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Quinta-feira, Abril 25, 2024

Do contrato ao reconhecimento II

Maria do Céu Pires
Maria do Céu Pires
Doutorada em Filosofia. Professora.

A filosofia social e política moderna, desde Maquiavel passando por J. Locke e T. Hobbes, pressupõe relações “naturais” de hostilidade e de medo e os consequentes mecanismos de segurança como condição essencial para a sobrevivência individual e que estão na origem e suportam a manutenção da comunidade política (Estado).

Ao “estado de natureza”, caracterizado pela luta de todos contra todos, pelo conflito e pelo medo associado à sobrevivência, contrapõe-se o Estado que surge como garante dos interesses individuais relativos à liberdade e à manutenção da propriedade.

Assim, esta visão contratualista que explica a legitimidade do Estado como essa “troca” recíproca em que cada um cede parte da sua liberdade a troco de alguma segurança, está, também, associada a uma visão atomista e individualista da vida social.

Como referi anteriormente, na parte 1 deste texto, o filósofo e sociólogo alemão Axel Honneth (representante da 3ª geração da Escola de Frankfurt) vai perspectivar, de uma forma bem diferente, as relações sociais e políticas, assinalando a dimensão moral dos conflitos sociais, centrando-se na noção de reconhecimento recíproco.

Na obra La lutte pour la reconnaissance [1] A. Honneth pretende explicar os processos de transformação social em função de exigências inscritas nas relações de reconhecimento recíproco, tornando manifesta aquilo que classifica como a lógica moral dos conflitos sociais [2].

Relações primárias

São as relações de amor, relações primárias que implicam laços afectivos entre um número restrito de pessoas, que constituem o primeiro degrau do reconhecimento recíproco pois os sujeitos envolvidos constituem-se mutuamente nas suas necessidades e na experiência da solicitude mútua.

Os estudos psicanalíticos pós-freudianos acentuam, nestas relações, o equilíbrio precário entre autonomia e dependência, e tentam mostrar como se opera a passagem, no caso da relação mãe/bebé, de um estado inicial de simbiose e dependência absoluta à diferenciação e à afirmação da independência.

Será precisamente o desenvolvimento de tendências agressivas que acontecem no momento em que se dá a descoberta duma realidade que resiste à sua vontade que conduzirá a criança à descoberta de uma entidade com exigências próprias mas de cuja solicitude ela está depende. A solicitude da pessoa amada garantida na relação intersubjectiva será o alicerce em que florescem a tranquilidade, a segurança e a capacidade de “estar só”.

Relações sociais

A experiência intersubjectiva do amor gera segurança emocional que se torna pré-requisito psíquico do desenvolvimento de todas as atitudes de respeito por si. São esses sentimentos positivos em relação aos outros que permitirão alargar a esfera das relações sociais fazendo crescer o número de parceiros de interacção, tornando-se o núcleo da vida ética e também condição para a participação no espaço público

O amor, o direito e a solidariedade/estima social são os quadros onde se inscrevem diferentes tipos de relações humanas que demandam reconhecimento. Assim, para A. Honneth são, precisamente, os conflitos associados a experiências de ausência de reconhecimento, as situações negativas de humilhação e de sofrimento que impulsionaram o desenvolvimento social levando, no decurso da evolução histórica, os sujeitos e os grupos a alcançarem patamares cada vez mais alargados de direitos, o que se traduziu nas três gerações de Direitos Humanos.

Os atentados à integridade física (tortura e violação), jurídica (exclusão de direitos) e moral (juízos negativos sobre o valor de certos indivíduos ou grupos) não provocam apenas danos materiais ou limitações à liberdade de acção mas atingem a confiança e a estima de si.

As emoções negativas (vergonha, cólera, indignação) que acompanham a experiência de não-reconhecimento funcionam como impulsionador positivo no qual se enraíza a luta por reconhecimento. Trata-se de uma espécie de impulsor psíquico que, informando cognitivamente a pessoa sobre a sua situação social, permite a passagem da passividade à acção.

Fonte de conflitos

Segundo este ponto de vista, o reconhecimento recíproco da dignidade é o núcleo constitutivo da identidade pessoal e a experiência de não reconhecimento é fonte de conflitos e, como tal, o motor das lutas sociais.

Dito de outro modo: encontramo-nos face a uma perspectiva que encara as relações sociais e políticas, não numa perspetiva contratualista/individualista mas sim, numa perspetiva de relação e de intersubjetividade.

Os humanos não são átomos em permanente luta pela sobrevivência, em relação com um outro/adversário mas seres que se constituem pela relação de reconhecimento recíproco.

[1] HONNETH, Axel, La Lutte pour la reconnaissaince, Paris, Les Éditions du Cerf, 2010
[1] Idem, p.8

Leia a Parte I

Nota do Director

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