Diário
Director

Independente
João de Sousa

Quarta-feira, Março 27, 2024

Entrevista a Juvenal Bucuane

Delmar Gonçalves, de Moçambique
Delmar Gonçalves, de Moçambique
De Quelimane, República de Moçambique. Presidente do Círculo de Escritores Moçambicanos na Diáspora (CEMD) e Coordenador Literário da Editorial Minerva. Venceu o Prémio de Literatura Juvenil Ferreira de Castro em 1987; o Galardão África Today em 2006; e o Prémio Lusofonia 2017.

Delmar Maia Gonçalves fala com o escritor e poeta moçambicano Juvenal Bucuane.

Jornal Tornado: Em breves palavras, qual o panorama da Literatura Moçambicana no momento actual?

Juvenal Bucuane: Tive várias ocasiões de me pronunciar acerca desta importante questão o que me resta fazer, neste momento é apenas uma reiteração: hoje, a literatura moçambicana evolui, a olhos vistos, em moldes sem precedentes, os seus actores, são maioritariamente jovens afoitos que, felizmente, não descuram o papel preponderante das gerações a eles anteriores, para se aconselharem no que seja necessário, para o seu crescimento. Gostaria de salientar que o estado actual da literatura em Moçambique assenta, em parte (significativa) no papel dinâmico e inquestionável do grupo jovem que funda a Revista Literária  Charrua e o Movimento do mesmo nome, em 1984, e que vigorou entre 1984 e 1987. Este grupo, entregou-se, com afinco, ao aliciante desafio renovador de avançar, corajosamente, mesmo que com considerável dose de utopia, o curso da literatura moçambicana; mudar, conscientemente, o rumo, que seguia, desde os primórdios, passando pela literatura da resistência à dominação colonial, pela do luso-tropicalismo, tendente a reafirmação do domínio colonial; pela da gesta libertária de Moçambique, do jugo colonial, enfim, pelo lapso revolucionário, esteio da identidade moçambicana. Nessa fase, avulta-se a preocupação estética dos textos produzidos, mas sempre com base na real e actual convivência do povo moçambicano.

O grande problema é o facto desse esforço, não ser correspondido pelo consumo dos leitores que ficaram muito aquém dos avanços conquistados na produção: por falta de insetívos à leitura, por apatia dos potenciais leitores e mais preocupante, ainda, a prevalência massiva do analfabetismo. É necessário que esforços sejam feitos para que esses dois carris se reacompanhem, paralelamente, na ductilidade do caminho, para gáudio da literatura moçambicana.

Há muitos escritores moçambicanos de qualidade elevada entre os quais o Juvenal Bucuane. O que terá sido para si determinante para atingir este patamar?

De acordo com o que a realidade objectiva me dá a observar, Moçambique já foi um repositório rico de potenciais escritores, portanto, promessas alcandoradas na linha do horizonte das nossas aspirações, hoje é um potentado de escritores de inegável qualidade, não só a nível interno, como, também, a nível externo. Poderia mencionar nomes, para sustentar o que digo, mas, não quero correr o risco de, nomeando uns e esquecer-me de outros ou, de, os não mencionados, interpretarem tal omissão por desconsideração. Também, julgo que a minha atitude evita a hegemonização viciosa de certos escritores, em detrimento de outros, dando, assim a impressão de que o nosso país esteja falto de grandes nomes no cenário literário.

Os escritores moçambicanos dedicados, esmeram-se em, qualidade, nos textos que produzem, aliados as suas vivências.

Quanto a mim, embora não goste muito de me autoreferenciar, para o atingimento da patamar em que presentemente estou, foi determinante a minha perseverança, muita leitura de vários autores, entre nacionais e estrangeiros, muita reflexão sobre o que leio, muito exercício de escrita e reescrita, muito convívio com outros escritores, mas, sobretudo, calma e serenidade na hora de enfrentar o papel desnudo à minha frente. Muito trabalho, pois, aprendi que, na literatura, trabalha-se e não se fica à espera que, do sobrenatural ou de outro qualquer lugar, desça alguma inspiração. A escrita não cai do abstracto, porque retrata as vivências do quotidiano do escritor e dos leitores a quem destina o seu trabalho. A literatura é concreta, por isso requer trabalhadores que a produzam. Este é o meu substrato como escritor.

Veio receber um Galardão  literário do CEMD de Escritor do ano 2019 em Lisboa.Um Galardão que já o ganharam Guilherme de Melo, Ascêncio de Freitas, Carlos Paradona Rufino Roque, Ungulani Ba Ka Khosa, Adelino Timóteo,Sónia Sultuane e Gisela Ramos Rosa.O que significa para si a atribuição deste Galardão Literário?

