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Sexta-feira, Abril 19, 2024

A ONU e o espartilho

Carlos Ademar
Carlos Ademar
Mestre em História Contemporânea, escritor e professor na Escola da Polícia Judiciária

Como é sabido, a Organização das Nações Unidas nasceu após a Segunda Guerra Mundial, tentando recuperar os ideais da extinta Sociedade das Nações. Nasceu portanto numa altura em que os impérios de séculos estavam ainda pujantes. Como exemplo, referimos o continente africano, que por esta altura era quase totalmente colonizado pelas potências europeias.

Também no Médio Oriente, Índia e sudeste asiático a situação era muito diferente da que hoje existe. Portanto, num contexto de um mundo que não ultrapassava as dezenas de países, chegamos a um outro mundo onde este número ronda as duas centenas.

A ONU

Por outro lado a ONU nasceu e tem-se mantido assente num pilar que é o Conselho de Segurança (CS), ou melhor, o grupo de países que integram de forma permanente este Conselho, basicamente, os vencedores da Segunda Guerra.

São verdadeiramente estes os países que impõem a sua vontade ao mundo, porque nada pode ser aprovado sem ter a sua concordância, por força do direito de veto que apenas a este restrito clube de cinco países (China, Rússia, EUA, França e Reino Unido) foi concedido ou tomaram para si.

É de tal forma verdade que se encontra a decorrer o processo de selecção do futuro secretário-geral, em que o português António Guterres está posicionado na linha da frente, a julgar pelas votações efectuadas até à presente data – Setembro de 2016.

Para qualquer decisão da ONU e esta não foge à regra, é necessário que o candidato recolha o apoio daqueles cinco países, porque caso não o consiga, não lhe resta outra hipótese do que sair de cena e dar o lugar a outro. Li por aí que a Rússia estará mais interessada em nomear alguém oriundo da Europa do Leste, pelo que, a manter-se nesta posição, António Guterres não terá hipótese.

E assim, uma decisão que deveria caber à Assembleia-Geral, alegadamente o órgão supremo, fica tolhida pela vontade de um dos membros permanentes do Conselho de Segurança. E eis que apenas um país pode bloquear e teoricamente impor ao mundo um nome para o mais alto cargo da ONU.

São meros exemplos que visam demonstrar o quanto esta ONU está desajustada dos tempos que correm

Não por acaso, este organismo que devia ser uma espécie de governo do mundo para as grandes questões que a toda a Humanidade respeita, está a cada dia mais desacreditado. Tem um peso muito marginal nas grandes decisões, transitando estas para as grandes potências. São estas que verdadeiramente ditam o que mais lhes interessa, bem como aos países seus seguidores. E é neste registo que nos mantemos há dezenas de anos e devido a ele, as grandes questões que a todos dizem respeito não são resolvidas, não obstante os discursos plenos de boas intenções que alguns dos senhores do mundo vão espalhando aos quatro ventos.

Por isso a ONU não consegue impor políticas ambientais que atenuem o aquecimento global que nos vai assando em forno lento e nos vai molhando cada vez mais os pés, as canelas, os joelhos, devido à escalada imparável do degelo das calotes polares, pondo em perigo vastas zonas da orla marítima e o equilíbrio natural como sempre o conhecemos.

A ONU não consegue impor um Tribunal Penal Internacional que verdadeiramente sirva como elemento dissuasor aos tiranos ou candidatos a tiranos deste mundo, nas suas atitudes de matança maciça e selectiva. São poucos os casos de justiça feita a gente deste tipo, porquanto o tribunal se encontra desacreditado aos olhos do mundo já que alguns membros permanentes do CS não o reconhecem para efeitos de julgamento dos seus nacionais.

A continuar assim, o Tribunal Penal Internacional, cuja criação assenta em bases humanistas que deveriam sempre nortear as decisões da ONU, talvez esteja ele próprio condenado à pena de morte.

A fome no mundo

Não por acaso, a fome no mundo continua a ser uma tragédia que toca uma parte significativa da humanidade e todos os famélicos deste mundo são cidadãos que pertencem a países que integram a ONU.

Há muito que existem condições para fazer terminar a fome, basta para tal que a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura) possa trabalhar como sabe, necessitando para isso de ter o apoio dos países mais ricos e não tem – uma velha questão, é verdade, mas que continua à espera de uma solução satisfatória, quando é bem conhecido que muitos destes países têm excedentes alimentares.

Continuamos a não querer enfrentar o problema pela raiz: não é erguendo muros estúpidos nas linhas de fronteira dos países desenvolvidos que se acaba com a saga dos refugiados, mas sim criando nos países de origem condições para que ali possam construir uma vida tranquila, que lhes permita sonhar com um futuro digno.

