Digo que foi um ato extremo de resistência e não de desistência, expressou o sofrimento que as guerras podem causar ao povo. E aos artistas que não fogem da luta!
Uma cobra abocanha um sapo, que fica entalado na sua garganta. A cobra é voraz, o sapo não se entrega, a cobra engasga e enjoa. O sapo agoniza.
Esta imagem real, que a escritora britânica Virginia Woolf presenciou com seu marido, Leonard, num brejo próximo a Londres, acompanhou-a até o final da vida, tornando-se uma cena de seu último livro, “Pointz Hall”.
Representa o imperialismo de todos os tempos, vitimando países e populações, além de culturas. E extirpa os valores humanos pela raiz a pretexto de salvar o homem.
Na época da visão da cobra e o sapo, início dos anos 1930, uma crise econômica de grandes proporções assolava a Inglaterra e o mundo capitalista. Estopim da bomba? De uma delas, são tantas, e quando finalmente nos alvejam é tarde demais. São ignorados todos os sinais de decadência de valores e de acirramento de sentimentos extremistas.
A guerra é insidiosa e se entremeia ao cotidiano com suavidade tenaz, em princípio, escamoteando a realidade, sempre com a cumplicidade da mídia de velas infladas na direção de ventos e interesses a favor.
Virginia tinha seu próprio e obstinado modo de leitura do noticiário, discernindo fato de fantasia. Temia tanto a invasão nazista quanto a propaganda inglesa e sua fogosa produção de heróis. Os heróis de hoje, pensava, talvez sejam os párias de amanhã, tocando realejos para sobreviver. Sabia, por experiência, como é sinistro o destino dos veteranos de guerra.
Virginia atravessou as sombras do cotidiano em meio às cisões, “a separação entre os reinos da grandeza e da pequeneza”.
Nessa gangorra de sobressaltos, as contradições se aguçavam, especialmente na alma de uma artista como Virginia. Ela então milita, revê padrões, viaja ao passado na falta de perspectivas para o presente, resgata a dor que acalentou a duras penas na vivência da Primeira Guerra.
Psicanalisa, conclui que o peso do sofrimento do pai, também escritor, a condenou a viver em uma estufa emocional e intelectual. Que finalmente se estilhaça na chegada dos 50 anos.
“Todas as vaidades são menos que um caramujo na Zínia“, escreveu Virginia Woolf a sua irmã, Vanessa, nessa idade, redimensionando os campos e superposições da existência.
Alardeou que o alheamento não é alternativa para o artista, um ser amalgamado com as paixões humanas, por isso mesmo aprofunda a sensibilidade em tempos de sofrimento. A saída é optar pelo caminho possível, que é a política. E Virginia o trilhou.
Persistiu, produziu muito, sofreu e enlutou nos anos que finalmente culminaram na guerra declarada e em uma sociedade em desordem, na qual o suicídio era assunto corrente. Em 14 de junho de 1940, as tropas nazistas tomaram a cidade de Paris, acuando a escritora e toda sua esperança de livramento do desespero interior.
Em 28 de março de 1941, retomando a cobra e o sapo, que a levaram a um pesadelo em que uma pessoa se lançava ao mar, descobriu que essa pessoa era ela mesma. Mergulhou no lago com pedras nos bolsos, asfixiou-se com a água e com a genialidade que escapa a classes sociais, escolhas políticas e, sobretudo, à mesquinhez da raça humana. Não quis punir ninguém, deixou cartas de amor para o marido e a irmã.
“Se eu não sofresse tanto, não poderia ser feliz” (Virginia Woolf, em seu diário)
A guerra em capítulos
A escritora britânica detalha em seu diário o passo a passo da silenciosa preparação da guerra, na década de 1930. Os textos foram reproduzidos em “Virginia Woolf, a medida da vida”, biografia de Herbert Marder.
O relato é didático, mostra como o espectro da guerra é tão devastador quanto a própria e leva a alma do artista, obrigatoriamente, a se engajar na política.
Reproduzi aqui os fatos do livro, em ordem cronológica, como se fossem manchetes de jornais. Qualquer semelhança com os acontecimentos recentes no mundo e na Europa pode não ser mera semelhança.
Crise financeira na Europa se agrava
O dramático realinhamento da política britânica, durante o verão e o outono de 1931, quando a crise financeira mundial chegou ao auge, foi seguido por uma desilusão muito ampla – uma percepção, particularmente entre os jovens, de que o mundo se movia de novo para a guerra.
O clima sombrio da nação impressionou dessa vez até mesmo o Times. Seu editorial no dia do Ano Novo, no costumeiro estilo opaco, notou a desconfiança do povo quanto aos “usos e futilidades para os quais o Parlamento se volta” e a tendência em comparar a situação da época com a de 1914. A tendência fascista era percebida até entre os socialistas, segundo C.E.M. Joad, e deixava o país mais vulnerável a um movimento autoritário que poderia ser o prelúdio do fascismo inglês. Fatos ocorridos no final desse ano confirmariam em parte seus temores.
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Corte no seguro-desemprego pode salvar país da crise
Em 22 de agosto, os ministros do gabinete, chamados de volta a Londres, saíram de seus refúgios de verão, na Escócia e na Riviera Francesa, para uma reunião de emergência. Ao longo do mês, tinha havido uma corrida secreta aos bancos, que a imprensa encobriu, e o Tesouro se via sob a ameaça de ficar sem dinheiro.
O déficit destruíra a fé no sistema monetário, e os bancos estrangeiros recusavam-se a conceder novos empréstimos, a não ser que se impusessem drásticas economias ao governo e ao povo. O maior centro financeiro do mundo estava à beira de um colapso.
Levados por essas previsões sinistras, os ministros decidiram economizar, mas não chegavam a um acordo sobre como fazê-lo. Uns queriam impostos mais altos sobre os ricos, outros um imposto sobre importação. A maioria era a favor de um corte no seguro-desemprego, benefício mensal então pago a 2,7 milhões de trabalhadores, mas uma minoria expressiva se opôs.
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O luxo particular dos ricos não é supérfluo
Ao relatar a crise em seu diário, Beatrice Webb sintetizou a indignação sentida pelos esquerdistas-socialistas. Segundo ela, os cortes na previdência social foram feitos às expensas dos pobres, que eram politicamente muito fracos para defenderem seus interesses. Os ricos permaneceram totalmente ilesos e continuaram a desfrutar de seus prazeres e privilégios. O luxo particular dos riscos aparentemente não é um gasto supérfluo, concluiu Beatrice.
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A autora escreve em português do Brasil
Leia a Parte 2/3