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Quinta-feira, Outubro 10, 2024

A espiritualidade clandestina habita o ensaísta

Alexandre Honrado
Alexandre Honrado
Historiador, Professor Universitário e investigador da área de Ciência das Religiões

Pugnando de imediato neste texto pelo seu a seu dono, apetece citar Manuel Frias Martins desde já e como mote do que se segue. Não é precipitado, já o inevitável exige que o façamos repetidas vezes (aqui; nos locais mais apropriados).

As palavras são, portanto, dele, e fomos buscá-las à Introdução do livro O Cânone Ocidental, de Harold Bloom, que o ensaísta traduziu: “Os livros úteis são úteis exatamente porque confirmam ou “explicam” crenças estabelecidas, não interferindo nas regras do jogo que o seu tempo está a jogar. Os livros importantes são importantes exatamente porque baralham as crenças dominantes ao agir no próprio núcleo constitutivo das regras do jogo das dominações.”

O mesmo apetecia dizer dos seus autores, se capazes de baralhar as crenças dominantes, se aventureiros ao descobrimento de novos núcleos do núcleo da dominação. É o que o escritor faz, capaz de insubordinar ou que é subversão agitadora, que permite acrescentar ao mundo mais-valias de progresso.

Digamos, portanto, que há dois autores em duas subversões: José Saramago, o prémio Nobel; Manuel Frias Martins, cujo atrevimento, somado a outros, foi o de escrever um ensaio – A Espiritualidade Clandestina de José Saramago – que, deste modo, se nos afigura como um livro importante. Mas não só importante: é obrigatoriamente útil e duplo; revela dois homens de categorias irredutíveis, porque a ficção de um sublimou as capacidades reflexivas do outro. Da obra de Saramago nasceu o ensaio que agora nos motiva.

(Que coragem, em certos meios, é dizer Saramago em voz alta: “Deus está inocente, tudo seria igual se não existisse”.)

Sem relação evidente, mas com um nexo sólido, recordo umas palavras de Foucault perdidas no tempo de outras leituras (no Microfísica do Poder?), onde o filósofo, falando de médicos, enumerava toda uma série de problemas que, alegadamente, atravessariam os seus espíritos, aquando das exigências das suas práticas. Eram mais ou menos assim: a terapêutica consiste em suprimir o mal, em reduzi-lo à inexistência.

Mas para que esta terapêutica seja racional, para que ela possa fundar-se verdadeiramente, não será necessário permitir que a doença se desenvolva?

A obra de Saramago tem esse cunho medicinal e médico: lida com as doenças do mundo aqui à margem, a obra (o autor) decompõe-nas até ao patamar da inexistência. Mas permite, com a mestria do talento, que esse a doença se desenvolva. (Que nomes dar à doença? Diz Frias Martins “(…)trágica verdade contida na observação célebre de Walter Benjamin, no seu Teses sobre a Filosofia da História, de que cada documento de civilização é também um documento de barbárie”).

A matriz de Saramago é o homem. Portanto, as suas formas de pensar, de sentir e de agir. Isso compõe o fresco, o mosaico de uma obra intensa de que Frias Martins foi singular intérprete neste ensaio, isolando o “lado espiritual” do escritor.

Quem conheceu ambos, José Saramago e Manuel Frias Martins, reconhecendo o primeiro e aproveitando o último, cedo entende as confluências. Homens de cultura, com sábias determinações, com suavidade e arroubos de vendaval, com humor, essa qualidade dos eleitos, Saramago e Frias Martins tinham de ter um livro, juntos.

Não houve surpresa portanto, quando, no verão passado, se soube a notícia, em anúncio da Associação Portuguesa de Escritores (APE).: “O Grande Prémio de Ensaio Eduardo Prado Coelho foi atribuído, por unanimidade, a Manuel Frias Martins, com a obra A Espiritualidade Clandestina de José Saramago, editada pela Fundação José Saramago. O júri desta edição foi constituído por António Pedro Pita, Helena Vasconcelos e José Cândido Oliveira Martins.

De Saramago pode dizer-se o mesmo que de Manuel Frias Martins: não partem para o literário sem o sensível e ambos não esquecem o homem como centro da interpretação do mundo. Saramago aprendeu desde cedo que a literatura se faz com ideias (os autores caminham belos becos do filosófico), Manuel Frias Martins demarcou-o neste ensaio de valorizações e de estremecimentos: Saramago é o que pensa intensamente e mobiliza pensamentos outros que aparentemente lhe são estranhos – como os que são pertença do espiritual e dos seus cultores – e ficciona como se escrevesse um ensaio de vulto. Manuel Frias Martins responde-lhe, ele que escreve ensaios que rivalizam com a escrita do romance (e A Espiritualidade Clandestina de José Saramago lê-se, todavia, com o mesmo prazer de quem gosta da leitura do romance – porque a escrita de Frias Martins é narradora e narrativa, é dúctil sob a tensão tangencial em que o ato do ensaio se revela até se permitir as ousadias. Até a um último degrau em que “tal como acontece com o escritor José Saramago, é ao Deus da religião que o crítico literário tem insistentemente de se dirigir.”

saramago-frias-martinsSe dissermos aqui esta frase, Frias Martins há de reconhecê-la: ser oprimido pelo peso de músicas de catedrais é, afinal de contas, um modo especial de opressão, só disponível a uma sensibilidade desperta e elevada.

