Presente.
Contributos para a reflexão sobre a situação atual, sobre a gestão pública e sobre caminhos para o futuro
O presente artigo tem como base a experiencia de um percurso profissional que se cruzou várias vezes pelas Administrações Públicas (Central e Local) mas que se desenvolveu essencialmente no setor privado e, agora, como membro do conselho diretivo de um Instituto Público eleito pelos representantes dos beneficiários.
É um olhar de quem agora está dentro mas esteve muito tempo fora podendo, por isso, ser diferente daqueles que estiveram sempre na Administração Pública. É com a convicção de que este olhar diferente poderia ser útil para uma reflexão sobre a situação atual da Administração Pública Portuguesa e sobre os desafios atuais e futuros que aceitei o convite para passar as minhas reflexões para o papel sobre este setor tão importante para o país e para a vida dos portugueses.
Espero que elas, que traduzem a minha experiência, dentro e fora da Administração Publica, e o meu pensar sobre ela, possam ser úteis para reflexão coletiva. É esse o meu único objetivo.
A importância que tem a Administração Pública num país, pouco desenvolvido e desigual, como Portugal
Antes de entrar no “core” das minhas reflexões, quero que fique claro que considero que a Administração Pública (Central, Local e Regional) tem um papel insubstituível a desempenhar nomeadamente num país como o nosso, pouco desenvolvido e muito desigual, não só na disponibilização de serviços essenciais aos portugueses (saúde, educação, segurança social, segurança de pessoas e bens, etc.), mas também no combate às desigualdades (tornando esses serviços indispensáveis a uma vida digna acessíveis a toda a população pois se não fossem públicos muitos portugueses seriam excluídos deles), e igualmente na mobilização de toda a sociedade para vencer com êxito os grandes desafios que enfrenta o país, no campo da inovação, do crescimento económico, do progresso, do bem estar dos portugueses e da independência nacional.
E isto com maioria de razão quando o país enfrenta grandes atrasos em setores importantes e quando a sociedade civil necessita do apoio, do estimulo e mesmo da direção do Estado para vencer a profunda crise que enfrenta.
Ser trabalhador da Administração Pública devia ser motivo de orgulho e de motivação, e os portugueses deviam reconhecer a função necessária e insubstituível da Administração Pública que se tornou visível e clara no combate à grave crise de saúde pública causada pelo “COVID 19” assim como no apoio aos trabalhadores, famílias e empresas atingidas pela grave crise económica e social causada pela pandemia, o que só foi possível com o trabalho inestimável dos profissionais de saúde e de todos os trabalhadores da Função Pública.
E também para enfrentar com êxito os desafios futuro, a Administração Pública e os seus trabalhadores têm um papel fundamental e insubstituível a desempenhar como a vida certamente mostrará. Mas para isso é necessário repensar, a nosso ver, todo o funcionamento da Administração Publica, dotá-la dos meios necessários, e valorizar e investir fortemente nos seus trabalhadores.
A “terapia de choque” a que foi submetida a Administração Pública na última década e seus efeitos condicionadores atuais
Em qualquer organização a parte mais importante são as pessoas, a sua formação base, a sua competência e a sua motivação. Pensar que se pode realizar ou introduzir processos inovadores de cima para baixo, realizados por minorias que se consideram esclarecidas e iluminadas, ignorando ou subestimando o papel da maioria das pessoas acaba sempre ou por não se alcançar os objetivos desejados ou produzir resultados que ficam muito aquém dos esperados.
Para poder compreender, a meu ver, a situação e a capacidade das Administração Pública para responder aos grandes desafios que o país que enfrenta, como a crise de saúde publica, económica e social causada pelo “coronavírus” que mobiliza todo ou quase todo SNS, até porque não há alternativa, “descurando” a assistência médica à população em outras patologias, porque não existe nem organização, nem recursos, que são escassos, para responder a tudo, é importante analisar os sucessivos choques que a Administração Pública sofreu na última década e, nomeadamente os seus trabalhadores, que é a sua componente mais importante pois, caso contrário, corre-se o risco de tomar os desejos pela realidade.
