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João de Sousa

Quarta-feira, Março 27, 2024

A ebulição monetária

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

Sinal dos tempos, o Facebook anunciou para o ano que vem o início do seu sistema de pagamentos Libra que na verdade se limitará a tentar trazer para o Ocidente aquilo que as duas principais redes chinesas de internet bancária já fazem há anos dentro e fora de portas.

É sintomático do completo divórcio entre a realidade e a grelha de leitura oficial que, se levássemos a última a sério, teríamos de concluir que ocidente capitalista está a tentar trazer a si as inovações financeiras do comunismo.

A realidade é mais complexa e estamos longe de ser capazes de a apreender cabalmente, sendo que penso estarmos a entrar numa revolução monetária cujos contornos e impactos estão longe de ser claros.

Tudo isto acontece quando em Portugal continuamos a tentar entender a razão pela qual uma elite político-financeira saqueou o país, mandou para as costas do anónimo cidadão a responsabilidade pelo pagamento de uma soma de muitas dezenas de milhões de euros de que a única esperança que temos é que nunca venha a ser paga e se apresta a voltar a fazer o mesmo.

A táctica tem sido a de revelar a verdade parcialmente e a conta-gotas, as soluções como receitas milagrosas ‘sem custos para o contribuinte’, os debates tão fraccionados quanto possível, as contas feitas de forma parcial e enganosa, as responsabilidades ignoradas ou remetidas a um ou outro bode expiatório.

A chamada a uma comissão de inquérito parlamentar dos responsáveis do Banco de Portugal para esclarecer factos relativos à gestão de um dos bancos públicos (eles são virtualmente todos públicos mesmo se de titularidade privada porque vivem dos meios públicos) veio quebrar uma das regras basilares do nosso sistema financeiro, a ‘independência dos bancos centrais’, ou seja, a sua irresponsabilidade perante tudo e todos.

Acompanhei o linchamento público desencadeado pelo jornal Público do anterior Governador do Banco de Portugal por supostamente ser o responsável pelo empréstimo da CGD à Fundação Berardo, linchamento feito com base em afirmações sem base factual; o que não impediu de ser repetida universalmente por praticamente toda a imprensa e redes sociais em procedimento de matilha, numa chicana político-mediática a que infelizmente estamos habituados.

Enquanto isso… Victor Constâncio

Mas enquanto a imprensa se entretém a levantar absurdas acusações, deixou de fora as questões essenciais, em que ele no entanto fez afirmações claras quanto ao funcionamento do sistema político-financeiro, nomeadamente em entrevista que concedeu ao ‘Diário de Notícias’ que não deveriam passar em claro.

A primeira é a do branqueamento das operações de crédito para compra de acções tendo como garantia as próprias acções, como foi feito pela CGD com a Fundação Berardo e, aparentemente, em muitos outros casos, dado que em 2008 o volume de créditos à compra de acções da CGD se elevava a 4.600 milhões de euros.

Na opinião de Victor Constâncio isso não levanta nenhum problema nem em Portugal, nem na Europa nem ‘em todo o mundo desenvolvido’, expressão que ele usa várias vezes no mesmo sentido.

A realidade é que foi esse tipo de especulação financeira a principal responsável pela crise de 1929 e é exactamente ela que o legislador norte-americano proíbe ou restringe fortemente na regulação bancária que se sucede à crise.

A distinção entre ‘banca comercial’ e ‘banca de investimentos’ feita pela regulação bancária norte-americana de 1933 tem exactamente a ver com isso. A banca comercial, aquela que beneficia de uma garantia pública de depósitos, bem como as suas filiais, ficam proibidas de investir em acções e a sua capacidade para emprestar a clientes para o fazer não sendo proibida é extremamente restringida (creio que em resultado dos compromissos políticos necessários à aprovação da legislação). Simultaneamente regula-se de forma extremamente cuidadosa os conflitos de interesses na banca.

O que aconteceu foi que essa legislação foi progressivamente derrogada mercê da pressão dos lobbies financeiros, num movimento de liberalização especulativa consagrado pelo ‘consenso de Washington’ e que é vulgarmente denominado de neoliberalismo.

Aquilo que Victor Constâncio chama de ‘práticas de todo o mundo desenvolvido’ não são mais do que o âmago dessa lógica política que é hoje condenada em todo o mundo e vista justamente como a causa maior dos problemas com que nos confrontamos.

Quem analisar a regulação bancária americana de 1933 verá de forma quase exacta tudo o que deveria ter sido feito e não foi para prevenir o descalabro financeiro português.

Em segundo lugar, Victor Constâncio defende o modelo de regulação vigente e diz que ele foi rigorosamente aplicado no caso em apreciação (Fundação Berardo), e mais diz que faria hoje exactamente o mesmo.

Ou seja, Victor Constâncio confrontado com o completo falhanço do modelo de supervisão que defende diz que está muito bem e que deve continuar como está.

E é esta a mensagem que ficou aqui consagrada: em Portugal tudo continuará na mesma, como se o mundo financeiro não estivesse em total transformação e como se a dimensão da catástrofe financeira não necessitasse de tudo repensar.


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