Falemos dele, a propósito: Manuel Frias Martins é Doutorado em Teoria da Literatura pela Universidade de Lisboa onde, até há poucos dias dirigiu o Doutoramento de Cultura e Comunicação (e também o seu programa de Mestrado). Os seus alunos ganharam sempre um amigo. As aulas, uma voz envolvente que se iluminava com o saber – e em especial pela capacidade de o partilhar.

Crítico literário, com inúmeras colaborações em jornais, revistas e programas radiofónicos (a televisão terá perdido um comunicador excecional), tornou-se vice-presidente da Associação Portuguesa de Críticos Literários. Nunca foi de panegíricos, não se lhe conhecem as louvaminhas, e provou sempre que a Crítica não é um mero exercício de estilo ou um lançar à vida um juízo de valor.

Foi um dos fundadores do grupo Quatro Elementos Editores. Transformou muitas vezes as contingências do Autor numa consciência transparente dessa contingência. Esclareceu-nos, sem dúvida. Dos seus livros de ensaios, destacam-se exatamente Sombras e Transparências da Literatura; Em A Espiritualidade Clandestina de Saramago, sabe-se que Saramago “pertence àquele grupo de escritores que parecem ter lido em toda a parte ou vivido em todo o lado, mapeando o humano por sinais identificáveis por todos ao mesmo tempo e decifrados por cada um à sua maneira. Tanto as suas construções ficcionais das atmosferas judaica e cristã como as observações subsidiárias que encontramos dispersas por entrevistas e artigos refletem uma amplitude de referências culturais onde se abriga um extraordinário ecletismo filosófico e religioso ou, dito de outra maneira, um conhecimento amplo do fundo cultural e religioso da humanidade, o qual é não raras vezes encarado como desafio à razão e à imaginação do próprio escritor. Possuidor de um espírito inquieto quando à humana condição e de um coração ávido de justiça, o homem José Saramago é uma espécie de abrigo intelectual de um escritor que mistura criativamente os inúmeros conseguimentos do pensamento humano independentemente da sua proveniência histórica ou geográfica.”

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Cumpre notar aqui que, diversamente do que acontece no pensamento sobre o mito desenvolvido em torno de Saramago – que o circunscreve ao gueto da falta de espiritualidade – Manuel Frias Martins liberta o autor, talvez porque o mundo não seja plano ou como disse Ralph Waldo Emerson, citado por Frias Martins, “Nós só vemos aquilo que estamos preparados para ver”. Ao libertá-lo, todavia, oferece-lhe o louvor da espiritualidade que dele nunca esteve arredado (todas as obras do Prémio Nobel têm esse lado de busca dos significados da vida que, afinal, diferem tanto entre cada um de nós.

O fulgor imaginativo de Saramago é policromático – mesmo se trata da não cor, ou da cegueira. E Frias Martins não só entendeu isso – como entendeu o Saramago homem por detrás de cada linha – como adquiriu o seu humor na análise ( e sim, o seu erotismo, o seu construtivismo, de pedreiro do mundo, o seu discurso vigilante, capaz de entender cada fragmento do vitral icónico da história). Também se valorizou o lado irónico, o distanciamento irónico por que Saramago se olha no contraditório e algo ficcional espelho de Deus (que não o concilia, de modo nenhum, com algumas posturas filosóficas contemporâneas (sublinha Manuel Frias Martins no seu ensaio premiado).

Não foi esquecido também no livro de Frias Martins o Saramago trágico, assim como o Cristo trágico, a espiritualidade como experiência afetiva.

Num mundo como aquele em que vivemos, com o sangue a escorrer dos órgãos de comunicação social e as bandeiras rasgadas das causas a reclamarem a paz perdida num caminho obscuro com pegadas de refugiados em pânico, reclamar a espiritualidade clandestina parece uma prioridade.

Manuel Frias Martins foi capaz de fazê-lo a José Saramago – e a uma obra que tem este incómodo: é humanista. Sim, tem o homem como centro, como o cristianismo, o marxismo de certos tempos, ou a forma erasmiana de sentir a vida (Erasmo, esse que disse “Nenhum animal é mais calamitoso do que o homem, pela simples razão de que todos se contentam com os limites da sua natureza, ao passo que apenas o homem se obstina em ultrapassar os limites da sua”).

Os poemas curam; sorriem; são lágrimas redentoras. Tal como algumas prosas – A Espiritualidade Clandestina de José Saramago é este bálsamo.

Sabendo das paixões mais fundas de Manuel Frias Martins, nenhum texto estaria completo, falando dele, sem louvar uma das facetas da sua espiritualidade. Por isso, Shakespeare vem a esta conclusão. Citemos o mestre dos mestres: “Assim que se olharam, amaram-se; assim que se amaram, suspiraram; assim que suspiraram, perguntaram-se um ao outro o motivo; assim que descobriram o motivo, procuraram o remédio.” (Como gostais, Ato V – Cena II -: Rosalind). Ou, como se permitiu no título esta é a espiritualidade clandestina que habita o ensaísta. Também podíamos dizer: Frias Martins e Saramago: relações fortes.

Este texto respeita as regras do AO90.

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