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Quinta-feira, Abril 25, 2024

Desenterrar Salazar?

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

O Estado Novo se consolidou em torno da formação de um bloco no poder na origem heterogéneo, que abrangeu também personalidades republicanas e liberais, foi cimentado por Salazar depois de as altas patentes das Forças Armadas terem ficado seduzidas pelo seu “milagre financeiro”.

O Estado Novo se consolidou em torno da formação de um bloco no poder na origem heterogéneo, que abrangeu também personalidades republicanas e liberais, foi cimentado por Salazar depois de as altas patentes das Forças Armadas terem ficado seduzidas pelo seu “milagre financeiro”.

Neutralidade do Estado face à exaltação do fascismo?

Num seu artigo recente escreve António Barreto:

A polémica dos museus foi recentemente enriquecida por uma nova história. A do Museu Salazar ou do Estado Novo. A ideia surgiu nas cabeças de familiares, de habitantes de Santa Comba e de vereadores do mesmo município. Não se imagina o que será, dada a ausência de objectos interessantes. A maior parte do acervo do ditador ficou nos arquivos da Presidência de Conselho de Ministros, visto o senhor confundir intimamente a sua vida com a do seu país. Tal documentação, de grande valor, habita hoje, e muito bem, a Torre do Tombo. Mas tudo parece indicar que alguns munícipes querem explorar o turismo e as fontes de interesse daquele pobre concelho. Um vereador chegou a dizer que o Museu Salazar era importante para a sustentabilidade e a atractividade do concelho!

Se a ideia, o trabalho, os custos e a responsabilidade são dos familiares, não se vê razão válida para impedir esse museu, tal como pretendem tantos peticionários indignados. Se esses esforços forem da câmara, também não se vê argumento para impedir a obra, desde que haja democracia na decisão, o que é fácil obter por intermédio da vereação e da assembleia.

e acrescenta:

Mas o mundo é como é. Na praça pública, com argumentos pobres, multiplicam-se os pedidos para proibir esse museu. Proibir o Museu Salazar, tal como ele proibiu tantos? É essa a diferença entre os dois regimes, os que ele proibiu proíbem-no agora? O Estado democrático não deve financiar o Museu Salazar, mas também não deve proibi-lo. O Estado democrático não pode tratar Salazar tal como ele tratou a democracia: proibindo-a! Nós não podemos tratar Salazar tal como ele nos tratou a nós!

e , mais adiante, repisa:

O Estado democrático pode financiar museus que tenham a liberdade como valor. Tal como pode financiar instituições museológicas relativas à independência nacional, aos feitos militares, às batalhas pela independência, à luta contra os opressores estrangeiros (mouros, franceses ou espanhóis, por exemplo), aos descobrimentos, à colonização, à monarquia ou à República. Como pode organizar instituições dedicadas ao estudo de fenómenos que são hoje questionados, como a Inquisição, a expulsão dos judeus, a escravatura, o encerramento das ordens e dos mosteiros, a expulsão dos religiosos, a censura ou a polícia política. Mas não faz sentido o Estado democrático apoiar iniciativas destinadas a louvar quem oprimiu a liberdade e quem lutou contra a democracia. Assim como não faz sentido que o Estado democrático proíba os privados, as pessoas e outras comunidades de festejar o que quiserem, desde que sem apoio do Estado.”

Ora bem, embora António Barreto pareça reduzir a decisão do Estado a “financiar” ou “não financiar” (só uma vez concede que o Estado também pode “organizar”) a sua formulação da questão dissimula que:

  •  as autarquias também são, neste contexto, “Estado” e não comunidades independentes, e que os dinheiros que cobram, ou recebem de outros sectores ou entidades, e aplicam, também são públicos;
  • no nº 4 do artigo 46º da Constituição da República Portuguesa (CRP) se estabelece que não são consentidas “organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista”, aliás o seu preâmbulo recorda que “A 25 de Abril de 1974…. o Movimento das Forças Armadas… derrubou o regime fascista.

O liberalismo “a la Barreto” não tem pois ancoragem na CRP e não é livre a criação de organizações (em sentido amplo) para “festejar” as experiências fascistas, nossas ou alheias, ou promover novos ciclos de fascismo.

Na redacção originária do Artigo 46º ainda não se mencionava aliás as organizações racistas, e à medida que a CRP se enriquece com  novos direitos e garantias, o Código Penal vai criminalizando as actuações que visam obstaculizar o  respectivo exercício e fomentar o ódio a grupos determinados, limitando o campo de actuação consentido às novas organizações de índole fascista.

