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Quinta-feira, Abril 25, 2024

A guerra do gás

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

A presente crise energética pode ser mais prolongada do que se espera e, em qualquer caso, os perigos potenciais colocados pelas emissões de gás com efeitos de estufa resultantes da exploração do gás natural são muito grandes e aconselham a que tudo se faça para o fomento da utilização de fontes renováveis de energia.

  1. Do zero ao infinito

O gás foi durante a maior parte do século XX o parente pobre da exploração petrolífera – na natureza o gás existe normalmente associado ao petróleo – ao ponto de a imagem tradicional dos poços petrolíferos, ou a imagem contemporânea em países menos tecnicamente preparados, é acompanhada de uma chama em que se queima o gás, tratado como um puro desperdício.

Extrair gás não é mais difícil do que extrair petróleo – durante séculos, nos arredores de Bacu, em Atashgah, inúmeros fogos perpétuos originados por fugas naturais de gás arderam e animaram templos Zoroástricos e Hindus – mas a sua captura, armazenamento e transporte são mais difíceis.

Imagem de Atashgah, Azerbeijão, 2016. Fotografia do autor do artigo

O transporte de gás é mais complexo e mais caro do que o de petróleo e, por essa razão, ou existia uma capacidade de utilização local para o gás ou este não tinha valor. Por essa razão, ainda hoje não existe um mercado global para o gás, contrariamente ao que acontece com o petróleo, e o seu preço varia muito com o local onde é procurado.

A tecnologia de liquefação do gás para reduzir o seu volume e, portanto, o seu custo de transporte, só apareceu há sessenta anos e a sua aplicação tem aumentado desde então, tornando-se concorrencial com o gasoduto para longas distâncias.

Por unidade de energia fornecida, o gás natural (de composição variável, mas contendo sempre mais de 80% de metano) produz menos poluição e menos gases com efeito de estufa. No entanto, se tivermos em consideração o gasto de energia necessário ao seu transporte (a liquefação é um processo que consome muita energia) e as fugas de metano inerentes à sua exploração, transporte e armazenamento, o gás natural pode resultar, e em geral resulta, em maiores emissões de gases com efeitos de estufa do que o petróleo ou mesmo que o carvão (ver a esse propósito o meu estudo sobre a Jihad em Moçambique).

Não existindo tabelas unívocas que relacionem os vários tipos de fonte energética fóssil com emissões de gases com efeito de estufa, dado que tudo depende da composição dessas fontes, das condições da sua extracção, do transporte e da sua utilização, não é difícil de entender as razões pelas quais o gás natural como solução universal é a que conduz a maiores emissões destes gases.

Apesar disso, contra toda a evidência, o Presidente Obama conseguiu a ‘beatificação’ da exploração contemporânea de gás nos EUA – através das técnicas de fraturamento – como sendo boa para o clima.

Como todas as religiões, a climomania está mais interessada nas profissões de fé do que na prática real de quem as profere. A União Europeia, por exemplo, diz na sua estratégia ‘climática’ para 2050 que o gás natural vai desaparecer da Europa como fonte energética, contrariando as principais previsões feitas por consultores sobre o assunto (p.16, estudo sobre Moçambique acima citado). Nada na sua prática aponta, contudo, nessa direcção.

O gás tornou-se a principal fonte energética um pouco por todo o lado à medida que as tecnologias necessárias à sua utilização foram progredindo e por a sua utilização ser muito menos poluente do que a das suas alternativas fósseis, ninguém estando verdadeiramente interessado no seu impacto em gases com efeitos de estufa.

  1. O gás como arma de guerra

Como se tornou público apenas recentemente, após a última invasão russa da Ucrânia, a Rússia financiou organizações não governamentais ‘ambientais’ para que estas impedissem que a mesma técnica americana de fraturamento fosse aplicada na Europa.

O Qatar fez de resto o mesmo em relação ao gás explorado em África, como o mostrei no meu estudo sobre Moçambique, e provavelmente de forma mais alargada que a Rússia, sendo inaceitável o silêncio que sobre o tema faz o mundo ocidental.

Tanto a Rússia como o Qatar têm usado todos os meios para eliminar a concorrência ao gás que vendem na Europa e no resto do mundo, contando para isso com a falta de inteligência, a permeabilidade às ideologias baseadas na histeria e manipulação, e a permissividade perante os conflitos de interesse que campeiam no Ocidente.

