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João de Sousa

Sexta-feira, Abril 26, 2024

Leila Shahid: “Há uma profunda cobardia política na UE”

Leila Shahid

Leila Shahid abandonou no final de 2014 o cargo de embaixadora da União Europeia (UE) que assumiu durante uma década. Militante da causa palestiniana desde a primeira hora, foi uma incansável defensora do projecto de um Estado palestiniano. Decepcionada com a diplomacia, denuncia a cobardia dos políticos europeus, que acusa de terem traído o projecto europeu e terem esvaziado a visão política em nome do mercantilismo. Não poupa críticas também aos regimes árabes parceiros dos estados Unidos e da UE e põe todas as esperanças na intervenção da sociedade civil. Falámos com ela por ocasião do Festival do Filme e Fórum dos Direitos Humanos (FIFDH) em Genebra.

 

Portugal é um dos países que não reconheceu ainda oficialmente o Estado da Palestina. A explicação dada é que esperamos que o façam a França, a Espanha, a Irlanda…

Há muitos países europeus que não reconheceram oficialmente o Estado da Palestina, a Suíça é um deles. Estão à espera que os Estados Unidos lhes dêem luz verde.

 

Qual é a situação actual da Palestina, depois da operação “Limite Protector”?

A situação é talvez uma das mais graves dos últimos 66 anos. Assinalámos frequentemente o agravamento da situação, com a primeira Intifada, a segunda Intifada, a guerra no Líbano, os massacres de Sabra e Chatila, mas desta vez as coisas atingiram um nível muito mau. Não apenas porque depois do acordo de Oslo houve 25 anos de negociações sem resultados. As coisas hoje estão piores que antes das negociações, pois agora o território está fragmentado e existe uma ruptura total entre as cidades e as aldeias, entre Gaza e a Cisjordânia, e Jerusalém Oriental, sem possibilidade de circulação e contacto entre as famílias. As coisas pioraram igualmente na região: há uma decomposição do Estado iraquiano, do Estado sírio, do Estado líbio e do Estado iemenita, uma decomposição real, pois a política americana e de certos países árabes tem sido irresponsável e com as consequências dessa decomposição do Estado, da guerra e da violência, há um movimento de emigração muito forte.

Grupos armados terroristas que atravessam as fronteiras, porque o Estado não existe, como na Líbia. Acabámos de saber que um grupo passou da Líbia para a Tunísia, houve um incidente e 26 pessoas foram mortas. Os grupúsculos que resultaram da decomposição do Estado iraquiano depois das duas guerras americanas no Iraque, produziram Daesh, que passou do Iraque à Síria e agora não sabemos de vão penetrar no Líbano a partir da Síria e do Líbano à Palestina. A consequência é este movimento de migração poderoso, mais de um milhão de refugiados de guerra que se metem em barcos, desesperados, e que aterrorizam os europeus, porque são originários de outra cultura. Os europeus deixaram de falar de todas as questões que os ocupavam antes, como a Crimeia, a Ucrânia, a crise económica na Grécia, e já não falam senão dos migrantes e refugiados.

Já ninguém se ocupa de procurar soluções para um dos conflitos mais longos e que não pode esperar. A ocupação da Palestina dura quase meio século.

 

A Palestina deixou de ter impacto sobre a situação internacional?

Infelizmente, continua a alimentar outros conflitos. O magnífico documentário de Deeyah Khan sobre os predicadores jihadistas mostra bem que as injustiças sofridas pelos palestinianos são uma das razões evocadas quando explicam porque decidiram fazer a guerra. Muitos deles dizem que foi a cólera e a raiva que sentiam face à impotência dos muçulmanos da Palestina, da Bósnia, etc. O conflito já dura 49 anos.

 

Com os milhares de refugiados que vivem uma vida inteira sem um passaporte e à margem das sociedades que os acolheram.

São apátridas, sem autorização de trabalho, sem possibilidade de viajar, mesmo aqueles que estudaram e têm uma formação, pois o estatuto de refugiado não dá automaticamente direito ao trabalho, é o Estado que decide. O Estado libanês, por exemplo, tem medo, porque há 400 mil refugiados palestinianos num país com 3 milhões de habitantes, ou seja, 12% da população do Líbano são palestinianos.

Na Síria são 350 mil, na Jordânia 2 milhões, nos países do Golfo 500 mil, 200 mil no Egipto, há também palestinianos no Canadá, no Chile, nos EUA e noutros países. Este conflito dura quase meio século e tem um custo pesadíssimo para a sociedade palestiniana. Aplica-se o direito em todo o mundo, a comunidade internacional reagiu quando o Kuwait foi ocupado com uma coligação militar e em três semanas Saddam foi afastado, houve a Bósnia e o Kosovo, a NATO, os europeus e os americanos criaram novos Estados e novas fronteiras, enquanto a Palestina continua ignorada.

 

Que podemos esperar da Casa Branca, se Hillary Clinton ganhar a presidenciais dos Estados Unidos, depois de a candidata favorita dos Democratas ter dito que o seu primeiro convidado oficial a Washington será Netanyahu e ter atacado várias vezes o movimento BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções)?