Conhecer melhor Salazar e o seu período

Tenho vindo a referir, inclusive no Jornal Tornado de 18-12-2018,  que o Estado Novo se consolidou em torno da formação de um bloco no poder na origem heterogéneo, que abrangeu também personalidades republicanas e liberais, foi cimentado por Salazar depois de as altas patentes das Forças Armadas terem ficado seduzidas pelo seu “milagre financeiro”. A partir daí  ficaram a crédito de Salazar a integração de várias forças na União Nacional, a negociação “interna” da Constituição de 1933, os investimentos da Lei de Reconstituição Económica, o reapetrechamento das Forças Armadas, a gestão dos Negócios Estrangeiros e o não  envolvimento do país na II Guerra Mundial. Estes desenvolvimentos, bem como aqueles que se verificaram no pós  Guerra, em que o regime se atrelou à NATO e à OECE / OCDE, os Planos de Fomento, as guerras coloniais, são bem conhecidos hoje em dia graças ao trabalho dos historiadores.

Talvez falte ainda um melhor conhecimento do “milagre financeiro” e de experiências paralelas em outros países,  dos mecanismos que levaram à coesão de certas elites em torno das politicas desenvolvidas e, neste como noutros domínios, do grau de apoio efectivo angariado por Salazar. Fernando Emygdio da Silva, Professor de Finanças Públicas de Direito de Lisboa, que fez parte de todas ou quase todas as Câmaras Corporativas mas nunca se envolveu no Governo, deixou artigos e conferências, e, enquanto colaborador do Diário de Notícias, entrevistas ao alemão Schacht e ao austríaco Seipel, autores também de “milagres financeiros” nos seus países. E em termos de apoio das classes médias, da juventude, das mulheres (ainda ouvi “Era um bonito homem !”), que sabemos de facto?

Nunca aceitou encarar a sucessão, mas o medo da instabilidade da I República não deixou de enformar a nossa constituição orçamental entre 1976 e 1982, tal como em geral a configuração do sistema partidário pós 25 de Abril, em que, curiosamente, os eleitores se recusam a recompensar cisões partidárias como as que instabilizaram os últimos anos da I República.

Sim,  foi, como desejou, o “chefe do governo”, tendo as suas mãos a designação do “chefe do Estado”, e o responsável máximo pela repressão e pela interiorização do “a minha política é o trabalho”, mas a imagem do “ditador modesto” que aquando da visita de Isabel II se sentava protocolarmente atrás da rainha visitante e de Craveiro Lopes, que levava uma vida morigerada e que era considerado pessoalmente honesto em questões de dinheiros, como já referi no Jornal Tornado de 13-2-2019, essa terá ficado.

Os “beirões assinalados”, recurso do turismo cultural e politico?

Que nos diz um livro sem finalidades especificamente historiográficas como Portugal – o Sabor da Terra de José Mattoso, Suzanne Daveau e Duarte Belo, na legenda da sua foto 337 – Casa onde nasceu António de Oliveira Salazar – Vimieiro, Santa Comba Dão. Em 1932 ascende à Presidência do Ministério. Até à sua morte, em 1968, será o líder do governo do Estado Novo. Representa, ao mesmo tempo, a expressão dos regimes totalitários do século XX e a tentative de conciliação do tradicionalismo e do paternalismo estatal com a política moderna. O seu carácter severo, autoritário e económico fazem dele um caso notável  do espírito beirão.”

Aquando do recente debate vi alguns bons trabalhos de jornalistas do Público tentando reunir elementos sobre o projecto de evocação de Salazar mais uma vez patrocinado por um Presidente PS da Câmara de Santa Comba Dão (que agora percebo ser o terceiro a avançar com a ideia), pensei que se estava perante mais um projecto turístico-cultural (e não conhecia o episódio da Marca Salazar, do segundo Presidente, PSD), cujo patrocínio académico não estava ainda definido, e só um artigo de opinião de Luís Reis Torgal, que obviamente se identifica como “beirão”, me revelou estar já definido um “projecto lato” que abrangeria iniciativas de evocação / musealização de outros tantos beirões, a saber António José de Almeida (Penacova), Afonso Costa (Seia), Aristides de Sousa Mendes (Carregal do Sal), Alberto de Veiga Simões (Arganil), Fernando Vale, Alberto Moura Pinto, que seriam agregados a Salazar (Santa Comba Dão) onde já se investira e se investirá ainda numa espécie de patrimonialização de Salazar (o termo foi usado ironicamente num artigo de Miguel Cardina).

Não sei se os dignos dirigentes republicanos, designadamente os que foram perseguidos pelo Estado Novo, e Aristides de Sousa Mendes ficarão satisfeitos por ter a companhia de Salazar neste projecto, mas já não se podem defender. Ficarão todos integrados num “Roteiro de Figuras Históricas”. Espero que Cunha Leal (Penamacor, se esta for considerada no hinterland da Universidade de Coimbra) e Álvaro Cunhal (Seia) não sejam esquecidos, mesmo que não haja espaços associados, e que Marcello Caetano, que nasceu em Lisboa mas cujas raizes são de Arganil, tenha pelo menos uma menção honrosa.

