhemos em relatórios e vejamos ou oiçamos peritos reais ou presumidos na matéria.

Quando cheguei ao Iraque, em 2004, estava convencido que as autoridades norte-americanas sabiam o que estavam a fazer e que, mau grado os percalços, havia uma estratégia. No meio do que foi talvez a semana mais aventurosa da minha vida – e de que saí vivo mais por sorte do que por juízo – acabei por aprender que, mau grado a qualidade inexcedível das forças armadas norte-americanas, os EUA estavam a ser dirigidos por quem não percebia o que fazia.

Acresce a este facto que não comungo da opinião dos que vêm na resistência europeia à invasão do Iraque a luz da inteligência que teria faltado do lado americano. A União Europeia acabou por ultrapassar em tontice os EUA; se George W. Bush percebeu em 2007 os erros que cometeu, a União Europeia nunca o fez ou quis fazer e continuou alegremente até hoje a alimentar o pior que há no Iraque, ao ritmo dos negócios reais ou presumidos que aí vê.

Como acabei por nunca me deslocar ao Afeganistão, e menos ainda perder-me no país de Norte a Sul e de Leste a Oeste como fiz no Iraque, a minha análise é portanto mais limitada.

Começando pelo elementar: a presença ocidental no Afeganistão partiu de uma situação mais difícil do que a do Iraque por dois motivos essenciais: (1) não existia Estado afegão e (2) o Afeganistão estava rodeado de estados hostis ao Ocidente.

No primeiro ponto, os EUA aplicaram no Iraque quase tudo o que o lobby do regime iraniano os convenceu a fazer, e portanto destruíram o Estado iraquiano, equalizando Iraque e Afeganistão nessa matéria.

No que diz respeito ao segundo ponto, com a óbvia excepção do Irão, o Iraque estava rodeado de Estados que foram hostilizados pela invasão e aliança real americana com o Irão, mas que não eram à partida hostis ao Ocidente e com os quais teria sido possível contar na altura, caso existisse inteligência estratégica para isso.

O Afeganistão tem à sua volta três antigas repúblicas soviéticas, nenhuma delas democrática, e todas elas alinhadas com Putin, e ainda a China, o Irão e o Paquistão, este último, o país que criou os taliban como força de ocupação do seu vizinho (a fronteira inclui a parte ocupada do antigo principado de Jammu e Cachemira).

Se é verdade que os EUA tentaram durante alguns anos cultivar relações com o Uzbequistão (não da melhor forma); há razões para pensar que seria sempre difícil sustentar uma aliança estratégica com qualquer desses três países, nomeadamente por razões que têm a ver com o percurso seguido pelas relações ocidentais com Putin.

Pensar que a China se aliaria aos EUA contra os Taliban por causa do terrorismo (crença que continuou a ser publicamente defendida pela administração Biden mesmo depois da entronização pública dos taliban pela diplomacia chinesa) é um erro crasso de análise, enquanto a abertura do Afeganistão ao Irão, sendo absurda, é compreensível se tivermos em conta que se fez o mesmo no Iraque, o que foi ainda mais absurdo.

O que ultrapassou as raias do imaginável foi ver a conversão do país que inventou, armou, financiou, dirigiu e albergou os taliban, em base estratégica para fazer a guerra… aos taliban! Que se possa ter acreditado por alguns meses que o Paquistão estaria seriamente a considerar arrepender-se de ter inventado os Taliban e do apoio que deu ao terrorismo fanático islamista (a começar pela Al Qaeda) é aceitável, que a crença tenha sobrevivido à mais óbvia constatação do continuado apoio paquistanês aos Taliban e a toda a sua estrutura aliada (incluindo Osama bin Laden, como se tornou público) entra já no domínio do delírio.

Estamos aqui perante uma estratégia suicida que não poderia terminar de forma substancialmente diferente da que terminou: em completo desastre!

Faço nesta matéria o mesmo reparo que fiz em relação ao Iraque. Pensar que a União Europeia é uma alternativa aos EUA é pura fantasia. Nem uma única vez ao longo de vinte anos se viu qualquer país europeu, quer na União Europeia quer na NATO, criticar a estratégia de ‘apoio ao Paquistão para vencer a invasão paquistanesa do Afeganistão’, e bem pelo contrário.