Em plena cerimónia de entrega do Galardão de Escritor do Ano 2019, pela CEMD, disse que estava feliz pelo prémio, mas sem vaidade nem vangloria, portanto não me sinto realizado como escritor por este facto, porque penso que os prémios que se ganham no percurso literário não significam realização, na expressão final do termo, é apenas um reconhecimento que pretende responsabilizar-nos mais, para continuarmos a produzir peças literárias que respondam às expectativas dos nossos leitores, em suma, da sociedade em que nos inserimos. De toda a maneira, acarinho este reconhecimento que significa uma chave para me abrir algumas portas importantes para a prossecução do meu percurso.

Curioso é o facto de os nomes que mencionou fazerem parte da bibliografia que, já tive o privilégio de visitar, falo de Ascêncio de Freitas, Guilherme de Mello, Ungulani Ba Ka Khosa, Carlos Paradona e Sónia Sultuane, estes três últimos, são meus confrades na AEMO. Lamentavelmente, não tive, ainda qualquer ocasião de conhecer, Gisela Ramos Rosa não ouvira antes falar dela e não conheço a sua obra, mas cuido que deva ser importante para merecer tão aliciante galardão. Sinto-me incentivado a dar o máximo de mim, no sentido de cumprir com eficiência a minha missão de escritor.

Como avalia tudo o que viveu  em Lisboa durante a realização e participação neste evento literário?

Vivi o que julgo ser uma etapa que complementa a minha carreira, por achar que se enquadra na linha do percurso da minha vida como escritor. Vivi em Lisboa o que, regularmente vivo em Moçambique, apenas, com uma acentuada diferença na organização e na maturidade com que se encaram actos importantes quanto aquele. A CEMD, desceu ao meu humilde nível, para me elevar ao patamar dos laureados de uma forma geral. O EEMD fez com que me sentisse renovado e com mais forças para continuar a escrever e a conviver com gente embrenhada na cultura.

Como encara a existência de uma Associação designada Círculo de Escritores Moçambicanos na Diáspora (CEMD) e que cumpre a função no fundo de um Clube Literário, de uma Academia  moçambicana no exterior do país (caso único no panorama dos PALOP e da CPLP) e em que o escritor, o poeta, o artista plástico, o músico e o cineasta moçambicano são o centro?

Uma cereja no topo do bolo! Isso significa que, Moçambique não é só construído pelos cidadãos nacionais residentes, mas, também pelos que, por diferentes razões vivem fora dele, isto é, vivem na Diáspora, mas nunca se quiseram apartar das suas raízes. As associações moçambicanas na Diáspora, mostram a vitalidade do país. A Diáspora é um braço longo do país que faz com que este se estenda pelo resto do mundo para criar laços de amizade e de solidariedade. A Diáspora moçambicana é embaixadora do nosso país, pois, transporta consigo a essência moçambicana, através da cultura, portadora da nossa identidade. A Diáspora  moçambicana não é nenhum órgão rejeitado do nosso corpo, é parte integrante de nós. Esta verdade se pode confirmar nos ciclos eleitorais gerais, em  que se destacam brigadas de recenseamento que correm os países onde vivem moçambicanos e se verifiquem condições para lhes conferir possibilidade de exercerem o seu direito de cidadania. As instituições oficiais moçambicanas reconhecem o papel e os direitos dos nossos concidadãos no exterior. Conheço um caso eloquente para se conferir o que acabei de dizer: o actual presidente do CEMD, sediado em Lisboa – Portugal, Delmar Maia Gonçalves, é membro integrante ou seja, vogal, do actual Secretariado da Associação dos Escritores Moçambicanos, com sede em Maputo. Responde pelo pelouro de assuntos externos. Como se pode ver, contra factos não há argumentos. Julgo, porém, que, no caso vertente, o CEMD ou clube literário da academia moçambicana no exterior do país, não actua, nem pretende suplantar a Diáspora dos outros países da CPLP ou dos PALOP, por incrível que pareça, aceita-a no seu seio, ela aceita a sua comparticipação no movimento cultural em marcha. É uma mais-valia para os esforços que Moçambique tem despendido para se desenvolver e afirmar.

Pensa ser aceitável/compatível ou não a existência deste círculo que se propõe promover e difundir autores moçambicanos sem qualquer tipo de discriminação ou exclusão? Sabia que não existe nenhuma associação congénere de países africanos de língua oficial portuguesa, Timor-Leste, Brasil, Goa ou Macau em Portugal?

Da não existência de congéneres do CEMD, dos países de língua oficial portuguesa, em Portugal, como acabou de exemplificar, não sabia! Pois, sempre pensei pela via do que devia ser a lógica: existirem e desenvolverem actividades como o fazem os Moçambicanos!

Penso que a existência deste círculo, em prol da divulgação de autores Moçambicanos, sem qualquer descriminação ou exclusão é aceitável, tendo em conta que essa atitude responde ao desiderato nacional de incluir todos os Moçambicanos no desenvolvimento da Pátria Amada!

