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Quinta-feira, Abril 25, 2024

Connected e a modernidade que gira em torno de si mesma

Carolina Maria Ruy, em São Paulo
Carolina Maria Ruy, em São Paulo
Pesquisadora, coordenadora do Centro de Memória Sindical e jornalista do site Radio Peão Brasil. Escreveu o livro "O mundo do trabalho no cinema", editou o livro de fotos "Arte de Rua" e, em 2017, a revista sobre os 100 anos da Greve Geral de 1917

A letra fala em estarmos conectados. Não conectados às redes sociais, conectados uns aos outros e ao mundo. A melodia hipnótica, entretanto, diz outra coisa. Ela convida a uma viagem individual. A ficar ligado, não necessariamente conectado.

Memes que correram pelo Twitter na tarde do dia quatro de outubro de 2021 informavam que o programador americano Mark Zuckerberg tropeçou nos fios. Outras versões desta comunicação humorística e instantânea diziam que o dono do Facebook desligou os aparelhos para a humanidade “viver um pouco”.

Brincadeiras à parte, seja lá qual tenha sido o motivo do apagão do Facebook e outras redes, naquele dia o refrão “I’m gonna get myself connected” da música Connected grudou na minha mente.

Em 1992, quando foi gravada pelo grupo britânico Stereo MC, a internet engatinhava e Zuckerberg era apenas uma criança. Claro que não haviam as redes sociais que conhecemos. Mas, embora Connected tenha sido lançada há 29 anos, ela diz muito sobre o mundo em outubro de 2021.

Não que os integrantes do Stereo MC fossem visionários prevendo um futuro hiper conectado através de computadores de bolso. Eles apenas captaram o momento e o transformaram em um som altamente moderno, urbano, instigante e hipnótico.

Não foram visionários e nem foram precursores da música pop eletrônica que em 1992 já acumulava uma história. Os alemães do Kraftwerk, por exemplo, juntaram-se para fazer música robótica em 1970. Os americanos do Devo, em 1974. Em 1986 a banda britânica Sigue Sigue Sputnik (formada em 1982) através da batida frenética, ousada e viciante do hit Love Missile fez uma crítica aos bombardeios americanos. E a maior de todas, New Order, que certamente merecia um artigo próprio, é de 1980.

Os ingleses do New Order, vale dizer, viveram uma transformação radical quando o vocalista da antiga banda que formavam, o Joy Division, se suicidou. Mantendo a mesma qualidade, eles abandonaram o tom sombrio que marcou músicas como She lost control, de 1979, e Atmosphere, de 1980, e assumiram um estilo mais vivo e inovador criando músicas como Blue Monday, de 1983, e Bizarre Love Triangle, de 1986, com seu icônico vídeo clipe que mostra fragmentos de cenas da vida nas grandes cidades.

Na década de 1990 a música eletrônica ganhou novas texturas. O uso do computador na música pop já não era experimental e há muito tempo não era novidade.

Alguns pesquisadores chamam a atenção para o impacto que a queda do muro de Berlim, em 1989, teve na cultura de massa e atribuem a esse evento a emergência de novos estilos. Como o Acid House que surgiu não apenas como uma categoria musical, mas também como um modo de vida que se arrogava aberto, amistoso, tolerante e otimista em contraponto ao pessimismo dark da década anterior. E que, por outro lado, também era marcado pela alienação, pela despolitização, pelo hedonismo e pelo uso de drogas sintéticas como o ecstasy.

A música pop eletrônica, que em outros momentos chegou a assumir nuances de crítica social, passou a ter o caráter festivo e delirante das raves, com seus músicos e DJs extrapolando os limites da modernidade tecnológica e estética, testando misturas, sobreposições e desconstruindo padrões.

Eles não extrapolavam, entretanto, os limites da própria arte como forma de discurso e de ação. Tratava-se sobretudo de um estilo inserido no sistema. Uma modernidade repetitiva que girava em torno de si mesma. Essa é o contexto de Connected.

A música é uma bem sucedida mistura de vozes, tons e instrumentos. Ela resgata elementos do funk e do jazz, mas não tem nada de retrô. É um som que desperta para o agora. Que liga o modo urbano capitalista pós industrial altamente fragmentado.

Sucesso instantâneo, Connected consta em diversas listas(1) que confirmam sua boa qualidade. A letra fala em estarmos conectados. Não conectados às redes sociais, conectados uns aos outros e ao mundo. A melodia hipnótica, entretanto, diz outra coisa. Ela convida a uma viagem individual. A ficar ligado, não necessariamente conectado.

Não surpreende que mesmo com seus 29 anos, e mesmo tão apegada ao presente, ela pareça nova. O tempo que vivemos desde a queda do Muro é regido pelas mesmas linhas dominantes e a modernidade tecnológica, que avança a passos largos, move-se em círculos em uma orquestração repetitiva e viciante envolvendo a humanidade em uma catarse coletiva.

Ficou claro naquele quatro de outubro, quando a pane de apenas uma empresa, o Facebook, apagou grande parte da comunicação global, que a concepção de conectividade que derivou do espírito libertário do início dos anos de 1990, passa por mecanismos de megaempresas privadas.

A ideia aqui é refletir sobre a ideia de modernidade que impera em nossa sociedade, e o que a música pop eletrônica nos revela sobre isso.

Naquela tarde poderia ter lembrado de outra música, de Pela Internet, do nosso Gilberto Gil, e a história seria outra. Seria uma história sobre nos apropriarmos dessa possibilidade de conectividade em rede para fazer o melhor.

Assista o vídeo New Order Bizarre Love Triangle: 

 

Notas

(1) Em 2014, a faixa foi listada como o número 322 na classificação da revista alemã Musikexpress das 700 melhores canções de todos os tempos. O Daily Telegraph classificou “Connected” em 34º lugar em sua lista “Top 50 Dance Songs” em 2015. O BuzzFeed colocou a música em 82º lugar em sua lista das “101 melhores canções de dança dos anos 90” em 2017.


Texto em português do Brasil

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