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Quinta-feira, Abril 25, 2024

Teses académicas sobre a Revolução de Abril – uma tese sobre a Imprensa e os novos jornais

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

O autor e sua tese

A realização de teses académicas de História restritas ao período temporal de 1974-1976 ou até ao ano de 1975 faz correr o risco de afectar o enquadramento do estudo num período mais largo, muito embora possa propiciar que o mestrando ou doutorando se vá movendo e construindo curriculum dentro dessas baias temporais e até realize a lição de síntese das provas de agregação sobre o mesmo período.

Muito recentemente veio-me às mãos A Imprensa na Revolução. Os novos Jornais e as Lutas Políticas de 1975, de Pedro Marques Gomes, editado em Junho do corrente ano pela Imprensa Nacional Casa da Moeda, e fui lendo a obra com interesse, parecendo-me que se trataria da edição de uma tese académica, o que só confirmei nas páginas finais, onde, ao contrário do que será mais usual, os agradecimentos estão inseridos, permitindo perceber que se trata da edição de uma tese de doutoramento em História Contemporânea, defendida em 2018 na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas com orientação de Maria Inácia Rezola e Pedro Aires Oliveira e distinguida com o Prémio Fundação Mário Soares – Fundação EDP 2019. O autor realizou a sua investigação no Instituto de História Contemporânea, continuando ligado como investigador à FCSH no HTC – História, Territórios e Comunidades, polo na FCSH do Centro de Ecologia Funcional – Ciência para as Pessoas e o Planeta, sendo Professor na Escola Superior de Comunicação Social.

Em outra informação apresentada na edição pode ler-se que é autor das obras Os Saneamentos Políticos no Diário de Notícias no Verão Quente de 1975 (Alétheia, 2014) e Breve História do Partido Socialista (Publico, 100 Folhas, 2019) e ainda que “Investigador e membro da Comissão Editorial do projeto ‘Obras de Mário Soares’, coordena atualmente o projeto de investigação ‘Á frente da Revolução’: os jornalistas na transição para a democracia em Portugal (1974-1976).”

 

Cautelas de historiador

O autor, consciente de como a memória (e a história) podem ser afectadas, sintetiza assim a sua metodologia.

Recolher, sempre que possível, vários testemunhos, acerca do mesmo assunto, ler vários jornais, obras e documentos, eis uma postura que, cremos, poderá minimizar os riscos de fazer uma história tão recente (e por isso tão “viva”) e sobre a qual existe tão pouca documentação, como destacaremos à frente.

 Assinale-se que o autor utiliza numerosas entrevistas, devidamente identificadas, com protagonistas dos acontecimentos, e se apoia num conjunto de “memórias, testemunhos, discursos e crónicas” e numa vasta bibliografia que abrange textos de índole semelhante, e conseguiu localizar parte dos arquivos relativos à actividade do Ministério da Comunicação Social em 1974-1976.

A obra estrutura-se em duas partes, denominadas respectivamente “Jornais, Jornalistas e Poder do 25 de Abril de 1974 ao “Verão Quente de 1975” e “Novos Tempos, Novos Jornais” compreendendo esta segunda parte um estudo bastante desenvolvido da criação de quatro novos jornais: Jornal Novo, O Jornal, Tempo e A Luta, recursos mobilizados para o efeito, composição das redações, incluindo algumas futuras personalidades que iniciam a sua vida política pelo jornalismo, os conteúdos, selecionados em função de diversos acontecimentos – chave, as tiragens.

 

Abrangência e (talvez desnecessárias) exclusões

De notar que o autor inscreve a sua pesquisa no contexto mais geral da luta pelo poder entre 25 de Abril de 1974 “muito embora por vezes seja necessário recuar a períodos anteriores” e a “estudos sobre os media na fase final da ditadura” os quais “indiciam mudanças no jornalismo português e nas empresas de media” e o 25 de Novembro de 1975 que “marca o fim da revolução”.

No entanto, se regista na bibliografia obras sobre os períodos anteriores, citando entre outros Apogeu. Morte e Ressurreição da Politica nos Jornais Portugueses – do Século XIX ao Marcelismo,(i) de Carla Baptista, não retoma a sua discussão. Em todo caso refere-se à negociação dos contratos colectivos antes do 25 de Abril e à acção do então Sindicato Nacional dos Jornalistas. Já quanto aos “novos jornais” fundados em 1975, o autor faz referência a alguns desenvolvimentos da sua vida posterior ao 25 de Novembro de 1975, até à cessação de publicação, e designadamente o acordar da CIP, sleeping partner aquando da fundação do Jornal Novo e que, passada a emergência, rapidamente se liberta de Artur Portela Filho. Seria importante comparar a sua evolução com a dos jornais que tinham passado para a influência do Estado em termos de posições accionistas e de financiamento, e que numa primeira fase, e em ligação com a formação do VI Governo Provisório, se havia procurado entregar à influência do PS (Diário de Notícias), PPD (O Século, que fechou rapidamente) e PCP (A Capital, que aquele aliás não aceitou).

