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Terça-feira, Abril 30, 2024

A poesia transformada em floresta de signos

A poeta e professora de Filosofia Iolanda Costa é autora do livro de poemas, Colar de Absinto, que revela densidade formal e temática. A autora baiana, residente em Itabuna, revela um olhar barroco, que captura e transforma as imagens numa floresta de signos.

Colar de Absinto, novo caderno de poemas de Iolanda Costa, apresenta, já no título, uma expressiva metáfora, que aproxima duas ideias – artesanato e alucinação. O trabalho poético da autora parece ser regido exatamente por esses dois demiurgos: o poeta-artífice, que trabalha o poema com rigor e delicadeza até a obtenção da beleza; e o poeta-vidente, que revela ou ritualiza suas epifanias numa escrita delirante. É possível evocarmos, aqui, a figura tutelar de Edgar Allan Poe, para quem a poesia é “construção precisa do impreciso”, síntese de arquitetura e delírio, matemática e imaginação.

O singular engenho da poeta baiana, porém, nada tem em comum com a escrita automática do surrealismo; ele se manifesta em imagens próprias de um barroco moderno, mestiço, que incorpora referências sagradas e profanas, da zoologia, da botânica, da filosofia (com apetite omnívoro!), numa mitologia pessoal única, inconfundível. No poema Capítulo XV, por exemplo, ela escreve:

“Entre as orquídeas 
e os sáurios 
prefiro fechar o livro 
e acompanhar-te, calorosa”.

Numa peça lacunar, de apenas quatro linhas, ela consegue construir a narrativa poética a partir de poucas imagens e de um interlocutor amoroso que permanece oculto na composição.

Em outra peça, menos sutil, com laivos expressionistas, Iolanda Costa escreve:

“Teu salmo de mil escárnios 
ruiu (…) 
Não ririas. 
Carne-viva-chaga exposta. 
O sexo arrancado do meio das pernas”

Que nos faz pensar na fúria pictórica de um Gottfried Benn. O virtuosismo da autora de Coral de Absinto, porém, não radica apenas no campo imagético: ele se revela no excêntrico vocabulário, na sintaxe fraturada, em imprevistas elipses, no tom lacunar e sobretudo no caráter enigmático dos poemas, que devem ser decifrados como inscrições rupestres pelo leitor, alçado à condição de intérprete. Estamos imersos numa floresta de signos barrocos, onde a lógica reinante é lúdica, como numa sala de espelhos deformantes ou num labirinto vegetal, que deve ser percorrido até chegarmos ao centro.

Neste conjunto inusitado de mistérios semânticos, deparamo-nos com peças dedicadas ao amor, à morte, à filosofia e ao divino; não se trata de uma simples reunião de códices autônomos, pois as quatro células temáticas, ou ideias fixas, de Iolanda Costa (para citarmos o subtítulo da Faca Só Lâmina de João Cabral de Melo Neto) mesclam-se muitas vezes, como as pedras de um caleidoscópio que se misturam quando o tubo é manipulado pelo espectador, formando diversas formas geométricas e cromáticas.

No poema Sortilégio, por exemplo, temos a “doce espádua nua” das que “copulam as sete luas”, mas também o “geômetra dos sólidos”, as “Causas Primeiras” e “o colo ungido em ceia mística”, numa simbiose entre o erótico e o sapiente; e no poema Origem, de título já cosmogônico, encontramos um “demiurgo vestido de cosseno” que é “uma menina espessa no espelho”; o Ser “extraído das formas” e “nua, a fenda-lua” que “alinha, da caverna de sombra / o seu grafema de sol”.

A alquimia poética de Iolanda Costa realiza a fusão das células temáticas, obtendo a pedra filosofal de uma linguagem rutilante, que se destaca pela originalidade e ousadia na produção poética brasileira mais recente. É preciso citar, ainda, os belíssimos poemas Violinos que Miam (“últimas horas dessa cronologia / obsoleta / travessia de tempo retirado. / nenhuma praia do sul / arderá em mim / mais que a poesia torta / encurvada em pélvis / e em pêlos / – nossos sais. / a poeta, o colchão / o violino e seus miados”) e Dor, este último de feitio minimalista, que poderia ser apreciado por William Carlos Williams (“Se já não estivesse / na carne / estaria, certamente / nas folhas / de vermelho translúcido / das amendoeiras”).

São muitas, porém, as flores raras nesse orquidário extemporâneo, que deve ser lido como um grimório, ou livro de magia, onde evocamos todas as falanges de seres-de-linguagem, prontos a nos surpreender com as revelações que trazem de outros mundos.


por Claudio Daniel, Poeta, tradutor e ensaísta, é formado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, com mestrado e doutorado em Literatura Portuguesa pela USP, além de pós-doutor em Teoria Literária pela UFMG  | Texto original em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado


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