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Segunda-feira, Março 18, 2024

E se Trump se recusar a deixar o cargo?

Arnaldo Xarim
Arnaldo Xarim
Economista

A pouco mais de quatro meses de vista das eleições presidenciais, com a pandemia da covid-19 no auge e o rescaldo do movimento “Black Lives Matter”, vários são os cenários que já começam a aparecer nos meios de comunicação norte-americanos.

Com as sondagens a darem cada vez maior favoritismo ao candidato democrata e com a recente notícia de uma semana difícil para Trump que termina com sondagem preocupante da Fox News que dá vantagem de 12 pontos ao seu adversário, começaram também a ressurgir alguns comentários e análises sobre os possíveis cenários pós-eleitorais, num país que ainda há bem pouco tempo se revelou especialmente vulnerável em matérias de fiabilidade do seu sistema eleitoral.

É verdade, o farol da democracia mundial tem o seu presidente eleito por um colégio eleitoral e não pelo voto directo da sua população. E ocasiões houve em que o candidato eleito pelo colégio foi o que recebeu menor número de votos dos eleitores (a farsa vai ao pormenor de pôr o eleitores a votar num candidato quando na realidade estão a eleger os delegados estaduais ao Colégio Eleitoral), como sucedeu em 1876 quando o candidato republicano, Rutherford B. Hayes, foi eleito apesar do seu oponente, o democrata Samuel J. Tilden, ter obtido quase 300.000 votos a mais; novamente em 1888, o candidato democrata Grover Cleveland obteve cerca de 100.000 votos a mais que o republicano Benjamin Harrison que viria a ser eleito; mas a pior e mais discrepante situação ocorreu em 2000 quando o democrata Al Gore foi preterido a favor do republicano George W Bush apesar de ter obtido mais 500.000 votos no total nacional.

A explicação para estas discrepâncias resulta da distribuição estadual dos representantes poder distorcer o somatório de votos individuais dos cidadãos; o facto de todas as vezes terem sido os candidatos republicanos a beneficiar será meramente acidental, ainda que no caso de George W Bush nunca se possa esquecer que a maioria dos membros do tribunal da Florida que decidiu a seu favor tenha sido nomeada durante a presidência de George Bush (pai).

Tudo isto ocorre sem que a imprensa ocidental jamais comente um método eleitoral tão rebuscado como o americano, que para chegar à escolha de um colégio eleitoral se arrasta durante largos meses, ou talvez por viverem há muitas décadas num sistema bipartidário, as duas formações políticas americanas desdobram-se na escolha do seu candidato partidário (as chamadas primárias), variando o método de escolha em função dos estados federados – onde enquanto uns realizam verdadeiras assembleias eleitorais (os denominados “caucus” que podem ou não ser reservados apenas aos eleitores inscritos no seu partido) outros recorrem ao sistema de votação em urna para a escolha dos representantes ao congresso do partido – e a generalidade dos eleitores já nem reconhece facilmente a manipulação que rodeia todo este processo.

Não espanta, pois, que republicanos e democratas (os dois partidos americanos) apostem tudo na escolha do seu candidato ao pleito final, que acabará por ser eleito por outro colégio eleitoral e empolgam-se em torno dos espectáculos mediáticos montados pelos agentes de “marketing” dos dois partidos.

Depois da eleição de 2000, decidida não nas urnas nem no colégio eleitoral, mas sim por sentença de um tribunal da Florida, eis que vinte anos depois se equacionam abertamente outros cenários, ainda mais trágicos que aquele. A questão agora já nem passa pelo eventual recurso ao sistema judicial (isso já é quase dado como adquirido), antes pela dúvida em torno da hipótese do actual presidente e candidato à reeleição se recusar a aceitar uma eventual derrota. É verdade, no grande farol da democracia ocidental já se admite abertamente o cenário de um candidato se recusar a aceitar a derrota.

Eu sei que estamos a falar de uma situação ainda hipotética e de um personagem do calibre de Donald Trump (facto que não só não obstou à sua eleição em 2016, como até terá sido determinante para o resultado), mas a sua simples menção deveria indignar todo um sistema que se afirma democrático e o melhor do mundo.

Mesmo descontando o facto da origem da afirmação poder derivar do campo democrata e de se viver um clima especial por as eleições se aproximarem a passos largos, a imprensa norte-americana já aborda a questão (como o fez a CNN, a VOX, a SLATE ou a POLITICO) de forma mais ou menos aberta e até Karl Rove, o velho estratega de George W Bush, se apresentou na indefectível FOX NEWS a negar a hipótese.

Um dos tipos possíveis de análise (e comentário) consiste em recuperar a velha questão da interferência russa e transferir a suspeita para o Kremlin ou em recordar o tradicional clima de jogadas de bastidores que tornem a eleição tão caótica quanto possível, colocando obstáculos (particularmente aos eleitores afro-americanos) para impedir o voto e preparar a desacreditação dos resultados em caso de vitória do candidato democrata. Para quem pense que este cenário é demasiado rocambolesco bastará recordar o que aconteceu já este mês nas eleições primárias no estado da Geórgia onde a instalação de novas máquinas de voto resultou em longas filas de espera (especialmente nos bairros maioritariamente afro-americanos), por impreparação dos funcionários eleitorais para o seu manuseio e numa surpreendente sucessão de avarias.

A par com quem já nem hesite em antecipar que no caso de uma derrota de Donald Trump não se registe uma transição pacífica de poder, há também quem lembre que os verdadeiros autocratas não perdem eleições, pois o que fazem é manobrar antecipadamente e manipular os meios para assegurarem o resultado pretendido, já que a existência de uma oposição e de um sistema eleitoral suficientemente forte, ainda que disfuncional, colocam fora de cogitação as hipóteses de recurso a medidas extremas como a prisão de opositores ou o silenciamento da comunicação social hostil. Embora uma fraude generalizada em todo o país possa ser impossível, a facção republicana mais radical tem vindo a revelar-se mais do que disposta a distorcer ou violar as normas democráticas onde tem controle local, criando uma sucessão de eventos para contrariar uma derrota eleitoral e assim possibilitar a manutenção no poder, mesmo que isso custasse a democracia americana.


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