Numa notícia que tem por fonte a ADICES, sediada em Santa Comba Dão, esta associação de desenvolvimento local assume estar na origem da iniciativa, que terá acabado por convergir com outra do CEIS 20. Não é importante a paternidade exacta, aliás todos parecem comungar numa visão apolítica (?!), “sem objectivos ideológicos” (?!), como não o são os “mimos” que alguns dos intervenientes nos debates, obviamente todos de esquerda, vêm dirigindo uns aos outros.

O Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX agarrou um tigre pela cauda?

Apesar da confiança evidenciada pelos dirigentes do CEIS 20 este projecto de desenterrar Salazar suscita algumas perplexidades. Luís Reis Torgal parece subscrever  a preocupação da Câmara de Santa Comba Dão “Entendia-se, por um lado, que manter as casas em ruínas, como se encontram, era uma vergonha para a autarquia e até para a democracia, que deveria tratar de modo digno as referidas habitações”, mas é um facto que Salazar geriu no essencial a sua vida sem ajudas do Estado, teve funerais modestos na sua terra natal e nela deixou bens e herdeiros.  A democracia deve-lhe  alguma coisa? João  Paulo Avelãs Nunes promete um Centro de Interpretação que até fará os salazaristas reagirem mal, julgando poder dar garantias sobre a sua orientação, mas tanto um como outro  tiveram de reconhecer que as primeiras comunicações da Câmara sobre o projecto pareceram estranhas  e que a Câmara não conseguiu iniciamente responder à onda de dúvidas e de críticas por os consultores estarem fora do País. Não é muito auspicioso e a Comissão Permanente da Assembleia da República, muito embora o PS esteja envolvido na Câmara Municipal, não deixou de se mostrar incomodada. E será que o CEIS 20 irá manter o controlo quando o projecto entrar em fase de funcionamento ?

Ao argumento, de ambos, que a extrema direita tem pouco peso em Portugal e de que se não correm riscos de manifestações saudosistas, dou duas respostas: a primeira, é a de que a extrema direita que temos que está orgânicamente dispersa e cuja expressão é certamente maior que a eleitoralmente revelada, não é genuinamente saudosista, é sim oportunista, até no sentido etimológico: sabe aproveitar oportunidades; a segunda é que Salazar não foi, no seu tempo, de extrema – direita, mas sim um organizador da direita, ou até se quisermos, do centro e da direita da época, a partir do Estado.

Luís Reis Torgal aliás parece reconhecer esta segunda vertente da questão quando fala de:  contextualizar um sistema que durou cerca de quarenta anos, que tem como explicação o ruralismo do estadista ali nascido no Vimieiro, o seu “catedratismo” e catolicismo conservador de tipo social em Coimbra, como a sua acção no sentido da formação e afirmação do Estado Novo a partir de Lisboa. Trata-se afinal de uma contextualização que revele o sentido da sua doutrina política corporativista de “partido único”, com o seu aparelho de “reprodução” e de repressão que lhe anda ligado (em termos de Censura e autocensura e de perseguição pela PIDE…”).

O que me leva a sugerir que se crie também um “Centro de Interpretação do Estado  Novo” na própria Universidade de Coimbra, durante a I República foco de reacção, e que no tempo da Ditadura Nacional e dos primórdios do Estado Novo forneceu ao regime parte do seu pessoal politico, incluindo o próprio Salazar.

 

Público de 1 – 9- 2019.

Como alguém que foi Ministro e deputado certamente não ignora, aliás o Município de Santa Comba Dão investiu uma quantia avultada na aquisição dos bens que pertenceram a Salazar.

O CDS, que votou contra a CRP, bem tem tentado alterar o Preâmbulo, e alargar a referência às organizações fascistas para “organizações totalitárias”.

Artigo 240º.

O fascismo irá regressar a Portugal?

Ciclos políticos e percepção da corrupção ou fenómenos conexos

Legenda da responsabilidade de Duarte Belo, que aliás faz erroneamente coincidir a morte física, em 1970, com a morte política em 1968.

O “debate” e O Debate sobre o Centro de Interpretação do Estado Novo em Santa Comba Dão”, no Público de 2-9-2019.

Comprei e li com muito interesse um dos livros da agora doutora Lina Madeira sobre Veiga Simões e tentarei encontrar o outro cuja existência foi revelada por Luís Reis Torgal.

“Centros de Interpretação querem dar a conhecer de forma isenta a I República e o Estado Novo”, no Público de 4 de Setembro de 2019.


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