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Sábado, Outubro 12, 2024

XX Festival de Cinema Luso-Brasileiro

José M. Bastos
José M. Bastos
Crítico de cinema

XX Festival de Cinema Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira

No passado dia 01 de Dezembro foi publicado neste jornal um texto sobre o FESTin – Festival de Cinema Itinerante da Língua Portuguesa que teve uma edição nas cidades brasileiras de Redenção e Fortaleza, ambas do Estado de Ceará.

Cinema Luso-Brasileiro

O estreitamento das relações entre as cinematografias de Portugal e o Brasil é também o mote do Festival de Cinema Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira, promovido pelo Cineclube da Feira e  cuja vigésima edição começou no dia 4 tendo o seu termo no próximo domingo.

O XX Festival de Santa Maria da Feira é, mais uma vez, a prova provada que, com meios escassos mas com muito trabalho e muito amor ao cinema, é possível erguer uma manifestação cultural indiscutivelmente importante

Na sessão de abertura, com a sala da Biblioteca Municipal completamente cheia, o director do certame, Américo Santos, fez uma breve revisão dos vinte anos de Festival e foi lida uma mensagem do cineasta brasileiro Walter Salles. Foi também tempo de vários agradecimentos tendo sido chamados ao palco os dois presidentes da câmara municipal e os vereadores que apoiaram o festival nas últimas duas décadas. Particularmente tocante a homenagem ao foto-jornalista feirense Manuel Azevedo, falecido há poucos dias, grande colaborador do festival.

Sessões

Abertura: Elis

O primeiro filme a ser exibido foi a longa-metragem da secção de competição, “Elis”, realizado pelo brasileiro Hugo Prata. A vida de Elis Regina, uma das maiores cantoras brasileiras de todos os tempos, é plasmada num trabalho de assinalável destreza narrativa e com uma interpretação superlativa da actriz Andreia Horta. A “acção” começa com a chegada da gaúcha Elis ao Rio de Janeiro, acompanhada do pai. A luta pelas primeiras oportunidades de cantar em público, os tempos de cantora consagrada e a trágica morte aos 36 anos são marcos de uma vida atribulada que é retratada na película.

Mulher extremamente determinada, muitas vezes excessiva, Elis abriu um caminho alternativo à “bossa nova”, lutou como pôde contra a ditadura militar e teve uma vida familiar e amorosa muito tumultuosa. “Elis” é uma ficção com base documental e a música é, obviamente e para gáudio do espectador, presença constante ao longo das quase duas horas de projecção. A presença do realizador e da actriz protagonista ajudou a fazer da primeira sessão do festival, para além dum bom momento de cinema, uma oportunidade de começar em festa esta edição jubilar.

Encerramento: Chico – Artista brasileiro

Outro nome enorme da MPB será o foco do filme de encerramento a exibir na sessão de entrega de prémios que terá lugar na noite de domingo, 11 de Dezembro. Nessa altura será exibido “Chico – Artista brasileiro” película de Miguel Faria Júnior. O artista é obviamente Chico Buarque de Hollanda.

Programação

São vinte anos a cruzar o Atlântico e a aproximar as cinematografias e as culturas de Portugal e do Brasil

Mas como o festival não vive apenas de filmes sobre cantores, fazemos de seguida uma breve referência à programação. A competição está desdobrada em longas e curtas metragens.

Longas metragens

Entre as primeiras encontramos, por exemplo, “Mãe só há uma” da brasileira Anna Muylaert (de que já falámos a propósito do festival de Valladolid, onde foi multi-premiada), “A Cidade onde envelheço”, que vimos em San Sebastián, co-produção luso-brasileira de Marília Rocha, que conta a história de uma jovem lisboeta que vivendo no Brasil não consegue esquecer a cidade natal ou “A Serpente” de Jura Capela, baseado em obra de Nélson Rodrigues.

Curtas metragens

As curtas são, maioritariamente, de autores que agora se estreiam na realização. O “Festival da Feira” cumpre assim o desígnio de dar a muitos jovens criadores a oportunidade de serem descobertos.

Outras sessões…

Uma abordagem da obra ficcional de Leon Hirszman, expoente do “cinema novo brasileiro” e falecido em meados dos anos 80 é outro dos pontos fortes do certame. “São Bernardo”, filme de 1972, que chegou a ter distribuição comercial em Portugal, e “Eles não usam black-tie” de 1981, premiado em Veneza e que vimos num Festival da Figueira da Foz, são alguns dos trabalhos que agora poderão ser vistos.

