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Terça-feira, Setembro 30, 2025

É complicado… (o mundo digital)

Mendo Henriques
Mendo Henriques
Professor na Universidade Católica Portuguesa
Faculdade de Ciências Humanas, Universidade Católica Portuguesa
Universidade Católica Portuguesa

Andamos todos interligados no mundo digital e… é complicado.

No frenesim de novidades mal digeridas desde que o computador pessoal Apple nasceu em 1977 e a Web por volta de 1989, sucedem-se os meios que ligam pessoas, coisas e fluxos de informação

Temos publicidade que baste para louvar os progressos: casas inteligentes, robôs, carros automáticos, roupa com sensores; temos a divinização dos heróis da Apple (Steve Jobs) da Microsoft (Bill Gates), do Facebook (Mark Zuckerberg); temos profetas do futuro digital como Jeremy Rifkin e a revista Wired. Tudo parece irresistível, quase natural e geralmente benéfico.

E contudo… é complicado, assim o dizem dois livros recentes, ainda não publicados em português.

Em It’s Complicated: The Social Lives of Networked Teens, (2014) (versão pdf) a norte-americana Danah Boyd mostra que os adolescentes vão on-line “para assumir o controlo das suas vidas e da sua relação com a sociedade”. Não digam mal dos adolescentes que usam telemóvel. Digam mal da sociedade que os atirou para aí.

Mais sofisticado, o francês Eric Sadin em La vie algorithmique. Critique de la raison numérique, (2015) coloca as questões éticas e políticas sobre quem controla o mundo digital.

Seja os Panama Papers no computador, sms das empresas, emails da ATA, ou anúncios no facebook, o nosso dia-a-dia está cada vez mais mediado por algoritmos. Isto sem falar da rede de vigilância e espionagem da NSA norte-americana, furada pelos wikileaks.

A abordagem quantitativa da realidade tem milhares de anos. Há sempre um Pitágoras que espreita dentro de nós. Mas a novidade da sociedade de informação é permitir que os computadores liguem pessoas, objectos e fluxos num processamento de dados gigante. BIG DATA!

Eric Sadin define Big data, como a proliferação ininterrupta e exponencial de dados. Esse fluxo, ou somos nós que o geramos – conversas ao telemóvel, navegação na internet, compras com cartões ou vem de procedimentos nossos registados – trajectos, compras, video-vigilância, dados fisiológicos, pulseiras electrónicas…

mundo-digitalNos dispositivos de uso doméstico, nos transportes, nos meios de comunicação, nos espaços da cidade e do trabalho, três coisas saltam à vista: o incremento brutal de sensores em aparelhos capazes de extrair informações do mundo circundante, a colocação de todos estes dispositivos em rede, a internet das coisas, a redução de quem somos a indivíduos receptores de mensagens geradas por algoritmos, que só são conhecidos das grandes empresas.

A posição internacional de empresas de tecnologia de informação – Google, Microsoft, Facebook – e de instituições como a NSA, testemunham esta nova realidade com graves repercussões.

Não queremos, decerto um mundo regulado por algoritmos, mas também não somos pela tecnofobia e o regresso ao bom selvagem.

As redes sociais vieram para ficar. A internet das coisas está a caminho

Em vez do medo da tecnologia, diz Danah Boyd, os adultos devem ajudar os jovens a desenvolver as capacidades para navegar através das complicações provocadas pela informação.

Eric Sadin diz simplesmente que nenhuma tecnologia é neutra; a tecnologia da informação que nos é oferecida é uma faceta da redução do mundo a números, em que a outra grande e poderosa parcela é o dinheiro especulativo. O progresso deu-nos uma ferramenta, mas agora cabe-nos entender as implicações da digitalização e do trabalho silencioso dos algoritmos.

A razão digital diz Eric Sadin, não é inocente, nem “cool”, nem benevolente. O controle das coisas é um projecto, não é um dado. A fluidez do comércio, a submissão dos trabalhadores nas plataformas de vendas online, o acompanhamento permanente do consumidor, a vontade de tornar os seres humanos em indivíduos transparentes, tudo isto é a utopia do panóptico. Quem conhece a Penitenciária Central de Lisboa fica logo a saber o que é o panóptico, pensado pelo utilitarista Jeremy Bentham: um edifício com um posto central vigilante que conecta os braços de um polvo.

Esse polvo, diz Eric Sadin, é o tecno-poder que pretende reduzir a vida à norma utilitária e quantitativa, que dá primazia ao “tempo real”, ao imediato; que implica uma sociedade de imanência, auto-regulada; um “tecno-poder” que facilmente é abusado pela ganância interminável da ideologia neo-liberal, da mercantilização da vida.

É preciso que os cidadãos, e os seus representantes, compreendam e controlem os dados utilizados pelo tecno-poder. É preciso que as empresas das novas tecnologias estejam sujeitas à lei. É necessário que as nações tenham centros de produção estratégicos a fim de os reorientar para o bem comum.

Uma “odisseia da reapropriação”, assim fala Eric Sadin. Uma ética para a técnica. Agir de tal maneira que o poder político submeta a racionalidade técnica ao bem comum que nos liberta.

Não queremos ser indivíduos costumizados, incapazes de abrir espaço dentro de nós para nos reinventarmos, para sermos livres e lutarmos connosco mesmo, para procurarmos o melhor e ás vezes o pior, por entre os nossos disparates, acertos, filosofias e religiões.

É complicado…mas vale a pena.

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