A última Cimeira do BRICS não confirmou apenas a formação de um novo bloco político-económico na cena internacional e o princípio do fim de um mundo unipolar, pois o anúncio da adesão de seis novos membros e especialmente a confirmação do interesse de muitos mais, trouxe para a ribalta a dura realidade daquela que será a principal razão motora para essa opção: a saturação dos países do Sul global face ao abuso de poder dos países do Norte.
Contrariamente ao que se poderia pensar, foram as sanções económicas unilateralmente decididas por Washington contra a Rússia, a apropriação das reservas e do ouro dos bancos centrais russo e venezuelano e não o conflito na Ucrânia, que transformaram o dólar americano numa arma e resultaram no realinhamento global a que estamos a assistir.
Por imposição da arquitectura económico-financeira desenhada no pós-guerra (Acordos de Bretton-Woods), o dólar americano tem sido utilizado como meio de pagamento internacional (mesmo após a declaração unilateral da sua inconvertibilidade), mas as sanções mostraram ao mundo todos os riscos da sua utilização.
O alargamento dos BRICS (a concretizar no início de 2024 com a adesão da Argentina, Arábia Saudita, Egipto, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Irão), mais do que reforçar o peso do grupo em termos de PIB mundial (cálculos conservadores estimam-no em mais de 30%, outros entre 40 a 45%), representa a concentração da quase totalidade da produção mundial de petróleo, algo que não poderá deixar de afectar o papel do dólar como moeda de reserva mundial, traduzindo-se, quiçá, no fim do petrodólar, o que parece confirmar-se com o anúncio, no início deste ano, que até a Arábia Saudita começou a aceitar pagamentos de petróleo noutras moedas, num movimento iniciado em 2000 pelo Iraque e continuado em 2006 pela Venezuela.
Os BRICS poderão tentar criar uma nova moeda de reserva baseada num cabaz ponderado das suas moedas, mas isso pode ser potencialmente conflituoso (a China deverá estar perfeitamente ciente que semelhante iniciativa poderá criar tensões entre os membros devido a disputas sobre as participações de cada moeda no cabaz) e desnecessário, porque os bancos centrais podem perfeitamente manter as suas reservas sob a forma das moedas dos respectivos parceiros comerciais.
A verdadeira e mais profunda implicação da desdolarização do comércio internacional será o agravar dos problemas financeiros dos EUA, país cuja economia tem vindo a perder peso enquanto assiste ao aumento dos seus défices orçamentais e comerciais, que se manterão estabilizados enquanto o dólar for a moeda mundial, pois os bancos centrais estrangeiros terão de manter as suas reservas em dívida do Tesouro norte-americano, seja para efeitos de pagamentos, seja pela existência de uma relação directa entre o aumento daqueles défices e o crescimento das reservas do sistema bancário mundial.
A situação parece estar a mudar quando uma dúzia de países, que representam cerca de metade da população mundial e quase outro tanto do respectivo PIB, deixarem de utilizar o dólar; essa mudança levará à redução do mercado da dívida norte-americana precisamente quando ele vai ser mais necessário para equilibrar o aumento das importações por uma economia que deslocalizou quase toda a sua produção. A redução do uso do dólar traduzir-se-á uma diminuição da procura global pela dívida dos EUA, o que significa maior pressão sobre o valor cambial dessa moeda e a perspectiva de aumento da inflação devido ao aumento dos preços das importações.
Posto isto, estamos numa encruzilhada. Num daqueles pontos de viragem indelevelmente marcados na História; estamos cada vez mais próximos do fim de uma versão norte-americana da ordem global, que está a ser destruída pela sobranceria e a indiferença do Ocidente, muito agravada pela visão hollywoodesca dos “bons” e dos “maus”, tão do agrado norte-americano.
A oportunidade de Washington lidar com a Rússia e a China (na linha do preconizado pelo ex-conselheiro de segurança Zbigniew Brzezinski, em textos como este) já passou, o que deixa agora em aberto a questão de como irão Moscovo e Pequim lidar com ela. O monopólio neoconservador sobre a política externa dos EUA significa que não há outras vozes que as administrações (sejam elas Democratas ou Republicanas) possam ouvir e a hegemonia americana está fora de questão, a sua cegueira levou à destruição do euro (a última alternativa viável para o Ocidente prolongar algum papel relevante no cenário financeiro global) e o papel subserviente da UE na crise ucraniana tornou-a uma inutilidade política global e ajudou a colocar o Ocidente numa posição cada vez menos invejável.