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João de Sousa

Quinta-feira, Abril 25, 2024

Um novo paradigma para o socialismo 5

João de Almeida Santos
João de Almeida Santos
Director da Faculdade de Ciências Sociais, Educação e Administração e do Departamento de Ciência Política, Segurança e Relações Internacionais da ULHT


Sob as luzes da ribalta estão hoje os temas da evolução política e partidária, nomeadamente dos socialistas e sociais-democratas, em diversos países europeus e, mais detalhadamente, da excepção constituída pelo caso Português.

Em tempo de conclusões e de balanço não seria possivel deixar de fora a evolução do sistema financeiro e bancário bem como analisar as ligações perigosas entre finança, política, economia e sociedade.

Boa leitura

João de Sousa


Contributo para um debate à esquerda – 5

por João de Almeida Santos

IV. O PANORAMA EUROPEU E O PS

Fruto destas mudanças está a acontecer uma evidente crise das formações tradicionais que têm mostrado dificuldade em polarizar as expectativas dos cidadãos. Apesar do massacre da classe média, promovido pelo anterior governo de centro-direita, o PS revelou graves dificuldades em mobilizar os cidadãos, reduzindo a abstenção e evitando a dispersão de votos por partidos inúteis para soluções governativas. Os resultados eleitorais do PS nas eleições de 2015 foram muito fracos, não conseguindo  obter uma maioria relativa no confronto com a Coligação PaF e nem sequer em relação ao PSD. Comparando com 2009, e ao fim de 4 anos no governo, o PS tinha obtido, nas Europeias de 2014, somente mais 86.340 votos. Este problema persistiu, como se viu nos resultados eleitorais de 2015.

Não se trata de uma questão conjuntural. Trata-se de uma crise sistémica que gera fugas para a abstenção ou para periferias políticas radicais. O caso francês é exemplar. A Frente Nacional ganhou a primeira volta das regionais de 2015. O PS viu-se remetido para a terceira posição, na segunda volta, com menos 19 mandatos do que a Frente Nacional. O Labour fracassou e a solução que, em seguida, se deu em termos de programa e de liderança (Jeremy Corbyn) se indicia uma radicalização da base activa de apoio do partido não augura, todavia, nada de bom, pela filosofia radical e algo passadiça que inspira a liderança. Em Itália, Beppe Grillo e o seu partido digital (veja-se em “A política e a rede: os casos italiano e chinês”) ameaçam disputar a liderança ao Partido Democrático, aproximando-se deste cada vez mais, a crermos nas mais recentes sondagens (em média, podemos falar em cerca de 33% do PD contra 26% do M5S, em Fevereiro de 2016; em Março, em 6 sondagens, em cerca de 33% contra 25%; e, em Outubro de 2016, em cerca de 31% contra 28%, sendo certo que, em 2016, o M5S conquistou os Municípios de Roma e de Turim).

Na Alemanha, a CDU/CSU mantém-se solidamente na liderança, com um SPD persistentemente subalterno e apagado, apesar de aquela coligação em recentes 5 sondagens (Agosto/Setembro) ter caído, em média, dos 41,5% obtidos nas eleições federais de 2013 para 33%, não estando o SPD a captar este eleitorado, porque caiu também ele 3 pontos (para cerca de 22%), sendo os grandes beneficiários os Verdes (+ 3 pontos) e AfD (cerca de +8 pontos), estando nas mais recentes sondagens entre 13% e 16% do eleitorado. Na Grécia, os radicais tomaram conta da cena política e o PASOK ficou reduzido à insignificância política, rondando os 6%. Em Espanha, o terreno do PSOE está a ser seriamente ameaçado por Podemos e por Ciudadanos-Partido de Ciudadanía, que obtiveram respectivamente 12,67%, com 42 deputados, e 13,93%, com 40 deputados, embora o resultado de Podemos seja de facto superior se se tomar em conta as alianças que fez, somando, assim, cerca de 20,66%, 5.189463 votos e 69 deputados. Nas eleições legislativas de Junho o PSOE, perdendo, conseguiu ainda manter a segunda posição, encontrando-se agora, com a demissão de Pedro Sánchez, num complexo processo de reajustamento.

