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Terça-feira, Março 19, 2024

Cristina Carvalho, Strindberg

Yvette Centeno
Yvette Centeno
Licenciou-se em Filologia Germânica, e e doutorou-se com uma tese sobre A alquimia no Fausto de Goethe. É desde 1983 Professora Catedrática da Universidade Nova de Lisboa, onde fundou o Gabinete de Estudos de Simbologia, actualmente integrado no Centro de Estudos do Imaginário Literário.

ed. Relógio D’Água, 2021

Como sempre, terei de esperar que chegue um filho para colocar a bela capa desta bela edição, como as outras a que a Relógio d’Água já nos habituou.

Cristina Carvalho, Strindberg, ed. Relógio D’Água

Já escrevi sobre outros livros de Cristina Carvalho que prossegue no caminho generoso de divulgar vidas e obras de grandes criadores universais, e não apenas da literatura: temos a música, com Chopin, o cinema, com Ingmar Bergman, a pintura, com Modigliani e agora um dramaturgo e pensador de quem eu vi, outrora, A Menina Júlia, mas ignorava a  dimensão maior de tudo o que foi fazendo nas várias artes ao longo do seu tempo de vida, nem sempre feliz, como ele diz a dada altura.

Confesso que o cuidadoso prefácio de Daniel Sampaio, abrindo o livro e a sua leitura para leigos como todos somos, antes de começar, me intimida um pouco. Se eu soubesse fazia um copy paste dos seus  comentários, que subtilmente apontam a diferença entre o que é ficção, o que é uma biografia como género literário com as suas regras, e este “romance biográfico” em que a autora, com arte exímia, fez toda a investigação necessária para enquadrar um autor de obra complexa e que exige por isso o respeito dos factos, quando investigados e conhecidos. Cristina herdou do seu pai, que eu li como Rómulo de Carvalho, no Porto, aos doze anos e só mais tarde, já em Coimbra, redescobri como poeta António Gedeão, herdou, dizia, uma enorme capacidade de reconstituir o ambiente, o espaço, em que uma vida como a de Strindberg se desenrolou.

Como refere Daniel Sampaio, encontramos nesta obra sobre Strindberg uma descrição completa e fundamentada das étapas da sua vida, dos lugares que frequentou, das mulheres que amou, dos amigos e inimigos que teve, do que foi deixando inacabado, e por fim a inovação na estrutura que Cristina escolheu para tanta matéria, ora uma identificação plena, de voz que intervém em estilo directo, ora uma distância de reflexão – de cada vez surpreendendo o leitor pela originalidade desta escolha, que mesmo assim não deixa que se perca o fio à meada da narração.

Cito de novo D.Sampaio, por concordar com o que observou e eu mesma por vezes observei, noutras obras da autora, como Rebeldia, por exemplo.

“A escrita de Cristina Carvalho é cuidada, intimista, por vezes torrencial. Vê-se que conhece bem a obra de Strindberg (…) Dá-nos um retrato muito completo da complexa personalidade deste autor sueco”.

Temos de agradecer a Cristina Carvalho que nos tenha desvendado a múltipla personalidade de um criador que foi mais do que dramaturgo, foi romancista, pintor, fotógrafo, alquimista, “instável nas relações afectivas…sempre em constante procura de si próprio e do seu lugar no mundo” (D.S.p. 8-9). Aqui temos a razão do subtítulo, em epígrafe: NESTE MUNDO FUI APENAS UM CONVIDADO.

Cabe-nos agora, a nós, ao ler a obra de Cristina, dizer à essência sublimada de um autor pouco estudado, que é um convidado que nos honra, por ter existido e deixado marcas que perduram, nessa busca de uma espiritualidade bebida em Swedenborg, que foi tão influente na Europa daquele tempo, Goethe é um dos autores que o lê e tenta idêntica busca de uma nova esfera espiritual, que também o seduz, como aconteceu com a alquimia.

Será em Inferno que poderemos descobrir muito do que foi o seu pensamento íntimo, o que fica no espólio, em regra, por precaução ou timidez. Mas estando traduzido, em inglês e já em espanhol, penso que é obrigação ler, antes de continuar a deambular por aqui, tendo a referência da obra.

É o que farei, numa segunda abordagem desta edição, felicitando mais uma vez Cristina Carvalho, que enriquece generosamente os meus dias e espero que de muitos outros que como eu não gostem de ficar pelos sucessos da espuma dos dias.

Strindberg, contemporâneo de Nietzsche, embora não se tenham conhecido pessoalmente, teve por ele uma admiração quase doentia de tão intensa, depois de ter lido Para Além do Bem e do Mal, obra que se lhe colou à pele como se fosse sua. E não admira, a época era de pensamento ousado, aspirando a revolução, a mudança, em todos os domínios da criação e do pensamento. Trocam correspondência, mas quando o filósofo alemão extravasa, noutras obras, o bom senso que o leva a considerar o homem alemão como o Homem Ideal, aquele que afirma que Deus está morto, e o Homem Novo é o que se perfila no horizonte, quando se indispõe e humilha Wagner, o seu admirador, Strindberg, entende que a ligação é perigosa e afasta-se dele, enquanto o admirado filósofo e poeta cai na treva da loucura.

