
Celeridade na contratação pública
Os procedimentos de contratação pública servem em princípio para alcançar, pela concorrência, melhores condições de preço e de características dos produtos a adquirir, como a observância de certos processos de fabrico ou a garantia de certas condições de assistência pós-venda, e, no contexto de abertura das economias, cada vez menos o estímulo dos produtores nacionais ou regionais.
- 13 Janeiro, 2021
- Nuno Ivo Gonçalves
- Posted in Opinião
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As “medidas especiais”
A Assembleia da República produziu, ao cabo de um processo tormentoso que envolveu a apresentação de uma Proposta de Lei governamental, cujo texto inicial veio a ser substituído, alguma exteriorização de emoções por parte de alguns grupos parlamentares, alguma aproximação entre PS e PSD um Decreto, identificado como nº 95/XIV, com a seguinte epígrafe:
Aprova medidas especiais de contratação pública e altera o Código dos Contratos Públicos, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro, o Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aprovado em anexo à Lei n.º 15/2002, de 22 de fevereiro, e o Decreto-Lei n.º 200/2008, de 9 de outubro[i]
“Traduzido”, quer isto dizer uma alteração da redacção de numerosas disposições do Código dos Contratos Públicos, alterações pontuais ao contencioso administrativo no sentido de garantir uma maior celeridade aos processos, e modificação do regime das centrais de compras (estabelecido pelo aludido Decreto-Lei nº 200/2008) mas sobretudo a aplicação em 2021 e 2002 de:
medidas especiais de contratação pública em matéria de projetos financiados ou cofinanciados por fundos europeus, de habitação e descentralização, de tecnologias de informação e conhecimento, de saúde e apoio social, de execução do Programa de Estabilização Económica e Social e do Plano de Recuperação e Resiliência, de gestão de combustíveis no âmbito do Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais (SGIFR) e, ainda, de bens agroalimentares.
Sendo que se tornará possível recorrer a procedimentos simplificados de concurso público, concurso limitado por prévia qualificação, consulta e ajuste directo, não só em caso de projectos financiados ou co-financiados por fundos europeus, mas também de projectos que por despacho governamental sejam considerados como de execução do Programa de Estabilização e do Plano de Recuperação e Resiliência.


Atento, Marcelo Rebelo de Sousa devolveu o Decreto à Assembleia da República, sem promulgação, com uma mensagem da qual é de destacar:
…
- Tal simplificação e aperfeiçoamento supõe, no entanto, como contrapartida, uma atenta preocupação com o controlo, mesmo se a posteriori, da legalidade e da regularidade dos contratos, exigido pela transparência administrativa. Concretamente, um mais elaborado tratamento dos efeitos do controlo a posteriori pelo Tribunal de Contas quanto ao adjudicante e ao adjudicatário e da composição e funções da nova comissão independente de acompanhamento e fiscalização.
- Nestes termos, devolvo, sem promulgação, o Decreto N.º 95/XIV, solicitando à Assembleia da República que pondere:
- os efeitos quanto ao adjudicante e ao adjudicatário do controlo a posterioride ilegalidades e de irregularidades detetadas pelo Tribunal de Contas e, bem assim,
- a garantia da presidência da comissão independente de acompanhamento e fiscalização por membro designado pela Assembleia da República, a previsão do alargamento da incompatibilidade de todos os membros com o desempenho de cargos em parceiros económicos e sociais, e a substanciação adicional do papel da comissão, em termos de articulação com o Tribunal de Contas e de conhecimento público da sua atividade[ii].
Função dos procedimentos de contratação pública e riscos derivados do seu enfraquecimento pelos políticos
Os procedimentos de contratação pública servem em princípio para alcançar, pela concorrência, melhores condições de preço e de características dos produtos a adquirir, como a observância de certos processos de fabrico ou a garantia de certas condições de assistência pós-venda, e, no contexto de abertura das economias, cada vez menos o estímulo dos produtores nacionais ou regionais.