A fome ou a perspectiva dela acontecer, em nada contribui para isso, bem pelo contrário, porque leva a que milhões de pessoas partam em busca dessa qualidade de vida, ainda que o desespero os empurre muitas vezes para situações tão difíceis como as que viviam, e quantas vezes mesmo para a morte.

Bem sabemos que muitas situações de fome decorrem de conflitos bélicos que se desenvolvem nesses países, quantas vezes fomentados exactamente pelos países que pertencem ao tal grupo de eleitos, por integrarem o CS como membros irremovíveis.

Conflitos bélicos

Basta que a política de um governo seja desfavorável aos interesses dessas potências para que a instabilidade comece a reinar e, se nada se alterar, invariavelmente, tudo termina num golpe de Estado com a substituição desses governantes por outros que tenham uma visão mais «amiga.»

Quando alguma coisa falha, o conflito alastra-se e a guerra generaliza-se nesse país, quase sempre tendo as várias facções em confronto o apoio de algumas dessas potências, numa espécie de continuação da guerra-fria, agora decidida e assumidamente não ideológica, mas para o controlo estratégico de uma região a fim de mais facilmente beneficiarem da exploração dos recursos desses países. Quantos exemplos conhecemos?

Tudo isto é velho, nada há aqui de novo. Mas será este o destino que espera a humanidade: viver, sofrer e morrer para benefício e progresso de algumas potências? Não, seguramente que não.

Acreditamos que quando a ONU foi criada não era este o pensamento dominante. Parece-nos absolutamente necessário que as Nações Unidas sejam de facto a nau que devidamente equipada com a bússola, âncora, mastros e velas, eficazes e funcionais, que possa conduzir a humanidade para um outro patamar de desenvolvimento global e mais igualitário.

Potências globais

Às potências coloniais, tão condenadas e bem, pela ONU, seguiram-se as potências globais, do céu e da terra, e a ONU nada diz ou faz. Será que a razão se prende com o facto de serem elas também as donas da ONU?

Nada justifica que a diferença entre países ricos e pobres continue a aumentar. É preciso que aquilo que o potencia termine, porque também pode ser suicidário para as próprias potências. A ambição cega que tem caracterizado a acção dessas potências pode gerar a semente do mal que as poderá levar igualmente à morte.

Drama dos refugiados

Parece-nos que só uma ONU forte conseguirá pôr um travão ao drama dos refugiados, que longe de terminar, ameaça intensificar-se nos próximos tempos, gerando enorme instabilidade nos países de acolhimento.

Já actualmente se verifica o apagamento progressivo dos partidos moderados, que tradicionalmente se foram alternando no poder, e a inevitável ascensão de partidos extremistas, xenófobos, racistas, criando um clima social muito tenso, idêntico ao que a história registou nos anos vinte e trinta do século passado.

Eis a semente do mal. Sabemos aonde nos conduziu essa instabilidade. As razões que a originaram foram, necessariamente diferentes das que estão a originar a que assola o mundo por estes dias, porém, as consequências podem ser a catástrofe que bem conhecemos.

Não somos ingénuos, começámos por dizer que não acreditamos em mudanças substanciais na estrutura organizativa da ONU. Os países dominantes não vão querer abdicar do poder de que desfrutam. A grande notícia internacional de sábado, dia 10, dava conta do entendimento entre os EUA e a Rússia sobre o cessar-fogo na Síria.

Que sentido faz isto? E a ONU por onde anda? Pois…

A este nível nada é cedido voluntariamente, tudo tem de ser conquistado. Mas quantas vezes os caros leitores ouviram alguém com responsabilidades sociais, e nestes não nos referimos apenas à classe política, falar destas problemáticas e na sua directa responsabilidade pelo estado do mundo? Poucos e sem grande repercussão, porque faltava a capacidade de influenciar a quem o fez e assim ficou em défice o imprescindível eco.

Seria necessário que uma onda global se gerasse contra este estado de coisas e por alterações profundas na ONU, para que a tal nau condutora prosseguisse a marcha sem grandes incidentes, e quando estes surgissem, os fosse sabendo resolver de acordo com os interesses do progresso e bem-estar da humanidade no seu todo, e não, como até aqui, em benefício apenas dos membros permanentes do CS, bem como dos seus protegidos, e em desfavor dos muitos restantes.

Mas para isso, mais do que a classe política, sempre geradora de alguma divisão que é perniciosa neste contexto, são os agentes culturais com capacidade de intervir junto dos seus concidadãos, que podem e devem contribuir para a formação de tal onda.

Ficar à espera que a situação se resolva por si é um erro, e porque a situação é potencialmente catastrófica, esperar nestas circunstâncias pode ser um erro catastrófico.

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