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Sábado, Outubro 5, 2024

Virgínia Woolf: Todo artista vai à guerra

Christiane Brito, em São Paulo
Christiane Brito, em São Paulo
Jornalista, escritora e eterna militante pelos direitos humanos; criou a “Biografia do Idoso” contra o ageísmo.  É adepta do Hip-Hop (Rap) como legítima e uma das mais belas expressões culturais da resistência dos povos.

Digo que foi um ato extremo de resistência e não de desistência, expressou o sofrimento que as guerras podem causar ao povo. E aos artistas que não fogem da luta!

Manchete do New York Times anuncia desaparecimento da escritora
Manchete do New York Times anuncia desaparecimento da escritora

Uma cobra abocanha um sapo, que fica entalado na sua garganta. A cobra é voraz, o sapo não se entrega, a cobra engasga e enjoa. O sapo agoniza.

Esta imagem real, que a escritora britânica Virginia Woolf presenciou com seu marido, Leonard, num brejo próximo a Londres, acompanhou-a até o final da vida, tornando-se uma cena de seu último livro, “Pointz Hall”.

Representa o imperialismo de todos os tempos, vitimando países e populações, além de culturas. E extirpa os valores humanos pela raiz a pretexto de salvar o homem.

Corrida aos bancos alemães, 1930
Corrida aos bancos alemães, 1930

Na época da visão da cobra e o sapo, início dos anos 1930, uma crise econômica de grandes proporções assolava a Inglaterra e o mundo capitalista. Estopim da bomba? De uma delas, são tantas, e quando finalmente nos alvejam é tarde demais. São ignorados todos os sinais de decadência de valores e de acirramento de sentimentos extremistas.

A guerra é insidiosa e se entremeia ao cotidiano com suavidade tenaz, em princípio, escamoteando a realidade, sempre com a cumplicidade da mídia de velas infladas na direção de ventos e interesses a favor.

Virginia tinha seu próprio e obstinado modo de leitura do noticiário, discernindo fato de fantasia. Temia tanto a invasão nazista quanto a propaganda inglesa e sua fogosa produção de heróis. Os heróis de hoje, pensava, talvez sejam os párias de amanhã, tocando realejos para sobreviver. Sabia, por experiência, como é sinistro o destino dos veteranos de guerra.

Virginia atravessou as sombras do cotidiano em meio às cisões, “a separação entre os reinos da grandeza e da pequeneza”.

Nessa gangorra de sobressaltos, as contradições se aguçavam, especialmente na alma de uma artista como Virginia. Ela então milita, revê padrões, viaja ao passado na falta de perspectivas para o presente, resgata a dor que acalentou a duras penas na vivência da Primeira Guerra.

Psicanalisa, conclui que o peso do sofrimento do pai, também escritor, a condenou a viver em uma estufa emocional e intelectual. Que finalmente se estilhaça na chegada dos 50 anos.

Virgínia com o pai, Sir Leslie Stephen
Virgínia com o pai, Sir Leslie Stephen

Todas as vaidades são menos que um caramujo na Zínia“, escreveu Virginia Woolf a sua irmã, Vanessa, nessa idade, redimensionando os campos e superposições da existência.

Alardeou que o alheamento não é alternativa para o artista, um ser amalgamado com as paixões humanas, por isso mesmo aprofunda a sensibilidade em tempos de sofrimento. A saída é optar pelo caminho possível, que é a política. E Virginia o trilhou.

Persistiu, produziu muito, sofreu e enlutou nos anos que finalmente culminaram na guerra declarada e em uma sociedade em desordem, na qual o suicídio era assunto corrente. Em 14 de junho de 1940, as tropas nazistas tomaram a cidade de Paris, acuando a escritora e toda sua esperança de livramento do desespero interior.

Em 28 de março de 1941, retomando a cobra e o sapo, que a levaram a um pesadelo em que uma pessoa se lançava ao mar, descobriu que essa pessoa era ela mesma. Mergulhou no lago com pedras nos bolsos, asfixiou-se com a água e com a genialidade que escapa a classes sociais, escolhas políticas e, sobretudo, à mesquinhez da raça humana. Não quis punir ninguém, deixou cartas de amor para o marido e a irmã.