Um recente artigo da ‘Oil price’ (principal referência de acesso público sobre o mercado dos hidrocarbonetos) dá pistas importantes para entendermos como a Rússia eliminou a concorrência do gás da Ásia Central e do Cáucaso.

A esse propósito é deveras significativo o facto de Putin ter apenas realizado duas viagens ao estrangeiro após a invasão da Ucrânia em fevereiro, a primeira para participar na Cimeira do Cáspio (passou na altura também pelo Tajiquistão) e a segunda para a Cimeira de Teerão, onde Khamenei lhe ‘deu a bênção’ por ter desencadeado a guerra.

Ambas as cimeiras foram dominadas pelas conversações entre a Rússia e o seu principal aliado, o Irão, mas ambas tiveram também como ponto estratégico central o de impedir fontes alternativas às russas para o abastecimento de gás à Europa.

O gás é a principal arma com que a Rússia procura aniquilar a resistência europeia à invasão, e isto, era mais do que óbvio desde a invasão da Ucrânia em 2014, mas a cegueira europeia foi tão grande que, mesmo depois da presente invasão, decretou o embargo às fontes energéticas russas, como se não fosse a Rússia que iria naturalmente fazê-lo para quebrar a resistência europeia.

Como podemos entender lendo a propaganda do putinismo entre nós, a Rússia conta com a explosão das contas da electricidade e a perspectiva de falta de aquecimento no Inverno para convencer os europeus a deixar de apoiar a resistência ucraniana.

Do lado europeu, continua a imperar a falta de senso. O lóbi nuclear francês procurou ver a invasão como a ocasião para vender o seu produto negando mesmo que a invasão tinha sido acima de tudo a demonstração dos perigos colocados pela energia nuclear (Casaca, 2022).

Entre nós, a imprensa – e surpreendentemente o Primeiro-Ministro – passou semanas a vender a tese delirante de que Portugal iria abastecer a Alemanha em gás a partir de Sines, o que confirma a falta de crédito que nos merece a imprensa institucional.

  1. O que fazer?

Para além de adiar, tanto quanto possível, as decisões tomadas para abandonar outras fontes energéticas que o gás – cuidado que não precisa de discussão – interessa-nos perceber o que é possível fazer.

Aqui, há a assinalar uma evolução tecnológica de que só os verdadeiros peritos poderão avaliar a capacidade para responder aos desafios presentes. A título de exemplo, ainda há um ano atrás, era dado consensualmente como difícil desenvolver a exploração e liquefação de gás natural na bacia do Rovuma exclusivamente com dispositivos flutuantes (offshore). No entanto, há poucos dias, a imprensa noticiou a primeira exportação de gás líquido natural da plataforma offshore da empresa italiana ENI em Moçambique.

Será essa exploração rentável a preços menos exorbitantes que os actuais e em larga escala? Esta é uma questão que importa saber responder de forma urgente. As segundas maiores reservas de gás natural do mundo situam-se na bacia do Rovuma, mas há outras igualmente importantes na África Ocidental, pelo que a resposta objectiva a esta questão é decisiva na presente guerra do gás.

Posto isto, a presente crise energética pode ser mais prolongada do que se espera e, em qualquer caso, os perigos potenciais colocados pelas emissões de gás com efeitos de estufa resultantes da exploração do gás natural são muito grandes e aconselham a que tudo se faça para o fomento da utilização de fontes renováveis de energia.

Há imenso a fazer e com resultados a curto prazo. Não se trata de financiar as empresas petrolíferas em nome de paquidérmicos planos de hidrogénio, ou as construtoras automóveis, ou as pregações ocas climáticas. É apostar a fundo na investigação fundamental e aplicada, na disseminação e na demonstração do imenso potencial alternativo existente.

Se há uma circunstância em que se justifica a criação de uma estrutura como a que foi feita a propósito da psicose vírica, é a actual, para mobilizar esforços e atenções para promover as soluções alternativas renováveis.

E isto tem sentido na Europa, no país, nas regiões ou mesmo nos municípios. Um esforço focado nestas alternativas é a melhor forma de respondermos à guerra do gás.

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