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Quinta-feira, Abril 25, 2024

A glorificação dos Talibã

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

A concentração de dezenas de milhares de afegãos a tentar desesperadamente a fuga do terror talibã no aeroporto era naturalmente um alvo privilegiado do jihadismo, e em especial da secção local do Estado Islâmico que, na tradição iraquiana, faz dos duplos atentados suicidas contra concentrações populacionais a sua principal imagem de marca.

  1. A invenção dos moderados

Foi há dez anos atrás que dirigi a organização de uma ronda por capitais europeias de uma delegação de mulheres afegãs – encimada pelo ícone da luta de libertação das mulheres afegãs e primeira ocupante do posto de ‘Ministra das Mulheres’ no país após a libertação do primeiro jugo talibã, a Doutora Massouda Jalal – que ela subordinou ao tema: ‘Não há talibã moderados’ tema que usou também de título para o artigo de opinião que escreveu no fim dessa ronda no Wall Street Journal em que premonitoriamente avisava que o processo negocial com os talibãs só poderia acabar em caos.

Já então a diplomacia ocidental se tinha dedicado a propalar o mito dos moderados no Irão (de que nunca prescindiu durante quarenta anos) e que só não continua a ser usado hoje porque o líder do regime iraniano decidiu dispensar essa farsa, agora desnecessária, perante a evidente ausência de vontade do Ocidente em lhe fazer frente.

A leitura do livro ‘Fazer amizade com Hitler’ de Ian Kershaw, o mais consagrado historiador do Nazismo, foi para mim a grande revelação, por explicar como a imprensa britânica, nos anos trinta, conseguiu fazer de Hitler um moderado (os radicais eram Göring ou Göbbels) e, mais ainda, mostrar como ela fez a campanha pela sua entronização como chanceler por Hindenburg, explicando que o poder o iria moderar ainda mais, de acordo com a ‘sábia’ análise do Times de Londres, à época o mais influente jornal britânico.

Como se pode constatar pela leitura atenta da parte que o historiador dedica ao assunto, não se tratou de um deslize, ou de uma análise isolada, mas o consenso que se fez na altura e que é o elemento decisivo para explicar a ascensão do nazismo, elemento que sintomaticamente é totalmente riscado do conhecimento da opinião pública.

Se alguém substituir Hitler por ‘talibãs’ na construção verbal da comunicação social ocidental da época verá como o resultado é muito aproximado ao que se martela em várias línguas e veículos nos dias que correm para santificar os talibã.

Se já em 2011 Massouda Jalal dificilmente se conseguia fazer ouvir, as coisas vieram só a piorar com o tempo. Em 2018, por exemplo, um jornalista do mesmo Wall Street Journal no Afeganistão, explicava-me que seria impensável negar a necessidade negociação com os talibã e fazia a teoria da aproximação Washington-Pequim nessa base.

De lá para cá, quem não fosse favorável ao diálogo com os talibã passou a ser ostracizado e alvo dos mais variados ataques, alguns, assaz violentos, promovidos pelo Jihadismo coberto de cultura woke, plena de politicamente correcto (seria irónico se não fosse trágico o fuzilamento mediático das verdadeiras líderes feministas em nome do pseudo-feminismo woke) e de luta contra a desinformação, a tal ponto que no universo dos especialistas é difícil encontrar quem não repita a cassete de enormidades centradas na moderação talibã.

Mesmo assim, confesso que não estava preparado para ver a entrega da base aérea de Bagram aos talibã ou a concertação de terrorismo verbal com que uma imensa coligação anti natura (com americanos e chineses a liderar) pressionou o presidente afegão a deixar o país e entregar o poder aos talibã, a que assisti em Tashkent a 15 de Julho.

A esse propósito, e retrospectivamente, realce-se a refinada hipocrisia do Presidente norte-americano Biden ao revelar surpresa pelo tão rápido sucesso dos talibã, quando na verdade a surpresa é terem precisado ainda de um mês para tomar Cabul depois de terem sido instados a desaparecer.

O fecho a cadeado da base aérea de Bagram – de longe a principal infraestrutura da presença ocidental no Afeganistão – simultânea a uma campanha de assassinato mediático e político da liderança afegã, era um óbvio convite à tomada do poder pelos talibã. Isso disse-o eu na altura, mas creio que ninguém no seu perfeito juízo o poderia ignorar.

A crença de que os talibã iriam simpaticamente esperar pela saída ordeira dos ocidentais de Cabul antes de tomar a cidade, e que portanto os EUA poderiam antes desfazer-se de Bagram e da liderança afegã, é de tal forma delirante que só se pode compreender pela psicopatia do apaziguamento como aqui defendi.

O ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, se encontrou com o mulá Abdul Ghani Baradar do Talibã em julho

A ordem para avançar decorreu da entronização dos nove comandantes talibã em Tianjin no final de Julho. A liderança chinesa deu assim prioridade à humilhação norte-americana. Significativamente, a primeira declaração chinesa após a queda de Cabul foi dedicada a sublinhar que ela implicava que Taiwan é agora indefensável, não exprimindo qualquer preocupação sobre o comportamento dos nove comandantes talibã que entronizou.

