No acumulado de 12 meses, a inflação para a classe de renda muito baixa (4,3%) foi mais que o dobro da registrada para a parcela mais rica (1,8%).
O processo de inflação legitima o estado da desigualdade na distribuição de renda, afirma o economista o Paulo Kliass. Kliass comentou as divulgações sucessivas de índices inflacionários que mostram que a parcela mais pobre da população é a mais afetada pela alta de preços.
Dados divulgados nesta quarta-feira (14) pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) mostraram que o fenômeno continuou em setembro. Enquanto a variação de preços registrada para a população mais pobre (rendimento domiciliar inferior a R$ 1.650) ficou em 0,98% no mês passado, enquanto na parcela de maior poder aquisitivo (renda a partir de R$ 16.509,66) foi de 0,29%. Os alimentos e bebidas responderam por quase 75% da taxa de inflação dos mais pobres.
No acumulado em 12 meses, de outubro de 2019 a setembro de 2020, a inflação cresceu em todas as faixas da população, mas foi maior (4,3%) para a classe de renda muito baixa e menor para a parcela mais rica (1,8%).
Paulo Kliass explica que a percepção da inflação dentro de cada grupo depende da cesta de consumo, ou seja, do conjunto de bens e serviços adquiridos mensalmente. Por ser menor, a renda dos mais pobres vai quase toda para a satisfação de necessidades básicas, como alimentação e moradia, itens que registraram alta de preços nos últimos meses. Por outro lado, a cesta das famílias de maior renda é mais diversificada e, por isso, há maior chance de alívio do processo inflacionário.
A população de alta renda tem outros tipos de bens cujos preços cresceram menos, proporcionalmente ao que está na cesta de consumo da população de renda muito baixa. A inflação acentua esse processo . A população de alta renda pode continuar consumindo, e o que ela está consumindo está crescendo menos que para a população de baixa renda”.
Um exemplo é que, durante a pandemia, diminuíram os preços de mensalidades de cursos privados. Como as escolas estavam dando aulas a distância, algumas concederam descontos, que acabaram se refletindo nos índices inflacionários. O movimento beneficiou famílias com uma condição financeira melhor, que podem pagar por uma escola ou faculdade particular.
Quem tem uma renda um pouco melhor também tem mais margem de manobra. É possível deixar de ir ao salão de beleza, adiar a compra de uma roupa ou um calçado, por exemplo. No caso dos mais pobres, no entanto, os gastos são muito básicos e por isso mesmo difíceis de substituir. Como deixar de se alimentar ou de pagar a contar de luz? É o que muitos se vêm obrigados a fazer.
Além dos altos preços, o que você faz se você tem uma renda maior e os preços sobem? Você substitui o consumo. No caso dos mais pobres, como é que você resolve isso? Diminuindo a quantidade. Quem consegue substituir o arroz pelo macarrão, substitui. Quem não consegue, corta. Come menos”.
O economista considera ainda o governo omisso no que diz respeito à adoção de políticas que poderiam melhorar a situação. Um exemplo, diz, é a desmobilização da política de estoques reguladores de alimentos, que vêm sendo desidratados desde 2016. Antigamente, quando havia um desequilíbrio de mercado, o governo federal comprava ou vendia alimentos conforme o cenário. Diante das incertezas da pandemia, muitos países priorizaram suas populações e reforçaram estoques de alimentos básicos (este é um dos motivos da alta demanda externa), mas não o Brasil.
Após zerar o imposto de importação do arroz na tentativa de conter os preços, medida que até o momento não surtiu efeito, o governo não quer mais intervir e defende que os preços vão se normalizar naturalmente. A ministra da Agricultura, Teresa Cristina, diz que é preciso aguardar a próxima safra do arroz, em 2021. Mas o arroz não é o único alimento cujo preço está subindo e o real segue extremamente desvalorizado frente ao dólar. Ou seja, o cenário tende a continuar favorável às exportações, que os produtores têm priorizado em detrimento do mercado interno.
“Para eles , tudo se resolve pela livre ação das forças de mercado. Oferta e demanda vão se equilibrar. Enquanto isso, a população de baixa renda fica fragilizada”, comenta Paulo Kliass.
por Mariana Branco | Texto em português do Brasil
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