O direito de acesso aos procedimentos e da possibilidade de recurso contencioso devem reflectir a igualdade perante a lei, pelo que o cerceamento do acesso ou da possibilidade de recurso lesam quer os directos interessados, quer, em última análise, a população em geral, utente ou contribuinte.
Sem estar a identificar partidos ou departamentos governamentais determinados com maus comportamentos, cabe referir que:
para um grande grupo de actores destes procedimentos o que importa não é incumprir, mas o ser apanhado a fazê-lo;
- para os políticos o incumprir não acarreta sanções políticas ou outras por parte dos seus partidos, a atitude oficial continua a ser “à política o que é da política, à justiça o que é da justiça”;
- têm-se registado casos de comportamentos desviantes que envolvem simultaneamente membros dos Gabinetes e dirigentes de serviços públicos, aparentemente porque os dirigentes dos serviços acreditam estar a cumprir orientações de membros do Governo – terá sido essa a origem do famoso caso das golas e da Agência Nacional de Emergência e Protecção.
(acrescente-se, fora da contratação pública, o caso do procurador europeu e da Direcção-Geral da Política de Justiça)
- o financiamento dos partidos via contratação pública parece estar ultrapassado – mas estará mesmo?
Portanto, acreditando que Marcelo Rebelo de Sousa e o Bloco Central se irão entender na fórmula que há – de constar da lei, a questão de fundo que merece atenção é necessidade de aprovação de Códigos de Ética dos membros dos partidos nas suas relações com a Administração Pública e com as operações de contratação pública.
O contencioso da contratação pública
Embora seja comum, sobretudo da parte de Presidentes de Câmara, atirar ao Tribunal de Contas a acusação de ser uma “força de bloqueio”, é sobretudo a impugnação de concursos nos Tribunais Administrativos que se traduz no atraso de execução de projectos, sobretudo quando estão envolvidos concorrentes estrangeiros.
Percebe-se porquê: estão em causa encomendas avultadas, que por si só justifique que se litigue, a possibilidade de entrada em mercados que irão gerar potencialmente outras transacções, os ganhos reputacionais.
E percebe-se também as razões de arrastamento das decisões, quando se tem em conta que os Tribunais Administrativos têm de dirimir milhares de litígios de dimensão e natureza muito diversas, e que em geral o serviço neles anda muito atrasado, como no tempo da troika se verificava ser o caso nos tribunais fiscais.
Surpreende-me que não se tenha equacionado a criação, ao menos transitoriamente, de mais alguns juízos administrativos para julgar dos litígios relativos aos procedimentos de contratação com o objecto descrito.
Uma hipótese que traria grandes ganhos no domínio da simplificação processual e celeridade na decisão, seria atribuir ao Tribunal de Contas, aquando da concessão de visto, capacidade para conhecer dos conflitos pendentes entre as entidades adjudicantes e os concorrentes insatisfeitos. Deste modo, ao remeter-se um contrato para visto remeter-se-iam também as impugnações apresentadas, decidindo o Tribunal sobre a regularidade financeira do contrato após se ter pronunciado sobre a regularidade dos procedimentos de contratação, e assegurando-se internamente o duplo grau de jurisdição.
Sem prejuízo da possível necessidade de reforço da 1ª Secção e dos seus serviços de apoio, a maior dificuldade ainda seria que quando ocorreu em 1976 a inclusão de uma referência expressa ao Tribunal de Contas na Constituição da República Portuguesa então aprovada, ela se reportava a uma função mais restrita, não acomodando a ampliação da competência deste ao contencioso administrativo.
Seria mais uma alteração constitucional a juntar àquelas de que se vem falando quando se interromper o Estado de Emergência que vem sendo sucessivamente renovado.
Notas
[i] Site da Assembleia da República.
[ii] Site da Presidência da República.
[iii] Como se disse em relação aos portos Mulberry, portos artificiais construídos para apoiar o desembarque na Normandia, em 1944.
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About author
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.