A “terapia de choque” a que foi submetida a Administração Pública Portuguesa na última década teve e tem efeitos enormes na situação dos seus trabalhadores, nas suas condições de trabalho e de vida, que ainda não foram totalmente revertidos, e condicionam, a meu ver, a capacidade daquela para responder com eficácia à crise atual e aos grande desafios que o país enfrenta no futuro.
O primeiro grande choque que a Administrações Pública sofreu foi a redução significativa dos seus efetivos (trabalhadores) num curto período de tempo, por razões que não tiveram nada a ver com a necessidade de a adequar à dimensão dos serviços prestados à população e às do país. Embora as necessidades dos cidadãos em serviços não tivessem diminuído, pelo contrário até aumentaram devido à crise económica e financeira de 2008, reduziu-se drasticamente o nmero de trabalhadores fundamentalmente por razões economicistas, ou seja, com o objetivo de reduzir a despesa pública e, desta forma, conseguir uma redução significativa do défice orçamental.
Um processo muito semelhante ao que se verifica no setor privado que, quando é necessário reduzir custos, começa-se quase sempre por reduzir as despesas com pessoal, que é o mais fácil de fazer, esquecendo-se que isso tem consequências graves no funcionamento dos serviços perdendo-se assim, muitas vezes, competências e saberes acumulados ao longo de muitos anos e de difícil substituição.
A Administração Pública sofreu, no período 2011/2014, uma “sangria” de trabalhadores que os dados da DGAEP constantes do gráfico revelam com clareza e que ainda não foi totalmente revertida apesar dos esforços feitos nos últimos anos pelo governo.
Gráfico 1 – Variação do total dos trabalhadores das Administrações Públicas – 2011/2020 – Fonte: DGAEP
Entre 2011 e 2014, portanto em apenas 3 anos, o número de trabalhadores das Administrações Publicas sofreu uma redução de 71.409, sendo 54.233 na Administração Central e 13.011 na Administração Local. Para conseguir isso o governo de então estabeleceu uma regra famosa e conhecida por “saem 2 e entra 1” que depois foi substituída pela regra “saem 3 e entra 1”. E a saída “voluntária” de milhares de trabalhadores das Administrações Públicas foi conseguida utilizando vários meios.
Em primeiro lugar, por meio da destruição iniciada em 2008, e mantida nos anos seguintes, das carreiras que existiam substituindo-as por uma Tabela Remuneratória Única, publicada na Portaria nº 1553-C/2008, com 115 níveis remuneratórios. Por exemplo, a “carreira” de Técnicos superiores que, em 2019, incluía 67.965 trabalhadores, é constituída por 14 níveis remuneratórios (situavam-se no intervalo de 11º a 57º), desconhecendo a especialidade de cada um destes técnicos superiores.
Assim, por ex., em serviços de auditorias encontravam-se técnicos superiores cuja formação base é normalmente direito e economia, etc., mas sem qualquer formação base de auditoria. E o que se se disse em relação à auditoria aplica-se “mutatis mutandis” a muitas outras situações. Seria importante e esclarecedor analisar a adequação da formação base com as funções desempenhadas até para se conhecer a situação, que afeta o funcionamento dos serviços, para assim se poder corrigir. A opacidade que existe em relação a esta área tem efeitos negativos no funcionamento dos serviços.
Esta destruição das carreiras, nomeadamente das gerais presentes em todos os serviços, e sua substituição por agrupamentos (AO, AT. TS, etc.) que incluem cada um deles uma multiplicidade de especialidades, por razões fundamentalmente economicistas, no lugar de ter sido realizada uma verdadeira reestruturação de carreiras que era necessário, valorizando os saberes de base e as competências adquiridas pela formação e experiencia, teve também consequências graves quer na produtividade quer na qualidade dos serviços públicos prestados à população. Desta situação apenas escaparam as carreiras especiais, mas mesmo nestas os efeitos desta alteração teve e continua a ter um impacto grande, de que é exemplo paradigmático o que acontece com os profissionais de saúde.
