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Quinta-feira, Abril 25, 2024

A Cimeira de Hamburgo e a liderança alemã

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

A Presidência alemã do G-20 realizou a sua cimeira anual a 7 e 8 de Julho em Hamburgo, sucedendo assim à presidência chinesa que tinha realizado a sua cimeira anual em Hangzhou. A Cimeira tem lugar sete semanas antes das eleições federais alemãs e constitui uma excelente oportunidade para a Chanceler de longa data e candidata à reeleição, Angela Merkel, apresentar a sua visão do papel que a Alemanha quer jogar no mundo.

Muitas vezes catalogada como ‘a mulher mais poderosa do mundo’, Angela Merkel dirige o país há doze anos e, se as sondagens se traduzirem em votos, ela vai continuar a fazê-lo pelo menos por mais quatro. A grande questão eleitoral agora é mais a de saber quais as forças políticas que desempenharão o lugar de parceiro minoritário da CDU/CSU numa coligação de governo.

Com Helmut Kohl, a Alemanha foi reunificada e uma moeda única, adaptada ao modelo alemão, foi introduzida na Europa. Com Gerhard Schröder, a Alemanha promoveu a ultra-competitividade feita de híper-produtividade e mini-salários. Com Angela Merkel, um novo Tratado Europeu deu ao país o controlo do essencial do processo europeu de decisão.

A crise financeira de 2008 podia ter ditado a sentença de morte para o Euro, no entanto, isso assim não aconteceu. A Grécia pagou e continua a pagar um preço intoleravelmente elevado de uma política monetária enviesada; a Irlanda foi capaz de controlar rapidamente os danos; outros países conseguiram reequilibrar as suas economias com diferentes graus de sucesso, mas o Euro sobreviveu. No auge da crise, como agora sabemos, Merkel foi mesmo capaz de contornar o seu ministro das Finanças para chegar a um acordo com as autoridades gregas.

O presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi, trouxe para a Europa o ‘quantitative easing’ que manteve à tona de água outras economias do mundo, e ao fazê-lo, evitou o colapso da moeda europeia. Aqui, também, Merkel foi suficientemente hábil para combinar a pressão da ortodoxia financeira alemã com alguma flexibilidade que permitiu ao BCE prosseguir com sua política monetária ‘não convencional’.

Na frente externa, a Alemanha continua refém da sua obsessão pela conquista de mercados externos sem atenção às consequências políticas dos seus objectivos comerciais. Embora haja pelo mundo fora vários outros exemplos, a gestão da crise ucraniana é talvez o mais óbvio caso, dado que se relaciona com uma importante ameaça política perto das fronteiras alemãs. Tendo em conta que as iniciativas comerciais patrocinadas pela Alemanha desempenharam um papel importante no desencadear da crise na Ucrânia, e embora a Alemanha seja o país europeu mais envolvido na crise, o país não conseguiu resistir à tentação dos lucros com a proposta russa de gasoduto que contorna a Ucrânia, o que é um grande golpe nos interesses ucranianos.

Embora desde o início do seu primeiro mandato a chanceler alemã tenha discretamente fornecido asilo e apoio a algumas das vítimas de perseguição no grande Médio Oriente – em particular, as mulheres – a tentativa de transformar esse apoio discreto numa política global de asilo, em 2015, teve resultados desastrosos. Aqui, também, ela foi capaz de recuar tacticamente, e evitar um colapso político europeu. A pressão dos refugiados está a aumentar novamente em Itália, mas as forças políticas de extrema-direita, tendo falhado a sua aposta tanto nos Países Baixos como em França, não são mais uma ameaça à sua sobrevivência política na Alemanha.

Em todas estas questões Angela Merkel tem-se destacado pela sua perícia no leme, evitando os escolhos, carecendo contudo de uma visão estratégica. Será agora que ela vai apresentar essa visão?

O ritmo das mudanças na China é impressionante, como é não menos impressionante o caminho que o país tem conseguido até agora fazer em todas as frentes económicas, sociais e científicas, mantendo contudo um sistema político arcaico. O consenso internacional é de que o sistema político chinês será em devido tempo forçado a adaptar-se à sua sociedade, mas a evidência disponível até agora mostra que isso não aconteceu, como se pode testemunhar com o renascimento do culto maoista e o aumento da repressão política.

Os especialistas financeiros ocidentais têm expresso repetidamente a sua preocupação com a sustentabilidade financeira do modelo de desenvolvimento chinês, enquanto vêm na Alemanha o paradigma da estabilidade financeira. Ironicamente, no entanto, foi uma empresa chinesa que recentemente resgatou o Deutsche Bank.

O mais impressionante sucesso chinês tem sido a sua capacidade para reciclar o seu excedente comercial externo no instrumento mais importante do mundo de investimento em infra-estruturas internacionais; sob o rótulo de ‘OBOR’ ou noutras formas. A Alemanha, que tem de longe o mais importante excedente comercial do mundo, contrasta com a China pela sua pequena presença no apoio ao desenvolvimento.

A presidência do G-20 é o momento ideal para a Alemanha anunciar um plano substancial de desenvolvimento sustentável em todo o mundo, proporcional à robustez da sua posição económica e de acordo com o seu compromisso declarado de apoio às metas de desenvolvimento das Nações Unidas. Um plano que deve corresponder a pelo menos os meios financeiros apresentados pela China, promovendo uma estratégia alternativa, combinando a racionalidade económica com responsabilidade social em geral e sustentabilidade ambiental em particular.

Também pode ser uma oportunidade para lembrar ao mundo o primeiro princípio da carta do Atlântico, de Agosto de 1941: ‘os países não procuram o seu engrandecimento, territorial ou outro’. Deve ser sublinhado como este princípio foi determinante na construção da paz, e como a ocupação do mar do Sul da China ou as invasões da Ucrânia, Iémen ou Síria são contrárias a esse princípio.

Poderia também ser uma oportunidade para relembrar que, um ano depois, em Agosto de 1942, John Maynard Keynes apresentou as ‘Propostas para uma União Internacional de Pagamentos’, propostas que nunca foram totalmente implementadas, mas poderiam ser a base para um sistema internacional de transacções mais estável e menos conflituoso.

A chamada ‘crise da emigração’ poderia então ser reenquadrada como uma crise política e de desenvolvimento. Afinal de contas, as razões por que existem milhões de pessoas dispostas a arriscar a sua vida para fugir das suas terras tem a ver com a guerra, a opressão e a falta de condições mínimas para ver um futuro melhor.

E um mundo que se sinta menos ameaçado pelos desafios da sobrevivência imediata, da concorrência por um ‘espaço vital’ para o ‘engrandecimento, territorial ou outro’ poderia olhar mais atentamente para o precioso equilíbrio ambiental do nosso planeta, bem como o seu vasto património e a nossa responsabilidade colectiva em os preservar.

A Cimeira também poderia servir para definir uma agenda comum para enfrentar o terrorismo e outras características agressivas do jihadismo, desenvolvendo a dinâmica aberta pela cimeira árabe de Riade. Dado que o mundo árabe está hoje mais consciente que o jihadismo moderno é uma tentativa de manipulação da religião por uma agenda política que não tem nada a ver com os interesses árabes, podemos agora construir uma forte coligação contra o terrorismo.

Mesmo se a Chanceler Merkel atingir apenas uma pequena fração destes objectivos, ela pode vir a ser lembrada não apenas como uma personalidade política capaz de se adaptar ao sentir da opinião pública, mas também como alguém capaz de definir uma estratégia.

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