Igualmente interessante é ver como Paris foi atracção, e como Strindberg ali sofreu, num obscuro quarto de hotel, o que também Rilke sofreria. Paris, a cidade sonhada e que só trouxe, a um e a outro o rosto da fome e da miséria moral a que nas ruas assistiam. Se para Strindberg foi Gauguin, pintor, a figura de relevo, para Rilke foi Rodin, escultor, não menos seco e cruel, nos anos em que lhe serviu de secretário.

A verdade é que um criador é uma alma inquieta, sempre em desassossego, e na sua consciência  de que tinha muito a dizer ao mundo, Strindberg transforma-se num caso paradigmático. Ora muito bem aceite, ora detestado por ser agressivo e rude, e se situar fora das normas da sociedade em geral. Sabia-se, sentia-se, superior ao pequeno mundo burguês, ele que vivia a arte tão intensamente e só na arte encontrava algum sentido para justificar a vida. É difícil situá-lo: antecipa o movimento Modernista, mas de forma tão feita de excesso que o sentiria, eu, mais perto do Expressionismo. Há, no que Cristina nos revela do seu carácter e de alguns comportamentos, qualquer coisa de bi-polar, mas na verdade o que fica de um criador é a obra criada, foi desse impulso de pensar e criar que nasceu, quem sabe, o excesso, o desequilíbrio, de que ele fala, defendendo-se contudo do receio de ser louco.

É curioso como a questão da loucura invadiu o mundo dos criadores, naquele tempo. Nietzsche é talvez o caso mais doloroso, mas Strindberg, o seu receio, pois discutir o que se é revela o seu receio de que o definam como tal, e chego a Fernando Pessoa, que escreve a um médico da África do Sul e lhe coloca a sua interrogação.

Vinha de antes, essa ligação entre o génio e a loucura, e há boa bibliografia sobre o tema. Na verdade o génio marca diferença entre uns e outros,  a normalidade regrada não faria nascer um Rimbaud, nem um Verlaine, muito menos um Kokoschka cuja obra é revolução de toda a norma, até mesmo no teatro que escreve. Os génios são fundadores de novas formas, com eles se abrem as consciências a uma nova ideia do ser e do seu sentido na sociedade e no mundo.

O génio é um fazedor  de mundos, por ele se sublima, como na alquimia, a matéria informe, primordial, que ele moldará a seu gosto. Cito a frase com que Cristina, numa simbiose com o autor, de absoluta liberdade que também ela pratica: “escrevo como me apetece…” da sua mão o impulso de mudança, ou de revolta, será marca fundamental. O mesmo encontramos em algumas obras que Cristina publicou, de autoria própria.

Refazer o que está feito não é o que se procura. Inovar é o lema, alterar, em todo o caso, uma absoluta imposição. Mergulhar no mais profundo da alma, o inconsciente que em breve será abordado nas suas várias esferas para nelas encontrar os mitos e arquétipos que estruturam e explicam o muito ou o pouco que saberemos de nós. Strindberg tem essa intuição genial: a busca é nele incessante, tanto quanto a revolta de não ser sempre recebido como mereceria. A vida foi-lhe talvez ingrata. Mas o que teria ele sido numa ordem social mediana e considerada normal?

Jordan Peterson, Psicólogo Clínico e Professor em Harvard, cuja obra é hoje em dia best-seller de reconhecimento mundial (e em alguns casos repudiada com igual veemência) publicou uma obra, BEYOND ORDER, em que para lá de muitos outros temas aborda, para a vida de cada um, a importância da arte. Só a arte, a criação de uma obra de arte, pode devolver a uma humanidade deprimida, a harmonia de alma de que cada vez mais necessita. Ocorre-me neste momento que isso mesmo se destaca na apreciação da vida e obra de Strindberg, a angústia e a busca permanente de uma inspiração que lhe escapa e o torna infeliz, o desequilibra, a ponto de quase desejar morrer. Mas cito Peterson “…uma obra de arte genuína invadirá a sua vida e a mudará. Uma verdadeira obra de arte é uma janela para o transcendente (…) é por isso que precisamos  de entender o papel da arte e deixar de pensar que se trata de um luxo, ou pior, uma afectação. A arte é o suporte da cultura (…) vivemos pela Arte” (J.B.Peterson, 203).

Strindberg entenderia bem estas palavras, mas é pela visão de Cristina Carvalho na sua biografia,  que essa busca premente se torna clara, com as dores e as alegrias, as hesitações que acompanham todo o verdadeiro apaixonado pela criação artística.

E agora impõe-se que se fale deste labor de Cristina Carvalho, que há anos se ocupa da cultura e da arte na cuidadosa, mas apaixonada, divulgação dos melhores que escolhe para seu trabalho. É trabalho de obreira, na definição dos alquimistas: ela é a rosa que dá o mel às abelhas…e nós somos as abelhas que se alimentam desse mel, de sabedoria feita de ler e reler (outra máxima alquímica) até à realização de uma obra única,  generosa no modo como a põe à disposição dos seus leitores, e que  merece todas as distinções que condecorem o seu trabalho e o seu mérito.  Existem, está na hora de atribuir.

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