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Quinta-feira, Abril 25, 2024

Estou “a milhas”

Alexandre Honrado
Alexandre Honrado
Historiador, Professor Universitário e investigador da área de Ciência das Religiões

DO AVESSO

Quem me lê hoje pode, simplesmente, considerar-me “a milhas”. Quero eu dizer, a uma distância confortável para poder escrever coisas muito diferentes desta prosa, intervalando com chá e biscoitos e um bocado generoso de sol na pele.Os textos destinados aos locais onde colaboro de modo sistemático, saem com vagar, nos intervalos de uma outra festa cerebral que entendo mais gratificante: o que escrevo por cima, por baixo e à margem do que escrevo para o mundo rápido, perecível e ingrato da imprensa, essa mancha escura que nem uma boa cauterização melhora.

Quando digo que escrevo por cima, para lá do que escrevo, quero dizer que o faço com intuito académico.

Para as Academias não se escreve, intercala-se, encaixa-se, compara-se, verga-se, submete-se a contraditórios, exercita-se, deita-se na lamela como que se esparrama na toalha turca à beira-mar. Sobretudo, interroga-se. Qualquer texto académico deve ser, com sinceridade, um enorme ponto de interrogação, por mais resumos amarrados a palavras-chave que o antecedam.

Tenta-se em suma, nesse tipo de textos, agradar a outros que também não escrevem, mas crendo que o fazem compõem textos falsamente construídos sobre o cavalete da modéstia científica, que cai bem, mas não é grande coisa, e que só melhora se trouxer consigo qualquer coisa de dúvida, para despertar mais dúvidas e permitir o progresso, que por vezes coincide com o seguir em frente.

Por isso, estou a dizer-vos que, em vez de escrever isto, tenho andado a olhar para o mundo e para o que ele pode deixar ler, dos lançamentos dos mísseis aos disparates de aproveitamento político – “dê cá um fenómeno natural que eu manipulo-o até alguém votar em mim” -, às diatribes desportivas, às patetices próprias da estação, às miúdas que estão em grande forma e aparecem com a dita nas revistas e nos jornais que mais descascam.

Daqui, vejo o mundo ocidental com apreensão, até suspirar e convencer-me de uma única verdade possível: o mundo tal como existe não é verdadeiro.

Não pensem que estou em momento de génio, não. Quem o disse foi Ernst Bloch.

Os factos são apenas momentos deificados de um processo. E se não conseguimos prová-los, tanto pior para os factos, diria o velho Hegel – ou certos juízes da atualidade.

A realidade, por mais que se esforce, nunca chegará aos pés de uma tempestade poética (uma tempestade radical, uma tempestade levada até às últimas consequências).

Confesso que andei nos últimos dias a ouvir Michael Löwy, que é brasileiro mas tem este nome arrevesado porque, apesar de ter nascido em São Paulo, é filho de judeus de Viena ali radicados. E retive dele alguns ecos. Perdoam-me?

Para matar saudades desta distância à pátria – quando um chão se deixa pisar até fazer sentido, isso é uma pátria – leio livros sobre nós, os pobres portugueses (herdeiros de muçulmanos, romanos, borgonheses, galegos, sefarditas, e de tantos outros que nos correm nas veias. Da terra, vem a notícia de duas entrevistas em jornais diários que não devo perder – e não perco! Pedro Cabrita Reis, um dos maiores artistas da sua geração, a refletir os seus encantamentos… e noutro diário, Eduardo Lourenço, que também tanto estimo, que aos 94 anos (!) nos pede para sairmos da frente dos ecrãs – de cinema, tv, computador, telemóvel, os outros todos – porque corremos o perigo de ficar diante deles uma vida inteira sem entrarmos na vida. O mesmo Eduardo Lourenço que disse há anos, agora repete, falando do abismo que somos, que a História se escreve como ficção.

Se a verdade fosse, seria uma interpretação de Pedro Cabrita Reis e, sem mais, a enorme tempestade poética que temos a honra de apreciar: Eduardo Lourenço, dois portos de abrigo de um país sem mar em certos momentos.

Por opção do autor, este artigo respeita o AO90

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