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Quinta-feira, Março 28, 2024

Birmânia: a mecânica do genocídio

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

A Birmânia é um grande país – com uma superfície maior do que qualquer país da União Europeia – de mais de 50 milhões de habitantes e com uma grande diversidade étnica e linguística, da qual resultaram inúmeros conflitos desde a sua independência, conflitos agravados desde a instauração do regime militar em 1962.

  1. A equívoca lei da cidadania

No antigo reino de Arakan – aparentemente a forma como os portugueses se referiram a Rhakin – coexistem duas etnias principais, os Rakhin e os Rohingya, estes aparentados aos Bengalis de Chittagong, área que esteve várias vezes no mesmo Estado que a actual província de Rakhin.

A ditadura militar birmanesa instaurou um regime soviético no país e promoveu uma versão xenófoba da nacionalidade, que distinguia os seus habitantes em quatro categorias:

  1. cidadãos, que são os que fazem parte das «raças» reconhecidas como nacionais – nas quais se incluem os Rakhine mas não os Rohingya – ou, caso o não seja, que possa provar que os seus antepassados viviam no país antes de 1823 (data do início da colonização britânica);
  2. cidadãos associados são os que se tornaram cidadãos em 1948;
  3. os cidadãos «naturalizados» são os que viviam no território antes de 1948 e que requeiram cidadania ao abrigo desta lei;
  4. os restantes são considerados estrangeiros.

A generalidade dos Rohingya considera que tem direito a plena cidadania, dado terem ascendentes que habitavam o território antes de 1823, com as autoridades a defender o contrário. A lei é uma espécie de “catch-22”. Ou os Rohingya faziam uma prova burocraticamente impossível ou aceitavam ser cidadãos de segunda ou terceira categoria para não serem considerados estrangeiros.

Sendo certo que parte dos Rohingya descende dos que habitam a região há séculos e que outros haverá que descendem de habitantes que imigraram do Sul do Bengala – como não é menos verdade que muitos fizeram o percurso inverso – o debate não tem significado à luz dos princípios modernos de cidadania.

A questão essencial é que não faz sentido discriminar populações com base na sua ascendência ou relação com «raças» específicas e que esta lei da nacionalidade constituiu um passo essencial para a discriminação, perseguição e em última instância do genocídio de parte da população.

Sem questionar esta lei e a mentalidade que a produziu não haverá solução para a chamada crise Rohingya e haverá que esperar, pelo contrário, o agravamento da situação e a reprodução da violência.

  1. A manipulação islamista

A generalidade dos Rohingya são muçulmanos, como o são de resto a generalidade dos seus vizinhos bengalis da região de Chittagong, cuja versão dialectal do bengali é muito próxima da dos Rohingya.

Que a perseguição de que os Rohingya foram alvo nada tem a ver com a Islamofobia fica claro quando nos damos conta que a minoria Rohingya de culto Hindu foi tratada exactamente da mesma forma que a maioria muçulmana, ou por outras palavras, o facto de a maioria dos Rohingya ser muçulmana não desempenhou qualquer papel na perseguição.

A perseguição dos Rohingya faz-se há décadas e das mais variadas formas, com a privação da cidadania a conduzir a discriminações de todo o tipo, nomeadamente no acesso ao ensino e à saúde. É natural que os Rohingya façam apelo à solidariedade do mundo muçulmano – e muitos milhares emigraram para países muçulmanos, incluindo a Arábia Saudita e o Paquistão.

Não menos de esperar é a manipulação dessa perseguição pelos islamistas, que tentam pintá-la como a prova de uma conspiração universal contra o “Islão” e criar a base da argumentação para a necessidade de o “Islão” responder da mesma forma, fomentando o jihadismo.

O Jihadismo tinha já provocado ataques generalizados contra as forças de segurança birmanesas, que foram utilizados por estas como justificação para a limpeza étnica, e instala-se hoje no terreno fértil existente nos campos de refugiados no Bangladesh.

É por isso essencial não permitir que as organizações jihadistas infiltrem essas populações vulneráveis e as manipulem para os seus fins de desestabilização. A escolarização das crianças, a emancipação da mulher e a não permissão para a circulação de organizações jihadistas devem ser preocupações essenciais das autoridades nacionais do Bangladesh bem como da comunidade internacional.

  1. O impacto da crise no Bangladesh

O Bangladesh é um país que combina uma das maiores densidades demográficas do mundo com níveis generalizados de pobreza, levando a que grande parte da população sofra simultaneamente da magreza de recursos económicos e da devastação dos recursos ambientais, com níveis deploráveis da qualidade da água, dos solos e do ar.

A presença de mais de um milhão de refugiados a uma área onde viviam menos de meio milhão veio assim agravar de forma muito significativa a pressão sobre o país, que não tem paralelo com o que se passa em qualquer país europeu.

Depois do genocídio islamista de 1971 no Bangladesh – este sim, promovido primariamente com base no suprematismo muçulmano e tendo por alvo os não muçulmanos ou os “maus muçulmanos” (os que consideravam a identidade histórica e cultural mais importante que a comunhão religiosa) – o Bangladesh tornou-se um dos mais pobres e densamente povoados países independentes do mundo.

Depois do assassínio do pai da nação, de múltiplos governos militares e de uma sombra islamo-militar que pesa sobre o país – um pouco à imagem do Paquistão – o governo secular da “Liga Awami” conseguiu finalmente julgar, condenar e sentenciar os principais fautores do genocídio, colocou o país na senda do crescimento económico e promoveu uma relativa tolerância e liberdade. Contudo, o Bangladesh continua a ser um país económica, social e politicamente frágil e sujeito a múltiplas ameaças.

A linha oficial das autoridades do Bangladesh é a de exigir que a Birmânia receba os Rohingya de volta, o que a Birmânia diz que fará para os que fizerem a tal prova de antepassados birmaneses antes de 1823.

Campo de refugiados Rohingya Muçulmanos de Kutupalon
Campo de refugiados Rohingya Muçulmanos de Kutupalon

As Nações Unidas e especialmente o Tribunal Penal Internacional entraram num complexo raciocínio legal para poder julgar os generais responsáveis pelo genocídio, o que é pouco provável que venha a acontecer de forma consequente.

A Birmânia continua a ser apoiada pela Rússia e pela China – apesar das divergências sino-birmanesas a propósito de uma minoria etnicamente chinesa que habita a Birmânia – enquanto a dirigente democraticamente eleita não conseguiu autonomizar-se dos militares e do quadro legal xenófobo que eles criaram.

Nestas condições, creio que a União Europeia e os EUA devem recorrer a sanções com o duplo fim de punir os responsáveis directos pelo genocídio e pela modificação do quadro legal birmanês da nacionalidade que adapte os conceitos modernos de cidadania que estão de resto consignados pelas Nações Unidas.

O apoio ao acolhimento dos refugiados pelo Bangladesh deve prever o enfrentar dos problemas fundamentais do país e a luta contra a intoxicação e recrutamento jihadistas. Em qualquer caso, não será fácil encontrar uma solução duradoura.

Fotografias de Paulo Casaca

 

 

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