A Europa não só passou alegremente por cima do continuado apoio paquistanês aos taliban como tratou mesmo de sabotar qualquer veleidade norte-americana de inverter a sua política suicida (na sequência da operação contra Bin Laden em 2011) dando ao Paquistão o estatuto comercial mais favorável, o chamado GSP+, tornando assim o Paquistão o país do mundo que, de longe, mais beneficia das vantagens comerciais europeias.

  1. O catálogo das enormidades

O ‘saber de ciência feito’ afegão é um catálogo de enormidades. A primeira das quais é a de que o império americano iria cair inevitavelmente no país porque o Afeganistão seria um ‘tomba-impérios’. Ou seja, Alexandre Magno, o Islão, os mongóis ou os persas não teriam existido e conquistado o país contrariamente ao que é registado pela história.

A Grã-Bretanha tomou conta do Afeganistão no século XIX da mesma forma que tomou conta de variadíssimos outros Estados da Ásia do Sul, tomando para si a administração directa de parte importante do Emirato afegão – fundamentalmente a parte habitada maioritariamente pelos Pashtun no Paquistão e definida pela linha Durand – deixando autonomia ao que restou do Emirato para todas as matérias que não fossem relativas aos negócios estrangeiros, modelo que prosseguiu em vários outras circunstâncias. A fábula de que não teria conseguido conquistar o país, ou que o império britânico teria soçobrado por causa dele, é isso mesmo, uma fábula.

A Rússia também tomou conta do Afeganistão e saber até que ponto foi expulsa pela população ou foi antes vencida pela crise interna e pela Jihad, apoiada por vários países muçulmanos e pelo Ocidente e organizada principal mas não exclusivamente pelo Paquistão, é no mínimo discutível.

O único efeito útil da repetição desta enormidade histórica é o de fazer passar de contrabando a ideia de que os taliban não são um corpo expedicionário paquistanês invasor mas que os únicos invasores são os americanos. Ou seja, trata-se de reescrever a história em consonância com a propaganda do ocupante paquistanês.

Depois temos a famosa discussão sobre a construção do Estado (state buiding), matéria a que os EUA se teriam prestado sem o dever ter feito.

À partida, os EUA poderiam ter evitado a invasão, limitando-se a bombardear os alvos estratégicos Taliban e apoiar as facções rivais, a chamada ‘Aliança do Norte’ que incluía uma série de jihadistas apoiados pelo Irão, e chefes de guerra mais ou menos independentes.

Se se limitassem a fazer isso, assegurando no máximo uma presença temporária de forças especiais, estariam possivelmente confrontados a prazo com uma repetição da situação que levou à implosão do país depois da queda do regime pró-soviético e a sua tomada de assalto pelo Paquistão através dos taliban.

Mas parece-me claro que existiam outras vias mais promissoras de alterar a situação no país, nomeadamente apostando em mudanças substanciais em países vizinhos, a começar pelo Irão.

A partir do momento em que não foi essa a opção tomada e que os EUA se envolveram numa invasão clássica e total do território, eles não poderiam escapar à questão da construção do Estado, porque ele não existia, e não se pode ocupar um território sem Estado.

Massouda Jalal (que no momento em que escrevo estas linhas está algures em fuga no país) e que ao tempo da primeira invasão taliban era psiquiatra no Hospital Psiquiátrico de Cabul ficou sem emprego primeiro por ser mulher e depois porque os taliban resolveram fechar o hospital psiquiátrico. A esse propósito, dizia-me ela que esta segunda decisão tinha sido uma das únicas medidas sensatas dos taliban, porque num país transformado em asilo psiquiátrico se tinha tornado dispensável um sítio específico para internar doidos.

Quer isto dizer que os taliban acabaram com um Estado que fosse digno desse nome, e por isso não havia alternativa à sua construção.

O único resultado útil deste debate foi o de abandonar as partes essenciais da construção do Estado afegão aos inimigos (comunicação social, universidades, organizações da sociedade civil, repressão do tráfico de droga) assegurando para os EUA apenas a parte militar e o pagamento da factura.

A terceira grande enormidade foi a da ‘negociação com os taliban’. Ao repetir toda a desastrosa estratégia negocial vietnamita de Henry Kissinger – mostrando que nada se aprendeu com eles – a diplomacia americana cavou a sepultura das autoridades afegãs, que passaram a ser vistas como meros representantes das forças de ocupação.