Que género gosta mais de escrever?

Tenho alguma dificuldade de distinguir o género literário que gosto mais de desenvolver. Explico: comecei a  escrever em 1972, abraçando, logo à partida, o género poético, mas, acto contínuo, ensaiei o conto, sem, porém, sair do círculo da poesia. Fui, por assim dizer, fazendo conviver, nas minhas preferências literárias, a poesia e a prosa, até que, passados mais de 15 anos de exercício, aliei, definitivamente os dois géneros na minha escrita. Hoje sou versátil nestas matérias, alternando-as de acordo com a minha disposição emocional, mas…, verdade, verdadeira, gosto mais do género poético, em que me liberto, numa subjectividade que, contudo, combina com a realidade objetiva que conforma as vivências materiais e espirituais da sociedade em que me insiro.

Fale-nos sucintamente da sua experiência ao escrever o belo livro “Meu Mar”.

“Meu Mar” é uma experiência acumulada de cerca de 30 anos de exercício poético. Trata-se de um acúmulo de poesia,  dedicada, exclusivamente a minha mulher, Ana Maria, companheira de 43 anos conjugais, seleccionada de 5 livros de entre 7 escritos entre 1984 e 2015. Quis agrada-la pela passagem de mais uma primavera da sua vida. Jamais pensei que a minha ideia, pudesse merecer os elogios de que tenho vindo a ser alvo, desde que o publiquei. Para mim, presentemente, “Meu  Mar” é o meu libelo romântico, na área da poesia, é uma Ode à minha mulher, minha companheira de todos os momentos, há 43 anos!

Na maioria das histórias criativas de ficção, os bons vencem sempre e os maus regra geral são castigados, mas ambos sabemos que não é necessariamente assim na realidade.

É a vida que embeleza a literatura ou a literatura que embeleza a vida?

Penso que é a literatura que embeleza a vida! Tenta forçar o desforçavel, pois, é claro que, na vida real, longe da ficcionalização literária, as coisas passam-se de maneira diferente, porque no fim da estória, os maus são os que tomam o leme e conduzem o rumo da vida e, quem, desgraçadamente, come o pão amassado pelo diabo são os bons. Isso é tão transparente como a água que brota da fonte! Que o digam os humildes e pobres do mundo! Moral, e, se calhar, religiosamente, deveria ser como a ficção literária pinta os enredos da vida: o inferno para os maus e o céu para os bons! Mas infelizmente, no fim da estória real, os maus acabam esmagando os bons, com a sua prepotência.

Escrita é liberdade.Os criativos precisam de liberdade para criar.Liberdade num sentido mais amplo do termo.Sente-se totalmente livre para criar e escrever?E não estou como deve ter percebido ,a falar apenas de constrangimentos políticos, mas também de todos os outros que enquanto criador pode enfrentar e que necessariamente podem afectar a motivação e o impulso  para a escrita. 

A escrita é mesmo isso! Liberdade! Pois é esse o espaço que o escritor necessita para retratar a vida das comunidades, nos seus mais intrincados aspectos. Um passarinho canta as suas lindas melodias quando esta livre, no arvoredo ou seja, onde quer que esteja, sem os limites de uma gaiola. O canto dos passarinhos dentro de uma gaiola, significam o choro de tristeza, de dor, por não poder usufruir da extensão infinita da natureza! O escritor precisa, sim, de liberdade para criar ou produzir o alimento espiritual das pessoas que olham para ele com alguma esperança!

Quando lanço um livro, tenho sempre, uma como que obrigação, de agradecer à minha mulher, aos meus filhos e às minhas netas, por serem as pessoas mais próximas dos meus actos criativos literários e aos amigos que, compreendendo a minha escolha de vida, relaxam a pressão que a amizade impõe.

Motivos políticos são, na verdade, confrangedores, limitam a expressão literária, quando esta interfere naqueles meandros, de forma reivindicativa. O que exige, do escritor, outros engenhos e outras artes para furar o cerco, para contornar os constrangimentos. O mundo está cheio de exemplos do que estou a dizer e das consequências, tanto da desobediência, quanto do alinhamento. Aliás, o remédio para tudo isto, é a democracia, exercitada no seu sentido pleno.

Na verdade, o criador artístico, de um modo geral, precisa de liberdade: primeiro, para explorar as suas potencialidades como tal, segundo, para ser fiel na explanação do que observa e leal na busca da moralidade para as sociedades. Enfim, a escrita é liberdade!

Fale-nos um pouco de como encara a questão da estética no acto criativo. Reside aí o centro da sua preocupação quando cria? Sabe que há poetas que se designam estetas? Um poeta é poeta ou esteta? Um esteta é poeta ou esteta apenas? Ou podem fundir-se os dois num?