O já referido escritor Nélson Rodrigues terá filmes baseados em obras suas espalhados por várias secções do festival e o documentário volta, este ano, a ter uma área específica de divulgação.

Particularidade desta edição jubilar é a existência da secção “Vintage” que relembra filmes que marcaram o festival ao longo destes vinte anos.

20 anos essa noite

A mensagem enviada pelo cineasta brasileiro Walter Salles, um dos realizadores mais premiados do cinema brasileiro

““Não somos nem europeus nem norte-americanos. Privados de cultura original, nada nos é estrangeiro pois tudo o é”, dizia o critico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes, mentor de vários realizadores do Cinema Novo brasileiro.

O Festival Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira, que Américo Santos e Cristina Mota criaram há 20 anos e desenvolveram com um olhar ao mesmo tempo agudo e afetivo, soube como poucos desvendar o nosso desejo de refletir uma identidade nacional em construção na tela. Cinema plural, impuro, de correntes que muitas vezes colidem mas convergem na busca de um reflexo multifacetado de nós mesmos. Das nossas contradições, imperfeições e querências, dos embates sociais, políticos, existenciais que nos caracterizam.

O cinema como a arte do desvendamento, da percepção de que o mundo pode ser muito mais amplo do que imaginávamos, é um sentimento de mão dupla em Santa Maria da Feira. Sem o Festival, não teria me encantado com os filmes de Paulo Rocha, João Nicolau e João Salaviza, e não teria descoberto um realizador tão sensível e singular quanto Miguel Clara de Vasconcelos, de quem guardo “Vila do Conde Espraiada” comigo até hoje. Imagino que muitos cinéfilos e cineastas portugueses e brasileiros tenham vivido uma experiência similar – a do descobrimento, que é constitutiva do Festival Luso-brasileiro de Santa Maria da Feira.

A relação histórica entre portugueses e brasileiros foi construída “num misto de reconhecimento e estranhamento”, disse recentemente uma das curadoras do Instituto Inhotim, a portuguesa Marta Mestre. “Brasil e Portugal são países que, por razões históricas, sempre se olharam e se olham”. Às vezes, não o suficiente. Com a distribuição incerta do cinema independente e portanto do cinema português no Brasil, o Festival Luso-brasileiro de Santa Maria da Feira oferece aos cinéfilos brasileiros a rara oportunidade de descobrir uma cinematografia tão original e vital quanto a que é realizada por jovens realizadores na terra do mestre Manoel de Oliveira. O contra-campo cumpre a mesma função, creio.

No nosso desejo de cinema, somos próximos. O cinema, como a literatura, existe para nomear aquilo que ainda não foi nomeado – seja em Portugal ou no Brasil. Para oferecer uma memória possível de seu tempo. De quem nós somos, ou fomos, em momentos distintos das nossas histórias. E, quando o olhar pertence a visionários como Glauber Rocha ou João Cesar Monteiro, de antever quem poderíamos eventualmente ter sido.

Ouve-se recorrentemente no Brasil que “somos um país sem memória”. O Festival, em sentido contrário, instiga o espectador a construir a sua própria memória do cinema brasileiro – e, portanto, do país. Não por acaso, uma retrospectiva de Leon Hirszman abre as portas, esse ano, para a obra de um cineasta que pensou nossos conflitos morais e sociais com uma pertinência rara. Justo no momento em que o país atravessa uma crise ética e moral sem precedentes. “Ultimas Conversas”, do saudoso Eduardo Coutinho, para muitos o maior documentarista brasileiro de todos os tempos, mergulha nas incertezas dessa era, dando voz a adolescentes que expressam seus desejos e angustias numa terra em transe.

De forma similar, as retrospectivas de realizadores tão extraordinários quanto João Cesar Monteiro ou Pedro Costa nos possibilitaram um mergulho em universos únicos, possibilitados por uma incomum liberdade e independência artística.

“É sempre mais difícil ancorar um navio no espaço”, dizia Ana Cristina Cesar, uma das mais brilhantes poetisas brasileiras. Realizar um festival de cinema não é, igualmente, uma tarefa simples. Américo e Cristina projetaram um Festival no espaço do cinema, que é também o da imaginação. E souberam reinventá-lo, generosamente, a cada ano. Por tudo e por tanto, só nos resta agradecer.

“Salaam Cinema”, Viva o Cinema, e longa vida ao Festival Luso-brasileiro de Santa Maria da Feira.”

Walter Salles

Informação adicional

Contactos
+351 911 907 000
+351 256 377 030 (durante o festival)
[email protected]
Localização
Auditório da Biblioteca Municipal
Av. Belchior Cardoso da Costa
4520 Santa Maria da Feira

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