Syriza substituiu no poder as velhas organizações hegemónicas, em nome da reposição da dignidade ofendida dos gregos. O M5S, de Beppe Grillo, contra a “Casta” propõe a devolução do poder a uma cidadania digital. Tal como Podemos ou Ciudadanos, que também propõem a devolução do poder confiscado à cidadania. Todos se alimentam dos velhos partidos e da vasta e crescente orfandade política. Quais são as palavras-chave do Podemos? “Casta” (a classe política); “maciça operação de saque” (ao erário público); “novo/velho” (a diferença entre o Podemos e a classe política); “venda de soberania e sequestro da democracia” (a velha política); “cidadãos ao poder” e recuperação da cidadania (objectivo estratégico); “regeneração” moral (da política); nem de esquerda nem de direita (mas centralidade); fim do empobrecimento (da austeridade). Nas eleições anteriores, tal como nestas, o Podemos foi claramente a terceira força política, muito próximo do PSOE. O Syriza obteve 36,34% nas eleições de Janeiro de 2015 e 35,46%, nas de Setembro de 2015, enquanto o PASOK se mantinha numa posição verdadeiramente insignificante, com 6,28%, um pouco mais do que o anterior resultado, inferior a 5%. O panorama é, como se vê muito complexo.

Em Portugal, depois do aviso dos independentes nas autárquicas, ainda não levado a sério pelos partidos, o PCP reforçou-se (nas sondagens e nas eleições legislativas, com 8,25%), o PS perdeu para a Coligação PaF, obtendo 32,31% contra os 36,86% da directa competidora. Alastraram as pequenas formações à esquerda do PS, subtraindo-lhe eleitorado e o Bloco de Esquerda aumentou substancialmente a sua votação, obtendo 10,19% e 19 deputados. O anúncio de que o PS estava a perder terreno via-se na generalidade das sondagens (por exemplo, já a 19.06.15 o Centro da Universidade Católica constatava que o PS já se encontrava atrás da coligação de direita). Todos sabemos o que viria a acontecer e eu próprio tive ocasião de reflectir sobre o processo em artigos publicados no meu Facebook (que podem ser consultados, sendo o regime de privacidade “público”). António Costa aceitou o desafio que o PCP e o Bloco lhe fizeram e accionou uma viragem na geometria política portuguesa, formando um governo com apoio parlamentar maioritário e remetendo para a oposição a Coligação PaF, que viria a dissolver-se.

Trata-se de um desafio complexo, difícil e perigoso para o PS, mas também para os seus parceiros de maioria. Mas está em linha com a necessidade de proceder a uma profunda reflexão sobre a identidade do PS. Reflexão tanto mais necessária quanto maior for o risco de diluição desta mesma identidade nas enormes zonas de fronteira que partilha com outras formações políticas. Em primeiro lugar, à direita, em matéria económica e financeira; depois, à esquerda, em matéria de Estado social; e, finalmente, em matéria de procedimentos políticos, de cidadania, de ética da convicção, de ética da responsabilidade e de ética pública. Ou seja, é cada vez mais necessário rever a velha matriz do PS para que não se verifique aquilo que nesta fase da vida política ameaça tornar-se um grande problema: uma deriva casuística ao sabor das oportunidades tácticas que garantam a estabilidade governativa.

É, pois, necessária uma visão estruturada do mundo em linha com os tempos complexos que vivemos e que possa servir de cartografia cognitiva a quantos se possam vir a inspirar politicamente no PS. E uma visão destas deve poder aspirar a ser hegemónica na sociedade, se for séria, justa, informada, bem estruturada e bem protagonizada. António Costa lançou o debate, provocando primárias abertas para candidatos a PM. O PS, graças à opção do então Secretário-Geral, António José Seguro, abriu-se à sociedade na escolha da liderança. Processo melhor do que as estranhas “primárias” que ocorreram nas autárquicas e que, por isso, deveria ser alargado às principais lideranças (SG, Distritais e Concelhias).

É caminho obrigatório. Mas parece que se continua a marcar passo, já que as primárias e outros processos de aperfeiçoamento da selecção da classe dirigente parece terem sido metidos na gaveta. Mais. Creio que chegou a hora promover um profundo aggiornamento. Porque não basta propor, como no recente passado, causas fracturantes para fazer do PS um partido em linha com os tempos. Ou um partido de esquerda. São questões como a do Estado Social, a da emergência do indivíduo como protagonista de segunda geração (“prosumer” político, através das TICs) e a das novas “constituencies” (a dos credores internacionais, por exemplo, referida por W. Streeck), que se somam à da velha cidadania, à da dívida pública por autofinanciamento, entre outras, que podem projectar o PS no caminho do futuro (veja-se a recente entrevista de Zygmunt Bauman em “L’Espresso”, de 18.02.16, pp. 72-75, esp. p. 75).

A formação de um governo com apoio parlamentar de toda a esquerda foi um passo em frente, porque rompeu com o garrote do chamado “arco da governação” e com o domínio incontestado do TINA (There Is No Alternative).  E a minha convicção é que este passo torna agora urgente e imprescindível proceder a esta redefinição rigorosa de identidade em todas as dimensões que tenho vindo a referir.

V. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A mudança é estrutural. Os pilares financeiros ruem como castelos de papel: Grupo Espírito Santo, BPN, BPP, Banif. O sistema financeiro em geral está em dificuldades. E a CGD vai ter uma recapitalização de  vários milhares de milhões de euros. O poder judicial parece insinuar-se como poder invasivo, bigbrotherizando, com escutas e fugas, a sociedade: já todos ditamos para a acta quando falamos ao telefone. Nenhum líder político em pleno juízo fala hoje ao telefone com liberdade. O poder financeiro internacional e as agências de rating dominam as economias nacionais e as dívidas públicas. No centro do processo está o famoso e omnipresente Goldman Sachs, agora reforçado com presença significativa no governo americano de Donald Trump. O poder mediático continua forte e intenso. Avançamos para uma problemática sociedade transparente, na imagem e no som. As diferenças civilizacionais convertem-se em choque. A política está capturada, mas não pela vontade geral. E o  que é interessante, em Portugal, é a migração da própria classe política para o espaço público mediatizado, sobretudo a televisão, na tentativa de o colonizar, sem se dar conta de que, assim, é ela própria a ficar colonizada pelo establishment mediático. A política já não se faz com modelos orgânicos, próprios dos velhos sistemas de partidos. As possibilidades de auto-organização e de automobilização dos cidadãos estão a alterar tudo.

Perante isto, o que é que o PS, que se quer inovador, propõe? António Costa federou bem as sensibilidades. E deu um corajoso passo em frente na plena integração para efeitos governativos, directos ou indirectos, das forças que integram a instituição parlamentar. Sem dúvida. Mas talvez seja necessário promover uma ideia inovadora que mobilize e responda a este quadro tão complexo. Sócrates avançou com as “Novas Fronteiras” e lá dentro tinha um programa que ficou conhecido como “Choque Tecnológico”. Ideia-chave, aplicada (bem ou mal) na economia e ancorada num sistema científico nacional bem impulsionado por Mariano Gago, de boa memória. O programa de governo e a agenda para a década são fundamentais. Claro. Mas também temos de propor uma nova visão de fundo sobre o País que mobilize as pessoas, apontando para elas, centrada no futuro e não sobre as desgraças que estão a cair sobre nós. Fugir a sete pés da ideologia que hoje domina os telejornais, a ideologia da desgraça, do crime e do sexo. A Lei da Espoleta. E confrontar-se com as grandes questões que tocam de perto a sociedade moderna:

  1. a perigosa utopia da “sociedade transparente”;
  2. a atracção fatal pela democracia directa ou pela eufemística democracia participativa;
  3. a crise do paradigma “organizacional” e “representativo”;
  4. o emergente “poder diluído” e a nova lógica que ele exprime;
  5. as transmutações do capital financeiro e o poder dos fundos de pensões;
  6. a crise do velho Estado social perante a emergência de uma nova responsabilidade individual capaz de se autotutelar;
  7. a aliança perversa entre justiça e mediacomo perigoso exercício de poder;
  8. o choque civilizacional e a lógica terrorista que daí resulta;
  9. a democracia supranacional a braços com o regresso do velho nacionalismo tacanho;
  10. a relação entre representação política e poder diluído;
  11. a atrofia burocrática da sociedade.

Em suma, trata-se de um grande desafio para o PS e, em geral, para os partidos socialistas e sociais-democratas, perante a gigantesca mudança a que estamos a assistir. Um desafio que implicará superar o velho modelo social-democrata. Avançar para uma nova fase, tal como aconteceu anteriormente: do maximalismo de inspiração marxista a “Bad Godesberg”, da “Terceira Via” a uma nova “democracia digital e em rede”, superadora da fase orgânica da política e propulsora de uma nova política deliberativa. Mas esta será uma fase mais complexa e exigente do que todas as que aconteceram até aqui: põe em causa o clássico modelo orgânico da política e de certo modo extravasa as fronteiras do velho modelo formal do sistema representativo. E implica um confronto com a lógica dos novos poderes, com a emergente transparência neocomunitária e com a nova centralidade de um cidadão individualmente responsável e membro da nova “network and digital society”, o Prosumer.

Como se compreenderá, a política precisa de uma filosofia que a inspire para não se desvitalizar e se transformar numa prática casuística prisioneira da ditadura do presente e da mera ideia de interesse. O ser humano move-se, certamente, por interesses, até por pequeninos interesses familiares, mas também se move por ideais.

Nova versão, actualizada. Título e Apresentação em espanhol. Texto em língua Portuguesa. Publicado no Blog sobre comunicación, contenidos y redes de Tendencias21. Dezembro de 2016

Nota de edição

O primeiros artigos desta tese foram publicado nos dias:

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