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Segunda-feira, Dezembro 2, 2024

Delenda est Carthago?

Rui Miguel Duarte
Rui Miguel Duarte
Filólogo; investigador do Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Delenda est Carthago ou, para ser conforme aos dias de hoje, delenda est Res Publica Islamica in Iraquia et Syria! De todos os quadrantes políticos franceses, a mesma declaração aux armes soa contra o Daesh.

Anteriormente, era Nicolas Sarkozy quem fazia as despesas do discurso bélico. Por exemplo, na entrevista ao Le Figaro, a 10 de Setembro, onde declarava a necessidade absoluta de vencer o Daesh e dos bombardeamentos aéreos como estratégia essencial para esse fim. Também da ala direita, Marine Le Pen exigia a segurança. À esquerda, jurava-se pelas liberdades.

O 13 de Novembro foi o ponto de charneira. Da esquerda à direita, quase todos se tornaram Catão. As declarações de guerra tornaram-se explícitas, um acto performativo de linguagem: declará-la é já fazê-la: “Estamos em guerra!”. Sarkozy assim se pronunciou no dia 15, fiel à posição anterior. François Hollande (não raro considerado “mole”), assumiu a autoridade de Presidente e declarou guerra ao Daesh, logo após os eventos, ordenando acto contínuo o ataque aéreo massivo às posições do grupo. No Parlamento, o Primeiro-Ministro, Manuel Valls (socialista, como o Presidente), profere idêntica declaração.

Quase todos, porquanto existem declinações e dissonâncias. Marine Le Pen reafirma a necessidade de garantir a segurança, o controlo das fronteiras e propõe o encerramento de mesquitas radicais — coerente com as suas teses habituais. Não se lhe tendo ouvido a palavra “guerra”, quase soa moderada em comparação com os pontas de lança do PS e de Les Républicains (Os Republicanos, nome de refundação atribuído em 2015 por Sarkozy à antiga UMP – dominique-de-villepinUnion pour un mouvement populaire).

Outra voz, heterodoxa, é a de Dominique de Villepin (DdV). Ex-colaborador de Chirac, com longa carreira política que culminaria no exercício do cargo de Primeiro-Ministro entre 2005 e 2007, deixou a UMP. Já não é de hoje que defende uma abordagem menos bélica na luta contra este grupo terrorista, mas preconiza a diplomática como preparatória e complementar da bélica. A haver um envolvimento bélico por parte da França, que seja indirecto.

Remonte-se à entrevista a Jean-Michel Apathie, na rádio RTL, de 29 de Setembro de 2014. Expressou, na ocasião, que os ataques levados a efeito pela coligação dirigida pelos EUA lhe causavam “inquietação”. A experiência, velha de uns 50 ou 60 anos, permite-lhe ser categórico sobre os resultados da estratégia bélica: “Não produz os resultados que esperamos.” Antes os contrários: “Ela alimenta o terrorismo. Legitima o terrorismo. Imagine que é o alvo de uma coligação de toda a comunidade internacional; quando se é um terrorista, isso dá um estatuto, uma tribuna, um peso. Em segundo, leva a radicalizar e a cristalizar”.

Indício claro disso seria que, na primeira década do século, haveria um dos berços de terrorismo no mundo, havendo hoje mais de uma quinzena — observa. Até agora, tem-se recorrido à guerra como meio “para reparar os erros da guerra anterior. Não nos esqueçamos: o Estado Islâmico” — assevera — “fomos nós quem o deu à luz”. Entende que esta organização é o “resultado dessa guerra”. O EI — diz — para além dos combatentes estrangeiros, “tem como base as tribos sunitas. Ora, na sequência desta invasão, cometeram-se erros como o apoio ao regime pró-xiita de Al Maliki no Iraque e o abandono dos rebeldes sírios”. Seria preciso um tratamento político local para a questão: “dissociar os verdadeiros terroristas da sua base de apoio sunita”.

Não lutamos contra uma mão invisível, pelo contrário, estamos a dar-lhe um papel e uma respeitabilidade maiores

A intervenção armada, porém, não deixa de ser necessária, mas deve também ser local. “Todos sabemos que esta coligação é apreendida como americana” — diz. Assim, só poderá ser eficaz, no seu entender, se os outros países sunitas do Golfo, que dispõem de “armamento sólido”, designadamente cerca de seiscentos aviões de caça, “tomarem a dianteira”. É verdade que alguns desses países participam na coligação, mas apenas “para a fotografia, tal como a França”. Em vez de uma coligação “americana”, exige-se o contrário: “nós só deveríamos intervir pontualmente e em apoio”. Infelizmente, porém, alguns países têm sido parcialmente responsáveis pelo terrorismo. Como o Catar, e o Kuwait, a Arábia Saudita. Ou mesmo a ambígua Turquia. Há uma dificuldade e um defeito de perspectiva que têm sido ignorados. A dificuldade: “o terrorista é oportunista, volúvel, mutante. Não lutamos contra uma mão invisível, pelo contrário, estamos a dar-lhe um papel e uma respeitabilidade maiores”. O defeito: “nas suas regiões, os terroristas são frequentemente vistos como defensores de objectivos políticos e religiosos que não partilhamos”. Não se trata de mero “ponto de vista” pessoal, mas da “experiência” adquirida.