O autor explica que de fora do seu estudo ficam os periódicos generalistas do Norte, já objecto de outras teses, a imprensa regional, os jornais partidários as revistas de informação e “claro”, a rádio e a televisão. Julgamos que este “claro” decorre de ter obtado por estudar apenas a imprensa, no entanto, tal como faz em relação às principais conclusões das teses académicas relativas à imprensa generalista do Norte, poderia ter chamado à sua tese as principais conclusões de estudos já realizados sobre as rádios e a televisão, em que talvez nos fenómenos estudados em termos de enquadramento empresarial e de relacionamento entre administrações, direcções, jornalistas e outros trabalhadores, se encontrem pontos de contacto. Sem falar que alguns dos títulos que aparecem como imprensa regional desde 1974 protagonizam “agressões ideológicas dos meios mais reacionários” que desde os primeiros a Revolução se tinha proposto combater através de uma comissão ad hoc, e integram as listas de sancionados referenciadas na obra.

E não será despiciendo ter em conta que os acontecimentos na imprensa que essencialmente produz “notícias” se desenrolam durante um período em que o recurso a outros meios para difundir informação e opinião se encontra generalizado como mostra a tese do brasileiro Flamarion Maués, Livros que Tomam Partido. Edição e Revolução em Portugal: 1968 – 1980. (ii)

 

Uma narrativa padrão e pontos a clarificar

O livro é pontuado por numerosas transcrições que permitem ao autor introduzir chamadas de atenção que permitem contextualizar factos que, na época, alimentaram intensas campanhas políticas.

Não me parece impossível fazer teses académicas com rigor sobre o período da Revolução de Abril mesmo nas áreas em que a certa altura surgiram conotações com posições de partidos políticos. Veja-se por exemplo Estudantes e Povo na Revolução. O Serviço Cívico Estudantil (1974-1977), de Luísa Tiago de Oliveira(iii).

No caso presente fico com a ideia que o autor, não se propondo investigar directamente motivações políticas ou estratégias partidárias, se apoia num conjunto de narrativas – em grande parte de antigos protagonistas dos combates da época – cuja essencial similitude lhe permite reconhecer-lhe credibilidade – embora seja sobretudo as de Mário Mesquita aquelas a que adere mais expressamente.

Transcreva-se, entre muitos, o seguinte trecho da tese

Importa salientar que a politização dos conteúdos dos jornais é também, não raras vezes, causa ou consequência (consoante os casos) dos confrontos que vão surgindo no interior dos periódicos, entre administradores, directores, jornalistas e outros trabalhadores. As divergências tinham sobretudo a ver com a “repartição de poderes no interior das empresas jornalísticas”. “Outros sectores profissionais que não jornalistas “conquistaram a sua zona de influência na determinação dos conteúdos dos jornais”. “Pela sua combatividade”, destaca-se, neste domínio, o sector gráfico. “As células comunistas e da extrema esquerda revolucionária das tipografias conseguiram, em certos casos, impor a sua vontade nas empresas”, sustenta Mário Mesquita.

Outros autores transcritos por Pedro Marques Gomes falam do PCP e “outras” organizações de extrema esquerda.

Sem querer trazer para aqui a retórica do debate pós-geringonça actualmente em curso, importaria perceber que extrema – esquerda está em causa: o MRPP que, como a tese dá conta, se aliou ao PS na conquista do Sindicato dos Jornalistas e outras organizações e em O Século? a UDP que se constitui em resultado da convergência de vários sectores maoístas? As organizações esquerdistas mais tarde integrantes da Frente de Unidade Revolucionária (MÊS, LUAR, PRP, PSR, PRT)?

A questão da intervenção de não jornalistas na definição das orientações dos jornais foi uma questão importante na época e, como o autor estudou no caso do Diário de Notícias, pode estar institucionalmente ligada à formação de Comissões de Trabalhadores. Mas, células à parte, interessaria perceber se a psicologia dos gráficos na época os representava como participantes do produto que era o jornal.

Saindo os jornais do poder dos grandes grupos económicos, que acabaram então, os jornalistas ganharam e fizeram consagrar, inclusive constitucionalmente, que era sua a determinação dos conteúdos dos jornais. A evolução tecnológica reduziu radicalmente a intervenção de gráficos e outros técnicos. Mas a informação voltou a estar nas mãos de grupos económicos…

 

Como alerta final

  1. No Glossário indica-se que ANP é “Associação Nacional Popular”, contudo no texto o autor indica, correctamente, que se trata de “Ação” .
  2. Na página 99 da obra publicada refere-se “Vitória Pires, Secretária de Estado de Marcello Caetano” como um dos administradores da Empresa Nacional de Publicidade, que detinha em 1974 a propriedade do Diário de Notícias. Alguém deveria explicar ao autor, ao júri de doutoramento e ao revisor da INCM que, conforme a Wikipedia, Domingos Rosado Vitória Pires com o nome geralmente grafado Domingos Rosado Victória Pires, foi um engenheiro agrónomo e político do tempo do Estado Novo que, entre outras funções de relevo, foi Subsecretário de Estado da Agricultura (1950-1958), Secretário de Estado da Agricultura (1965-1969), deputado à Assembleia Nacional e administrador da Fundação da Casa de Bragança.

 

Notas

(i) Escritório Editora, 2012.

(ii) Edições Parsifal, 2019.

(iii) Celta Editora, 2004.

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