Ao mesmo tempo, um clima generalizado de insegurança foi criado na Administração Pública através de alterações frequentes no regime de aposentação, às vezes mais de uma por ano, que causou uma profunda instabilidade nos trabalhadores pois deixaram de poder prever o seu futuro com um mínimo de segurança. Foram anos em que o número de “aposentações voluntárias” atingiu níveis inimagináveis. E isto porque temendo o agravamento do regime de aposentação milhares de trabalhadores foram obrigados a antecipar a sua aposentação com receio de que o governo aprovasse uma alteração que determinasse uma redução no valor das suas pensões. Foram anos de angústia para milhares de trabalhadores pois sentiram que eram considerados como desnecessários, facilmente descartáveis e o serviço publico que realizavam desvalorizado.
O quadro 1, com dados dos Relatórios e Contas da CGA, mostra a “sangria” que sofreu a Administração Pública nesses anos pela via das aposentações “voluntárias”.
Quadro 1 – Número de trabalhadores que se aposentaram segmentados por motivos – 2010/2018
Entre 2010 e 2014, aposentaram-se 110.106 sendo 50.734 por aposentação antecipada, enquanto no período 2015/2018 aposentaram-se 47.825 trabalhadores sendo apenas 7.989 por aposentação antecipada. No período 2010/2014, saíram anualmente da Administração Pública 10.147 trabalhadores por aposentação antecipada, enquanto no período 2015/2018 a média anual de aposentações antecipadas diminuiu para 1.997, ou seja, mais de cinco vezes menos. Estes números mostram bem as consequências do ambiente de medo e insegurança que se criou na Administração Pública nos anos 2010/2014, cujos efeitos ainda não foram totalmente revertidos.
A aposentação antecipada “forçada” a que muitos trabalhadores foram obrigados está associada a pensões reduzidas por tempo de serviço incompleto a que se juntou mais duas penalizações (uma, pelo facto do trabalhador não ter ainda a idade de acesso à aposentação, o que determina um corte na pensão de 0,5% por cada mês a menos; e outra que resulta da aplicação do fator de sustentabilidade que causa uma redução significativa no valor da pensão). Para além disso, a aposentação antecipada, quando é forçada, determina um corte abruto e não previsto na carreira profissional do trabalhador com consequências muitas vezes dramáticas a nível psicológico só sentidas depois.
As sucessivas alterações no regime de aposentação juntou-se a publicação da Portaria n.º 221-A/2013 que criou o Programa de Rescisões por Mútuo Acordo que abrangeu os trabalhadores da administração direta e indireta do Estado que reunissem cumulativamente as seguintes condições:
- Tivessem idade igual ou inferior a 59 anos;
- Fossem detentores de contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado;
- Estivesses inseridos nas carreiras gerais de assistente técnico e de assistente operacional”.
Esta Portaria levou a milhares de despedimentos por mutuo acordo. E isto porque muitos milhares de trabalhadores para fugir ao stress e à instabilidade a que estavam sujeitos acabaram por aceitar o despedimento, muitos deles tendo-se arrependido mais tarde quando as indemnizações que receberam se esgotaram, não encontravam novo emprego, e já não tinham acesso à aposentação antecipada por não no ativo.
Esta saída em massa, a maioria forçada pelo ambiente de instabilidade e insegurança, num curto período de tempo de tantos milhares de trabalhadores das Administrações Publicas teve, a nosso ver, efeitos enormes fortemente negativos na capacidade da Administração Pública para fornecer, em quantidade e em qualidade, os serviços públicos essenciais que a população e país necessitavam, causando a sua degradação, e para responder aos desafios futuros, situação esta que ainda não foi totalmente superada. E isto por duas razões.
Em primeiro lugar, a redução tão significativa de trabalhadores muitos deles com grande experiência e elevada qualificação, por um lado, reduziu a capacidade dos serviços e sujeitou os que permaneceram a uma sobrecarga de trabalho, que não conseguiram dar uma resposta atempada às necessidades dos cidadãos. E, em segundo lugar, impediu a transferência normal e com tempo da experiência e dos saberes que tinham os que saiam para os novos que entraram ou deviam entrar para os substituir, o que contribuiu para acentuar ainda mais a degradação que se verificou nos serviços públicos e que atualmente ainda recente até porque as necessidades aumentaram.