Como poeta Dadaísta Zen que sou e que sempre defendeu um acto criativo que habita na primeira experiência criativa com um automatismo psíquico funcional e presente, sou absolutamente contra a competição e a hierarquização mercantilista da literatura. Acredito muito na filtragem natural das próprias literaturas. Talvez uma visão utópica pessoal da literatura como de resto da própria  vida. Acha compatível uma visão não mercantilista da literatura com a sobrevivência da mesma e dos seus criadores?

Sendo, no fundo, no fundo de que se trata, é um elemento fundamental, nas criações artísticas, de um modo geral, particularmente, na literatura, pois, dá um impulso apreciativo importante à obra criada. O belo é o tição chamativo, e a parte mais sensível para a apreciação da harmonia das formas da obra criada. Mas não se pense que isso só, baste, pois, o conteúdo, a alma, a parte imaterial da obra deve ser percebida, para que ela vingue, seja autêntica. Não se deve embelezar, apenas, o corpo físico ou visível de uma criação artística, sem lhe dar alma para ela viver sem falsidades. O que deve animar a produção artística, é a comunhão da alma ou espírito com o corpo da obra criada.

Como se pode entender, deste arrazoado, quando crio, entrego- me mais à alma da obra, sou apologista do verdadeiro conteúdo  das minhas criações literárias e como a alma não pode deambular, fora do contentor ou das formas que o condicionam, busco dar-lhe brilho externo, depois! Mas se este acto harmónico poder ser simultâneo, melhor ainda. Por esta razão, para mim o poeta e o esteta, devem-se fundir. Daí que não rejeite que o poeta seja simultaneamente esteta, mas não encaixo bem que o simples esteta, no verdadeiro sentido do termo, seja tido como poeta. Ou seja, sou apologista da fusão dos dois conceitos, para que a criação artística esteja completa. A alma deve ser vestida e não nos limitarmos, apenas, no visível!

Você é poeta Dadaísta Zen, como o diz, com todas as implicações que essa escolha acarreta! Eu não me oponho a isso! De resto, sou um analfabeto nessa filosofia e noutras afins! Só posso dizer, para não ficar calado, que os tempos que correm, e que ditam novas regras de ser e de estar no campo artístico, não nos permitem que nos atenhamos em conceitos puritanos, no sentido estanque da arte! Por mais incrível que pareça, o curso do tempo com as transformações que impõe às relações sociais que não se mantêm paradas, exigindo de nós uma evolução paralela, somos forçados a acompanhá-lo nos seus mais variados aspectos. O natural é o núcleo da questão, mas a realidade objectiva que se vive é adversa, é constantemente mutável, obrigando-nos ao alinhamento condicente; corrompe a nossa verticalidade. Não podemos continuar vendados de palas com o mundo a correr ao nosso derredor!

Que mensagem gostaria de deixar aos participantes do XII Encontro de Escritores Moçambicanos na Diáspora (EEMD)? E aos seus leitores?

Adorei participar no XII Encontro de Escritores Moçambicanos na Diáspora, em Lisboa e tocou-me, profundamente o facto de ter conhecido uma plêiade de Escritores e outros artistas: moçambicanos e não só, o que me catapultou para outro prisma analítico da questão: ser moçambicano, com tudo o que isso implica. Faço votos para que o espírito que orienta o CEMD, prevaleça e se vá aperfeiçoando, pois, só assim estará a servir a cultura moçambicana, não importando o lugar onde esteja a se desenvolver, a bem da Nação! Deixo para os participantes do EEMD, uma mensagem de amor e solidariedade!

Aos meus leitores, desejo que o sejam com espírito crítico e não bajulatório, pois, preciso crescer e só eles podem completar o meu empenho, devolvendo-me os seus sinceros pontos de vista. O escritor não cresce sem ouvir a opinião dos seus leitores. Ele está integrado numa comunidade interpretativa, em que os leitores se devam apetrechar de ferramentas analíticas para poderem estudá-lo e com ele discutirem e, até, complementá-lo, naquilo que a teoria literária chama de Estética da Recepção.


Receba a nossa newsletter

Contorne o cinzentismo dominante subscrevendo a Newsletter do Jornal Tornado. Oferecemos-lhe ângulos de visão e análise que não encontrará disponíveis na imprensa mainstream.

 

Receba a nossa newsletter

Contorne o cinzentismo dominante subscrevendo a nossa Newsletter. Oferecemos-lhe ângulos de visão e análise que não encontrará disponíveis na imprensa mainstream.

- Publicidade -

Outros artigos

- Publicidade -

Últimas notícias

Exit Costa

E agora Marcelo?

Governo Sombra?

A Lava Jato e seu epitáfio

Mais lidos

Exit Costa

E agora Marcelo?

Mentores espirituais

Auto-retrato, Pablo Picasso

- Publicidade -