  1. O atentado de 26 de Agosto

A concentração de dezenas de milhares de afegãos a tentar desesperadamente a fuga do terror talibã no aeroporto era naturalmente um alvo privilegiado do jihadismo, e em especial da secção local do Estado Islâmico que, na tradição iraquiana, faz dos duplos atentados suicidas contra concentrações populacionais a sua principal imagem de marca.

Quem se der ao trabalho de passar os olhos pela literatura da especialidade, vai ver incontáveis atentados desse género registados no Afeganistão nos últimos anos, com o número de vítimas a situar-se sempre na casa das dezenas.

Tal como no Iraque, isso levou mesmo os afegãos a evitar grandes concentrações humanas, quer em cerimónias como casamentos, funerais ou mesmo orações religiosas, e só um motivo de força maior, como a entrega do país aos talibã, os levou a agir de outra forma, expondo-se ao risco eminente de ataques jihadistas.

Em vez de reconhecer que os atentados jihadistas do aeroporto de Cabul eram a necessária consequência da debandada ocidental, a máquina de desinformação dominante resolveu aproveitar a oportunidade para glorificar os talibã – que passaram todos à categoria de moderados – sendo os radicais os dissidentes jihadistas agrupados na secção local do Estado Islâmico, chamada de Khorasan.

A torrente de fugas de informação emanadas do poder deu assim origem às mais variadas narrativas, algumas manifestamente inverosímeis, outras de duvidosa credibilidade, todas viradas para um único objectivo: a necessidade de opor os radicais do Estado Islâmico aos talibã moderados! A opinião pública reagiu como uma só, tal como fez antes com a entronização de Hitler: era preciso fazer dele chanceler e assim reforçar os moderados contra os radicais nazis.

O exercício de beatificação dos talibã não começou agora, já decorria há anos, e assenta em pseudoanálise baseada na fé ou em pura desinformação. Apesar disso, existem obras de investigação académica de boa qualidade que tratam objectivamente da questão, a principal – que nós no ‘South Asia Democratic Forum’ (SADF) temos usado como base desde a sua edição em 2018 – é da autoria de dois académicos baseados na Austrália de origem sul-asiática: ‘Conflito e cooperação intra-jihadista: O caso do Estado Islâmico na Província de Khorasan e os Talibã no Afeganistão’.

O resumo da investigação diz o essencial:

‘A proliferação de grupos jihadistas levanta questões intrigantes sobre sua relação interna. A partir da Teoria da Mobilização de Recursos, exploramos a questão examinando a relação entre o Talibã e as encarnações locais do Estado Islâmico do Iraque e da Síria (ISIS) no Afeganistão. Consideramos os talibã e o ISIS como componentes de uma ‘indústria do movimento jihadista’ mais ampla, que é simultaneamente unida e dividida pela lógica de sua inclusão no movimento. Embora a maioria das pesquisas existentes enfatize o conflito ou rivalidade intra-jihadista, concluímos que a relação entre os dois grupos passa por mudanças cíclicas, oscilando entre conflito e cooperação.’

Eu mesmo entendi o mesmo relativamente ao Iraque e, mais recentemente, em trabalho que tenho no prelo sobre a Jihad em Moçambique, tinha já observado essa mesma dinâmica de cooperação e rivalidade entre o Estado Islâmico na província da África Central e o Al Shabaab. Outros académicos ou analistas tinham observado já o mesmo fenómeno na galáxia do jihadismo paquistanês (que produziu os talibã), sendo que ela é também por demais evidente no jihadismo do regime iraniano.

  1. Manter a aliança transatlântica e indo-pacífica

Continuando o paralelo que tenho feito com a ascensão do Nazismo, a queda do Afeganistão ocupa no processo de queda do Ocidente mais o lugar da entrega de Praga do que o da retirada de Dunquerque, pesem embora as semelhanças entre esta retirada e o que estamos a ver em Cabul.

A liderança chinesa, ao simultaneamente promover o entendimento com o Ocidente para instalar os talibã em Cabul e atacar a liderança americana pela sua traição aos afegãos, mostra-nos também aqui como estaremos a cavar a nossa sepultura se transformarmos o desastre de Cabul em razão para desfazer a OTAN e toda a incipiente arquitectura de defesa no Indo-Pacífico que a liderança chinesa denomina, acertadamente, de ‘OTAN asiática’.

Biden não merece mais consideração do que a que a história reservou a Chamberlain, mas é uma ilusão pensar que o problema se resumia a Chamberlain ou se resume a Biden. Acima de tudo, convém entender também que Chamberlain acabou por ceder o poder a Churchill, antes ainda da retirada de Dunquerque, embora quando ela era já inevitável.

A propósito de Dunquerque, convém também ter em conta que o que evitou que o desastre se tornasse irreparável, e que a invasão do Reino Unido dificilmente pudesse ser evitada, foi a insistência do ‘Nazi radical’ Göring em reservar à sua Luftwaffe a estocada final nas forças aliadas, impedindo assim as mais convencionais e ‘moderadas’ divisões panzer de fazer o trabalho, o que teria sido possivelmente fatal para Churchill.

O que salvou a liberdade na segunda guerra mundial foram os erros dos inimigos da liberdade, mais do que a capacidade dos seus defensores!

Os santos habitam os céus, e é inútil procurá-los em terra, e é com seres humanos cheios de defeitos e, esperamos, com algumas qualidades, que teremos de contar para a salvação da nossa civilização.

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