“Se eu não sofresse tanto, não poderia ser feliz” (Virginia Woolf, em seu diário)

A guerra em capítulos

A escritora britânica detalha em seu diário o passo a passo da silenciosa preparação da guerra, na década de 1930. Os textos foram reproduzidos em “Virginia Woolf, a medida da vida”, biografia de Herbert Marder.

O relato é didático, mostra como o espectro da guerra é tão devastador quanto a própria e leva a alma do artista, obrigatoriamente, a se engajar na política.

Reproduzi aqui os fatos do livro, em ordem cronológica, como se fossem manchetes de jornais. Qualquer semelhança com os acontecimentos recentes no mundo e na Europa pode não ser mera semelhança.

Crise financeira na Europa se agrava

Manifestantes contra o despejo de família pobres, Chelsea, Inglaterra,1930
Manifestantes contra o despejo de família pobres, Chelsea, Inglaterra,1930

O dramático realinhamento da política britânica, durante o verão e o outono de 1931, quando a crise financeira mundial chegou ao auge, foi seguido por uma desilusão muito ampla – uma percepção, particularmente entre os jovens, de que o mundo se movia de novo para a guerra.

O clima sombrio da nação impressionou dessa vez até mesmo o Times. Seu editorial no dia do Ano Novo, no costumeiro estilo opaco, notou a desconfiança do povo quanto aos “usos e futilidades para os quais o Parlamento se volta” e a tendência em comparar a situação da época com a de 1914. A tendência fascista era percebida até entre os socialistas, segundo C.E.M. Joad, e deixava o país mais vulnerável a um movimento autoritário que poderia ser o prelúdio do fascismo inglês. Fatos ocorridos no final desse ano confirmariam em parte seus temores.

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Corte no seguro-desemprego pode salvar país da crise

Passaporte de Nansen, usado por 40,1 milhões de refugiados sem-pátria entre 1914 e 1945, na Europa e Ásia
Passaporte de Nansen, usado por 40,1 milhões de refugiados sem-pátria entre 1914 e 1945, na Europa e Ásia

Em 22 de agosto, os ministros do gabinete, chamados de volta a Londres, saíram de seus refúgios de verão, na Escócia e na Riviera Francesa, para uma reunião de emergência. Ao longo do mês, tinha havido uma corrida secreta aos bancos, que a imprensa encobriu, e o Tesouro se via sob a ameaça de ficar sem dinheiro.

O déficit destruíra a fé no sistema monetário, e os bancos estrangeiros recusavam-se a conceder novos empréstimos, a não ser que se impusessem drásticas economias ao governo e ao povo. O maior centro financeiro do mundo estava à beira de um colapso.

Levados por essas previsões sinistras, os ministros decidiram economizar, mas não chegavam a um acordo sobre como fazê-lo. Uns queriam impostos mais altos sobre os ricos, outros um imposto sobre importação. A maioria era a favor de um corte no seguro-desemprego, benefício mensal então pago a 2,7 milhões de trabalhadores, mas uma minoria expressiva se opôs.

(…)

O luxo particular dos ricos não é supérfluo

Refugiada, viúva, e seus filhos (NY) em foto da premiada Dorothea Lange
Refugiada, viúva, e seus filhos (NY) em foto da premiada Dorothea Lange

Ao relatar a crise em seu diário, Beatrice Webb sintetizou a indignação sentida pelos esquerdistas-socialistas. Segundo ela, os cortes na previdência social foram feitos às expensas dos pobres, que eram politicamente muito fracos para defenderem seus interesses. Os ricos permaneceram totalmente ilesos e continuaram a desfrutar de seus prazeres e privilégios. O luxo particular dos riscos aparentemente não é um gasto supérfluo, concluiu Beatrice.

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A autora escreve em português do Brasil
Leia a Parte 2/3

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