Terá DdV mudado de ideias após os atentados de 2015? Ele que, entre os políticos franceses actuais, é o único que mereceu elogio em carta aberta do escritor Michel Houellebecq — célebre pelo romance Soumission, que ficciona uma França transmutada em República Islâmica na sequência de uma eleição presidencial —, publicada ontem, 19 de Novembro, no italiano Corriere della sera (http://www.corriere.it/cultura/15_novembre_19/attentati-parigi-houellebecq-io-accuso-hollande-difendo-francesi-eafac2b2-8e84-11e5-aea5-af74b18a84ea.shtml).

Ficará DdV para a história — diz Houellebecq — por um facto não despiciendo: ter livrado a França de entrar na guerra “criminosa e idiota” do Iraque, em 2003. Com dois fortes traumas sofridos por França no mesmo ano, a estratégia preconizada por DdV confirma ou refuta a sua tese prévia? Com efeito, quatro dias após o 13 de Novembro, no programa “Grand Jury” da mesma rádio (com os jornalistas Elizabeth Martichoux, Alexis Brézet e Julien Arnaut) mantém as mesmas convicções. Não o surpreendem os factos. Face à declaração bélica de facto (“Estamos em guerra”) de Claude Bartolone, Presidente da Assembleia Nacional, na primeira parte do programa, as afirmações de DdV não poderiam ser mais contrastantes. Está-se perante um “processo inelutável de militarização da nossa acção e da nossa diplomacia, sem saída”, para o qual repetira avisos. “Não podemos ganhar a guerra contra o terrorismo” — mantém. Portanto, é premente a necessidade de substituir “as nossas escolhas em bases sólidas que nos permitam ganhar e agir em conjunto e preservar os nossos valores”. Estes atentados “estão ligados a um processo histórico que cresceu com as intervenções no Afeganistão, no Iraque e na Líbia”.

Aos responsáveis políticos é imprescindível a “contenção”. Recusa absolutamente o discurso e a própria noção de guerra: “não fazemos a guerra contra o terrorista. Não quero entrar no jogo do inimigo. Hoje, é-nos estendida uma armadilha: a ideia de que estamos e de que devemos entrar em guerra. A utilização de granadas, kalachnikovs, algumas munições, não é isso que constitui um exército, no âmbito de um Estado. Há uma guerra quando dois Estados e dois exércitos entram em confronto.” Deste modo, corre-se o risco de “desresponsabilizar esses grupos que atacam dentro do território francês, como se fossem guerreiros com o objectivo de conquistá-lo, sendo que a verdade é muito mais simples: o seu propósito é dividir-nos e empurrar-nos para uma espécie de guerra civil, fazendo espoletar represálias contra a comunidade muçulmana. Pretendem destruir-nos”. E uma verificação que fez a prova do tempo: “Desejo que aprendamos as lições da experiência. Nos últimos dez anos, as coisas só se têm agravado e não ganhámos qualquer guerra”.

A França deve dar o exemplo, ser líder e tomar a iniciativa. É o único país que não deve impor condições mas que deve avançar

Esta abordagem não é a melhor — diz. Uma tal estratégia de guerra total incorre num grave risco: “mobilizar uma parte das opiniões públicas dos povos da região contra nós”. E vinca: “Estamos num período em que as palavras devem ter um sentido”. Perante o facto da guerra, preconiza que no seio da coligação se delineie um plano de resolução das questões do Iraque e da Síria. No tocante a este último país, entende ser necessário dialogar com todos os actores políticos, incluindo com Bashar Al-Assad, o qual, porém, não está em condições de ser parte de solução de futuro. E para a França reclama a assumpção de um papel histórico, ao qual tem sido alheia: o de intermediário entre todos os países, em particular dois, que “mal se falam, o Irão e a Arábia Saudita. A França deve dar o exemplo, ser líder e tomar a iniciativa. É o único país que não deve impor condições mas que deve avançar”.

À guerra total, prefere uma “mobilização e determinação total”, mais pragmática, e com um calendário claro. Primeiramente, firmar em poucas semanas e dias, um acordo político, o qual envolva outros países e actores da região, e no qual, igualmente, a Rússia deverá participar. Firmado este, é necessário agir rapidamente e não desarmar os ataques aéreos, de modo a “não deixar àqueles que atacam o nosso país o tempo de respirar”.

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