Que essa estratégia negocial só podia ter como desfecho um Saigão-1975 bis foi para a nossa equipa do SADF absolutamente evidente e não deixámos de o dizer vezes sem conta, nomeadamente no quadro das relações contratuais com que trabalhámos com a NATO. Aqui, a única surpresa é a de Cabul-2021 ter ultrapassado o pior de Saigão-1975 sem que o inenarrável Biden possa ao menos justificar-se com a deliquescência do Estado norte-americano post-Watergate de 1975.

A estas três enormidades, juntam-se outras, mas, exactamente porque creio que só uma presença física me permitiria ter ideias mais definitivas sobre o assunto, fico por aqui.

  1. Do império do dinheiro à guerra das ideias

O mais perverso dos mitos ocidentais – que transcende em muito o Afeganistão – é o de que capitalismo e democracia liberal são as duas faces da mesma moeda. Mito inventado por Marx, depois da queda do império soviético tornou-se extremamente útil à ‘burguesia capitalista’ como argumento para a inexistência de alternativa.

O poder irrestrito do dinheiro implica uma série de danos à humanidade de que todos nós nos damos conta, mas que as nossas elites ocidentais preferem ignorar. Um desses danos é o de permitir aos inimigos da liberdade e da democracia usarem o dinheiro para corromper os decisores do Estado democrático.

Apenas para abordar uma das mais óbvias manifestações desse problema, olhemos para o fundamental documentário ‘Sarajevo 1914’ que nos serve para começarmos a entender como foi possível à indústria do armamento manipular os decisores políticos e mergulhar-nos na catástrofe que foi a primeira guerra mundial.

Se a Rússia de Putin ou a China de Xi são relativamente óbvias na forma como usam dinheiro para subverter a ordem ocidental, o Paquistão, o Irão ou o Qatar – para citar apenas os três principais centros de promoção jihadista – têm-se revelado muito mais eficazes e discretas nessa matéria, usando e abusando da liberdade que lhes é dada para perverterem a ordem democrática, parasitar o Ocidente e levá-lo a escolher políticas suicidas.

A falta de inteligência e a permissibilidade ao dinheiro são dois elementos essenciais na compreensão de como foi possível a política ocidental suicida no Afeganistão, mas há um terceiro que se tornou o determinante e que é a psicopatia do apaziguamento, de que o principal subproduto é o politicamente correcto hoje conhecido como ‘cultura woke’ e o seu essencial traço o combate à ‘islamofobia’.

A psicopatia do apaziguamento (extensão social em caso extremo da síndroma de Estocolmo) parte do princípio de que a agressividade de outrem é necessariamente culpa do alvo dessa agressividade. Se alguém é vítima de terrorismo, é porque necessariamente o terrorista teve razões de peso para aterrorizar, e é preciso responder a essas razões, quer apaziguando, quer mesmo colaborando activamente com o terrorista.

A violência taliban seria assim culpa do Ocidente, que é islamofóbico, e por isso é ele o culpado da violência taliban, Taliban que seriam a incarnação do Islão. Apoiar os taliban é assim o corolário psicopático do combate à islamofobia.

Esta lógica apoia-se na profunda ignorância do que é o Islão – ela mesmo resultante do facto de o Ocidente ter entregue aos jihadistas a definição do que é o Islão e a imposição dessa definição na comunicação social e nos centros de ensino ocidentais – e na total ausência de racionalidade.

A ‘cultura woke’ culpa o homem de opressão sobre a mulher (com uma base factual mais sólida) mas passa daí à defesa da doutrina contemporânea mais misógina que é o jihadismo sob o lema da ‘luta contra a islamofobia’ como se não estivesse a defender o mais óbvio dos contrassensos.

Isto é assim porque a coerência da ‘cultura woke’ não existe na racionalidade, mas sim na psicopatia, que é a mesma na culpa permanente do homem branco que é machista e que é islamofóbico.

A derrocada do Afeganistão ultrapassa em muito a derrocada do actual inquilino da Casa Branca ou dos EUA, é a derrocada do sistema de valores do que consideramos o ‘Ocidente’.

As suas consequências são planetárias e são demasiadamente importantes para que não voltemos a elas.

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