O aumento de 46.068 trabalhadores registado entre dez.2015 e jun.2020 (gráfico 1), assim como a contratação liquida de mais 4200 profissionais anunciada pelo governo, por um lado, confirma que aquela redução tão elevada de trabalhadores verificada em 2011 e 2014 não teve qualquer racional nem nada a ver com as necessidades do país e dos portugueses a nível de serviços públicos e, por outro lado, revela um esforço para reverter a destruição feita no período anterior.
No entanto, esta redução abruta de trabalhadores, em que o serviço público e os interesses dos cidadãos foram ignorados para alcançar uma rápida redução do défice orçamental, ainda não foi totalmente revertida quer em numero de trabalhadores (o total em junho de 2020 era ainda inferior ao de dezembro de 2011 em 22.573 ) quer em competências que se perderam nesse período até porque as necessidades das Administrações Públicas, nomeadamente em quadros qualificados aumentaram muito devido às profundas transformações a que tem estado sujeita, de que é exemplo a digitalização, e também por causa da grave crise de saúde pública, a que se juntou uma grave crise económica e social.
Toda esta situação foi agravada pelos cortes e congelamentos que sofreram neste período as remunerações dos trabalhadores das Administrações Públicas e pela suspensão da progressão nas suas carreiras.
O gráfico 2 , com dados de todos os trabalhadores das Administrações Públicas, divulgados pela DGAEP , portanto antes de sofreram quaisquer descontos para a CGA ou Segurança Social, para ADSE, e antes da dedução do aumento enorme dos impostos, para utilizar as próprias palavras de um ministro dessa altura, e do efeito corrosivo do aumento de preços verificado neste período teve efeitos dramáticos nas condições de vida e de trabalho dos trabalhadores da Função Pública que ainda estão longe de serem revertidos apesar dos passos dados nessa direção.
Gráfico 2 – Variação do ganho média mensal nominal (antes de descontos e do IRS e da dedução corrosiva do aumento preços) dos trabalhadores da Administração Pública 2011/2020 – Fonte: DGAEP
Para se poder compreender as variações no ganho médio mensal dos trabalhadores da Função Públicas constantes do gráfico 2 é preciso ter presente o seguinte:
- Os cortes significativos nos ganhos que os trabalhadores sofreram neste período;
- A decisão do Tribunal Constitucional que anulou os cortes em julho de 2014;
- A reposição dos cortes três meses depois pelo governo;
- A eliminação desses cortes em 2016
- O descongelamento das carreiras em 2018 e 2019 e, a partir dessa data, o aumento geral e transversal das remuneração verificado apenas em 2020 de 0,3% cujo impacto foi praticamente nulo.
Em termos nominais o aumento do ganho médio, entre 2010 e 2020, portanto em 10 anos, foi apenas 7,4% . Neste período, a inflação aumentou 10,2% e registou-se uma enorme subida do IRS, ainda não totalmente revertida, e da contribuição para ADSE que aumentou 133% (passou de 1,5% para 3,5%). É visível atualmente o esforço para reverter, em termos nominais, a situação que existia antes da aplicação da “terapia de choque” a que foram sujeitos os trabalhadores da Administração Pública, embora os trabalhadores continuem com um poder de compra inferior ao que tinham em 2010.
Os trabalhadores das Administrações Públicas sofreram, a nível de remunerações, um tratamento desigual em relação aos trabalhadores do setor privado, o que não podia deixar de ter reflexos na sua motivação e, consequentemente, no funcionamento dos serviços públicos.
A decisão do Tribunal Constitucional de reverter em julho de 2014 os cortes das remunerações aplicados a partir de 1 de Janeiro de 2011, pela Lei 55-A/2010 de 31 de Dezembro, determinou que, durante alguns meses enquanto o governo da altura não repôs de novo os cortes (eles foram reintroduzidos em setembro de 2014, pela Lei nº 75/2014 para remunerações superiores a 1500€), os trabalhadores recebessem, em 2014, durante 3 meses, a remuneração base média e o ganho médio ilíquidos de 2010, respetivamente, 1445€ e 1660€ o que permite, mais à frente comparar o poder de compra atual dos trabalhadores da Administração Pública com o que tinham naquele ano.
