Ver, por exemplo, a FN de Marine Le Pen a reclamar para si o legado histórico e político dos socialistas franceses e a identificar-se publicamente com as figuras míticas da esquerda democrática francesa e da Resistência anti-nazi é algo que surpreende quase toda a gente (embora observadores mais atentos e menos angélicos já o esperassem…) e provoca até indignações variadas.
Depois de Marine Le Pen ter citado o histórico líder socialista Jean Jaurès (“À celui qui n’a plus rien, la patrie est son seul bien”) é agora a vez do grupo FN de Sciences Po Paris citar o grande dirigente socialista da segunda do século XX, Pierre Mendès-France, e ainda o socialista Léon Blum, o homem do Front populaire, e Jean Moulin, o mítico dirigente da Resistência Francesa (cujo nome e cujos ícones – o chapéu e a “écharpe” vermelha – este grupo FN de Sciences Po reivindica para si…).
E, no entanto, há tempo que sinais vários anunciavam esta orientação e esta dinâmica política da FN. Por exemplo, se o velho Le Pen sempre defendeu “à outrance” uma política económica (neo)liberal, Marine impôs, mal chegou a “patroa”, uma defesa acérrima do “estado social” que lhe valeu dos “históricos” do partido acusações de “marxizante”… Tal como impôs (mesmo se o fez de forma oportunística) a defesa da laicidade e a rejeição total do anti-semitismo.
Realmente muito perigoso e aparentemente muito confuso, este nosso mundo é fértil em grossas surpresas… Não ser surpreendido e evitar perigos e outras armadilhas tornou-se um “desporto radical” extremamente exigente. Um observador não só tem de estar atento a tudo e, sobretudo, aos “sinais fracos” (weak signals), como precisa de elaborar e possuir uma grelha de leitura, sofisticada e de malha fina, capaz de integrar díspares elementos de informação e revelar o seu significado e o seu sentido. Só assim escapará a ser surpreendido e evitará as indignações estéreis e os erros fatais.
A citação de Pierre Mendès-France (um homem de família judia portuguesa, que adorava Portugal e tinha numa estalagem do Guincho o seu retiro secreto) é de Janeiro de 1957 e marcava a oposição do visionário estadista francês ao “Tratado de Roma”:
“A abdicação de uma democracia pode assumir duas formas: o recurso a uma ditadura interna pela entrega de todos os poderes a um homem providencial ou a delegação desses poderes a uma autoridade externa que, em nome da técnica, exercerá na realidade o poder político, pois em nome de uma sã economia conseguirá facilmente ditar uma política monetária, orçamental e social.”
Bruxo, este nosso Pierre Mendès-France… Cinquenta anos depois, aí está a confirmação da sua profecia e aí está também todo o tipo de aproveitamento oportunístico da madrugadora lucidez do grande homem de Estado francês.