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João de Sousa

Quinta-feira, Abril 25, 2024

4 de Fevereiro

Rogério V. Pereira
Rogério V. Pereira
Estudou Engenharia Química no Instituto Superior de Engenharia de Lisboa. Começou a trabalhar como Técnico de Organização Industrial e terminou no topo da carreira, como sénior manager, nas áreas da consultoria em organização e gestão.

Dez da noite e o moto-gerador foi desligado. Na messe aprontaram-se os dois petromax mas apenas um funcionou pois a «camisa» de um deles danificou-se irremediavelmente.

Nada perturbados pela reduzida iluminação, a mesa da «lerpa» continuou a jogar sem qualquer interrupção ou outro lamento que não fosse as queixas pelo azar ao jogo distribuído pela «mesa».

Noutro lado, mais iluminado, o grupo de leitura fazia o que sempre fizera naqueles serões da retaguarda da luta. Lia. Eu, por meu lado, entretinha-me com distracções menos frequentes como seja acompanhar borboletas e abelhões esvoaçando à volta da luz como se a pretendessem devorar, oferecendo-nos em troca a escuridão.

Tinha voltado, desde o Natal, ao costume de ter quase sempre o copo de uísque na mão e dentro, outra vez a simular gelo, a bala de G3 *. O tilintar do metal no vidro continuava a sugerir maior frescura na bebida e assim estava.

O furriel Alma Séria levantou-se de repelão como que sacudido por uma decisão. Pegou no velho rádio de pilhas a um canto e ligou-o no posto já sintonizado mas com ruídos e interferências. Pacientemente procurou melhorar a sintonia o que conseguiu. Música congolesa.

Mil tentativas tinham sido já ensaiadas, mil vezes sem sucesso de apanhar outros postos que não fossem emissoras do Congo ou da Tanzânia. «Desliga essa porcaria», reclamou o furriel Alma Redonda, enxofrado pelo mau jogo que lhe tinha calhado.

«Desculpa pá, mas hoje tenho de ouvir os gajos.» Não percebi o porquê da importância daquele dia para a audição, mas não fiquei muito tempo na ignorância do significado da data. Segundos depois um hino conhecido fazia-se ouvir sem atrapalhar os afazeres e de seguida as palavras de abertura do programa: «Camaradas e companheiros de luta, boa noite.» (…) O noticiário irritou o sargento Meia Alma: «Calem-me essa gaja, não sei como podem aguentar essas lavagens ao cérebro.»

Mas ninguém desligou o rádio. Acho que todos ignoraram o que consideravam propaganda: número de vítimas provocadas nas nossas tropas; deserções; a laudatória aos actos heróicos das forças do MPLA.

Nossas mentes foram só perturbadas quando chegou a descrição dos acontecimentos de 4 de Fevereiro de 1961 num texto de Mário de Andrade lido com ensaiado dramatismo e que acabava assim:

«…A vida de um africano não contava, nessa época, mais do que a de um cão. Para o fim de Fevereiro, uma noite, os civis portugueses, enfurecidos, acabaram por pôr fogo aos bairros africanos. Sulcavam a cidade em viatura, armados de espingardas de caça e de bidons de gasolina. Os habitantes que procuravam escapar às chamas caem pelas balas, que não poupavam nem as mulheres nem as crianças. Nenhuma família angolana escapa a estes dias sangrentos de Fevereiro. Várias fontes insuspeitas alvitram a cifra das vítimas deste primeiro genocídio perpetrado em Luanda: 3000 mortos.»

Perturbadas também ficaram as mentes do furriel Alma Séria e do Alma Boa pela leitura de partes do texto da Resolução da ONU de 1966, condenando a política colonial portuguesa e apelando ao reconhecimento à autodeterminação das colónias.

Reparei que todos tinham parado o que faziam quando terminou o programa, com a palavra de ordem do costume: «A luta continua e a vitória é certa.» O sargento Meia Alma, levantou-se pousando as cartas dizendo contristado: «Vou-me deitar. Já devia estar deitado.» Eu e todos lhe seguimos o exemplo, silenciosos.

No meu banco ficou um copo com uma bala de G3 dentro, sem se derreter*…

Rogério Pereira, in “Almas Que Não Foram Fardadas”, pág. 73
Edição “Espaço e Memória” – 2012

(*) o autor tinha por uso beber uísque com uma bala dentro. Rodando o copo, o tilintar do metal no vidro lembrava o gelo (que raramente havia)

Nota do Director

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