Só em 2016, por força da Lei n.º 159-A/2015 de 30 de dezembro de 2015, são revertidos gradual e definitivamente os cortes de 2014 (40% em 1 de jan.; 60% em 1 de abril; 80% em 1 de julho; e eliminação completa da redução remuneratória em 1 de outubro de 2016). Em 29 de Dezembro de 2017, pela aplicação da Lei 114/2017 são “descongeladas as carreiras e os pagamentos dos acréscimos são feitos de uma forma faseada, a saber: (a) Em 2018, 25% em 1 de janeiro e 50% em 1 de setembro; (b) Em 2019, 75% em 1 de maio e 100% em 1 de dezembro”.
A elevada variação registada no ganho médio dos trabalhadores da Administração Pública também se verificou na remuneração base média mensal ilíquida (antes de descontos e da inflação) como revela o gráfico 3 que mostra a variação na remuneração base media mensal nominal dos trabalhadores de todas as Administrações Públicas no período 2010/2020, como consequências das medidas do governo.
Gráfico 3 – Variação da remuneração média base mensal dos trabalhadores das Administrações Públicas – 2011/2020 – Fonte: DGAEP
A instabilidade remuneratória dos trabalhadores das Administrações Públicas foi muito grande neste período, a que se juntou ainda o não pagamento do subsidio de férias e de Natal aos trabalhadores com remunerações superiores a 600€ (as entre 600€ e 1100€ sofreram apenas uma redução, mas as de valor superior a 1100€ não foram pagas de acordo com o artigo 21º da Lei 64-B/2011) que não se encontra traduzida no gráfico anterior, o que determinou uma perda de rendimentos para os trabalhadores (remunerações) estimada, em 2012, em mais de 1.290 milhões €, mais uma consequência da “terapia de choque” a que a Administração Pública foi submetida para reduzir o défice orçamental.
Um aspeto importante ainda a referir, que contribuiu para a situação em que se encontram os trabalhadores das Administrações Públicas, é a ausência, praticamente desde 2009, das atualizações anuais gerais e transversais que eram feitas para impedir a degradação das condições dos trabalhadores causada pela inflação. O quadro seguinte mostra o que se verificou, nessa área muito importante para a vida dos trabalhadores, com reflexos importantes no funcionamento dos serviços no período 2010/2020 bem como o previsto para 2021
Quadro 2 – Aumentos gerais das remunerações dos trabalhadores das Administrações Públicas – 2009/2021
No período 2010/2020 não houve qualquer aumento geral das remunerações nominais de todos os trabalhadores, com exceção de 2020 que foi apenas de 0,3%, com efeito muito reduzido. E, em 2021, mais uma vez acabou por ficarem congeladas, o mesmo sucedendo com o subsídio de refeição que não tem qualquer aumento desde 2017.
Numa altura em que os profissionais de saúde são tão elogiados, e com razão, pela forma como estão a salvar vidas de portugueses, arriscando a sua própria vida, é importante conhecer com as remunerações médias mensais destes profissionais variaram entre 2010 e 2020. Os dados são os divulgados pela DGAEP no seu boletim em agosto de 2020, e os valores das remunerações de 2020 referem-se ao mês de abril.
Quadro 3 – Variação da remuneração base média mensal nominal (antes de quaisquer descontos e de deduzir o aumento de preços) dos profissionais de saúde entre 2010 e 2020
Os comentários parecem desnecessários, mas interessa ter presentes que são remunerações nominais (antes de deduzir o efeito corrosivo da inflação) e ilíquidas (antes de quaisquer descontos), pois as remunerações base líquidas destes profissionais altamente qualificados são inferiores às constantes do quadro. Interessa referir que é precisamente esta situação que leva muitos deles a trabalhar também no setor privado de saúde, criando-se assim uma situação de promiscuidade que tem degradado o SNS, e constituindo um importante instrumento de financiamentos dos hospitais privados que pagam a estes profissionais por ato realizado e a “recibo verde” não tendo de suportar outros custos. A exclusividade dos profissionais do SNS com carreiras e remunerações dignas é continua adiada, apesar disso debitar o SNS e se fortalecer o negócio privado de saúde.
