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Quinta-feira, Abril 25, 2024

Há razão para as universidades privadas? – II

João Vasconcelos Costa
João Vasconcelos Costa
Investigador e professor universitário (Virologia Molecular), depois dirigente de um instituto de investigação, ensino e cooperação, hoje reformado.

Escrevi ontem que as privadas “têm baixa qualidade e fogem aos requisitos legais mínimos”.

A noção de qualidade é muito subjectiva, mas há padrões mínimos consensuais. Além disto, pode ser aferida por “benchmarking”, isto é, comparação com casos indiscutíveis de excelência; por “rankings” (apesar de muitas limitações e viciações propositadas ou não do método); e por avaliação/creditação por especialistas.

A primeira constatação é a de que as universidades privadas são meras universidades de ensino – como até há nos EUA mas com outra lógica – ficando abaixo do padrão da universidade de investigação, de criação de conhecimento. Padrão este porque a universidade, como vimos ontem, é uma formadora de mentes criativas, não apenas uma fábrica de técnicos ou especialistas de nível superior. Embora seja um conceito ambíguo, estamos em tempos de “capital humano”.

Praticamente não há investigação nas privadas, ou é de baixa nível, com publicações caseiras ou em revistas de fraco impacto. Das 307 unidades de investigação registadas e avaliadas pela Fundação da Ciência e Tecnologia, só 16 pertencem a universidades privadas, todas em direito ou ciências humanas e sociais e com uma mediana de classificação de bom, enquanto que a grande maioria das unidades públicas está classificada como excelente ou muito bom.

A debilidade da investigação tem obviamente reflexos no grau de ensino que dela mais depende, o doutoramento. As privadas são principalmente universidades de licenciatura e mestrado, abaixo da norma hoje considerada exigível de universidades de investigação. Para 179 cursos de licenciatura das universidades privadas há 32 programas aprovados de doutoramento, ou seja uma razão média doutoramentos/licenciaturas de 0,18. Essa razão é de 1,44 numa universidade pública de dimensão média e do litoral (Aveiro) ou de 1,00 numa universidade pequena e interior (Beira Interior).

Outra forma de se aferir a qualidade, mas pelo mínimo, é a do cumprimento dos requisitos legais, coisa que as privadas fazem em regra por baixo e mesmo com subterfúgios. A lei estabelece que uma universidade, tanto pública como privada, deve ter pelo menos:

  • seis ciclos de estudos (cursos) de licenciatura, dois dos quais técnico-laboratoriais;
  • seis ciclos de estudos de mestrado;
  • um ciclo de estudos de doutoramento em pelo menos três áreas diferentes;
  • um corpo docente com no mínimo, um doutor por cada 30 estudantes, metade dos quais, pelo menos em regime de tempo inteiro.

Só isto, se exigido com rigor, faria encerrar praticamente todas as privadas. Só não se faz porque não se quer.

Vejamos. O primeiro critério, das licenciaturas, o objectivo principal das privadas, é preenchido largamente, excepto no que respeita à exigência de dois cursos técnico-laboratoriais. A não ser que se inclua aqui a informática, ficam ilegais a Lusíada, a Autónoma, a Europeia e a Portucalense. Quanto aos doutoramentos no mínimo de três áreas, ficam ilegais a Atlântica (nenhum doutoramento), a Europeia (só duas áreas) e a Portucalense, com doutoramento só em Direito. A Autónoma e a Lusófona do Porto passam à tangente, com doutoramentos em três áreas.

Mais séria, por fraudulenta, é a situação em relação ao requisito de corpo docente. Ao que sei, em geral, e conhecendo bem um caso concreto, a situação declarada de docentes doutorados e a tempo inteiro não corresponde à verdade. O corpo docente é constituído maioritariamente por não doutorados, contratados à hora como convidados e boa parte dos doutorados trabalham também em outras instituições, apesar de apresentados como a tempo inteiro numa delas. Dividem-se custos e partilham-se as vantagens. É urgente uma base de dados oficial sobre a qualificação, regime laboral e horário de todos os docentes do sector privado do ensino superior. Irá haver muitos estragos.

Mas não não há uma agência de avaliação e garantia de qualidade? Há, a chamada A3ES, tida por muito rigorosos, mas que, a meu ver e perante casos flagrantes que conheço, tem sido condescendente com as privadas, principalmente em relação a doutoramentos, dando sempre como certas as declarações que recebe. Tenho tentado entender as razões para isso, mas sem conseguir.

A qualidade seria melhor conseguida se a lógica académica se impusesse à empresarial, nomeadamente pela autonomia pedagógica e científica da universidade em relação à entidade proprietária, ao negócio, tal como s passa na universidade pública. A lei assim o estipula mas, na prática, não é o que se passa. Conheci muito bem uma reitoria de universidade privada e tenho razões para pensar que é a situação geral. O reitor, nomeado pela administração, e os órgãos colectivos académicos só têm competências formais e a decisão real cabe é ao administrador ou representante da entidade instituidora. Por vezes até são a mesma pessoa. Mesmo o ato mais decisivo para a garantia de qualidade, que é a contratação de professores, não obedece geralmente à lei. Ela exige a decisão de um órgão científico mas, na prática, como entidade contratante, quem decide é a administração, muitas vezes com critérios que nada têm de académicos ou científicos.

Depois, escrevi que as privadas “não respeitam os padrões de enquadramento profissional de professores e investigadores”. Isto também se liga à qualidade, porque o trabalho intelectual e criativo de alta exigência de um professor-investigador universitário requer condições de tranquilidade, segurança e disponibilidade incompatíveis com a situação nas nossas universidades privadas. A lei prevê o paralelismo com o estatuto de carreira da universidade pública mas o que se passa de facto é a precariedade, a falta de carreiras ou a sua arbitrariedade, a opacidade das progressões, os favoritismos e nepotismos, os jogos de influências políticas ou de “irmandades”.

Finalmente, um facto decisivo: já há excesso de vagas no ensino superior público e as privadas deixaram assim de ter uma utilidade supletiva. Defendem-se com uma revisão constitucional que, em relação à liberdade de ensinar, removeu a cláusula limitativa de o ensino privado ser supletivo. A liberdade parece ter ficado absoluta mas nem isso é verdade em relação ao ensino público, sujeito a regras exigentes de garantia de qualidade. É o que tem de ser aplicado às privadas. Não é extinguir por simplesmente serem privadas, é por não terem qualidade, em geral.

Assim, não faz sentido a existência das universidades privadas.

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