Para completar o quadro traçado anteriormente, e para se poder ficar com uma ideia clara e objetiva da evolução das condições de vida dos trabalhadores da Administração Pública, interessa ainda conhecer a evolução do poder de compra das suas remunerações liquidas, já que isso é um importante fator com consequências na motivação dos trabalhadores com reflexos no funcionamento dos serviços públicos.
Para isso, vai-se utilizar os valores das remunerações base medias mensais dos trabalhadores das Administrações Públicas em 2010 (os deste ano, são os de julho 2014 sem cortes) e em 2019. Os resultados obtidos constam do quadro 4.
Quadro 4 – Variação do poder de compra da remuneração média líquida dos trabalhadores das Administrações Públicas, da Central e Local entre 2010 e 2019
No fim de 2019, apesar da reversão dos cortes nas remunerações, e apesar da valorização das carreiras, resultante do seu descongelamento, o poder de compra da remuneração base média liquida dos trabalhadores das Administrações Públicas ainda era inferior à de 2010 em 12,1%. Na Administração Central a quebra do poder compra ainda era de 12,3% e na Administração Local de 8,1% . Em relação aos médicos é evidente que a redução do poder de compra da remuneração base média líquida foi muito maior. Este é um dado importante pois, quer se admita ou não, tem efeitos significativos no funcionamento dos serviços. Não interessa fechar os olhos à realidade.
Para além disto, a ausência das habituais atualizações anuais agravou as desigualdades remuneratórias entre trabalhadores. E isto porque o único instrumento que permaneceu para aumentar as remunerações é progressão nas carreiras, que resulta de um sistema avaliação (SIADAP) que dificilmente permite uma avaliação justa. Mas é essa a única que o trabalhador tem para acumular pontos, e quando atinge 10 pontos tem uma subida obrigatória de nível remuneratório na tabela (TUR) de acordo com o nº 7 do art.º 156 da Lei Geral de Trabalho em Funções Públicas.
No entanto, para esmagadora maioria dos trabalhadores são necessários, em média, mais de 3 anos para somar os 10 pontos, o que significa que durante um período que não deixa de ser longo não tenha qualquer aumento remuneratório.. Interessa referir que os aumentos das remunerações verificados em 2018 e 2019 que abrangeu um numero importante de trabalhadores, devido ao descongelamento das carreiras, resultou da acumulação de pontos pelos trabalhadores durante o período em que as carreiras estiveram congeladas (cerca de 8 anos) e não são irrepetíveis a não ser que se congele novamente as progressões nas carreiras e depois se proceda ao seu descongelamento.
Neste período a tabela única remuneratória nunca foi atualizada, como exceção de 2020 em que se teve um aumento de 0,3% reduzido efeito. Para além, disso, devido ao congelamento geral da TUR, tem se registado uma distorção nos escalões mais baixos da tabela, já que o ultimo é o salario mínimo nacional, e devido ao seu significativo nos últimos anos já levou à eliminação já dos três níveis mais baixos da TUR, o que provoca que os novos trabalhadores da Administração Pública com menor nível de qualificação e com remunerações mais baixas (os TO) recebam uma remuneração igual à de trabalhadores que entraram para a Administração Pública há dezenas de anos e com experiência mais elevada.
Como consequência desta política economista de gestão de “recursos” humanos a parcela da riqueza criada no país (PIB) destinada à remuneração dos trabalhadores das Administrações Públicas tem diminuído ao longo dos anos como mostra o gráfico 4.
Gráfico 4 – Remunerações dos trabalhadores das Administrações Públicas em % do PIB INE
A queda continuada da parcela da riqueza criada anualmente PIB (PIB) aplicada em remunerar os trabalhadores da Função Pública revela, a nosso ver, uma subestimação e o não reconhecimento, em termos objetivos e não subjetivos, do papel fundamental que têm numa Administração Pública moderna e eficiente que responda às necessidades do país e dos portugueses e que seja um instrumento eficaz no combate às desigualdades, tornando serviços essenciais acessíveis a toda a população, na dinamização da economia, no desenvolvimento e independência do país. E não se consegue pagando baixos salários e congelando remunerações até porque as exigências de trabalhadores com elevadas qualificações é cada maior numa Administração Publica em rápida transformação que pretende entrar no caminho de uma crescente utilização de meios digitais.
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