Bill Clinton foi talvez o político americano, a par do antigo secretário de Estado dos EUA, James Baker, que mais sinceramente se esforçou, durante os seus dois mandatos, por fazer avançar o diálogo israelo-palestiniano. Porém, quando ele era presidente e estava muito envolvido nas negociações de Camp David, Hillary Clinton tentou sempre fazê-lo recuar para posições pró-Israel. Não esqueçamos que enquanto senadora de Nova Iorque o seu eleitorado é muito dominado pelos judeus americanos de Nova Iorque. Ela está consciente que nos Estados Unidos o lobby pró-Israel (não só composto de judeus, mas também de protestantes) é muito mais forte que a voz árabe, pois os árabes nem sequer têm um lobby. É natural portanto que ela queira fortalecer as relações israelo-americanas. Aqui nenhuma opção é boa, pois se Trump ganhar, será ainda pior.

 

Leila Shahid

 

Está a dizer que os Estados Unidos são reféns da política de Israel?

E são. O AIPAC (American Israel Public Affairs Committee, “Comité para os Assuntos Públicos Americano-israelitas”) financia 80% dos candidatos nas eleições para o parlamento e o senado nos Estados Unidos. Um país onde qualquer lobby pode comprar os candidatos das eleições para o parlamento e o senado – ou seja, formar o governo, pois o governo é formado pela maioria dos eleitos e a maioria é abertamente financiada por lobbies, não se pode considerar uma democracia. Não é unicamente o lobby pró-Israel, é também o lobby das armas, a indústria do tabaco, dos porto-riquenhos, dos chineses, dos japoneses, etc. Isto é contra o princípio da democracia.

 

E a Europa ?

Estou profundamente decepcionada com a Europa. Fui dez anos embaixadora junto da União Europeia. Mahmud Abbas nomeou-me para Washington. Nos Estados Unidos estava porém no poder George W. Bush. Estávamos em fins de 2004, ele tinha acabado de fazer a guerra no Iraque e eu achava que ele devia ser levado a tribunal por crimes de guerra. Ele destruiu o Iraque a pretexto de ter encontrado armas de destruição massiva. Disse depois que se tinha enganado, mas entretanto já destruíra o país. Por isso disse ao meu presidente “Acho que o presidente americano deve ser levado ao tribunal penal internacional e não vou a um país para atacar o presidente”. Abbas respondeu-me “Pensava estarmos a fazer-te uma grande honra ao te enviar para uma potência internacional”, mas eu disse-lhe que não seria uma decisão inteligente, pois eu poderia acabar por lhe criar problemas. Ele propôs que eu escolhesse e escolhi então Bruxelas.

 

Porquê Bruxelas?

Porque sou daqueles que pensa que o projecto da União Europeia é extraordinário, no plano histórico. Não há hoje Estados-nações que fazem política, nem na Ásia, nem em África, nem na América Latina, nem na Europa, e é evidente que se tivesse existido um projecto europeu sólido – o que infelizmente não aconteceu – a União Europeia poderia garantir a todos os nossos países do Sul, incluindo Portugal, a coexistência num espaço de segurança em redor do Mediterrâneo, um espaço de desenvolvimento cultural, de defesa do meio-ambiente, de trocas culturais entre os jovens. O Mediterrâneo não é uma invenção, é uma realidade.

Eu sou mediterrânea – sinto-me inteiramente em casa em Marrocos, em Portugal, na Sicília, na Itália, na Palestina como no Líbano. E essa realidade foi descuidada, não foi desenvolvida, não foi respeitada.

 

Porque razões esse projecto não foi cumprido?

Eu acreditava muito nesse projecto europeu, mas o primeiro erro dos europeus foi meter a charrua à frente dos bois: puseram-se de acordo sobre a moeda, sobre a circulação nas fronteiras do espaço Shengen, regulamentaram o tamanho dos peixes e o número de contentores que passam a fronteira, e deixaram de lado o acordo sobre uma união política, não quiseram fazer uma federação de Estados. Agora a Grã-Bretanha ameaça sair, fazemos concessões, os alfaiates em Bruxelas cortam o fato à medida da encomenda, abrimos o precedente e outros países começam a dizer que também querem um fato à medida. A União Europeia não soube compreender o perigo de não colocar o projecto político à frente dos objectivos económicos e comerciais.

 

Quais são as implicações para o Médio Oriente?

Precisamente. Como a UE deu prioridade ao aspecto económico, Israel tem relações económicas privilegiadas com a UE no campo comercial, económico, da segurança. Isto não acontece porque Israel tem capacidade tecnológica mas porque Israel é uma sucursal dos Estados Unidos, a economia israelita é sustentada pelo dólar, por isso Israel é mais poderoso que os 22 países árabes juntos. Que a comunidade europeia se deixe de nos tapar os olhos com fumo e de nos dizer que é contra os produtos dos colonatos sem aprovar uma única sanção para impedir a venda dos produtos dos colonatos no mercado europeu. Os americanos consideram Israel o 51º estado americano, mas todo o comércio de Israel é com a UE. O único comissário que não foi cobarde, foi Claude Cheysson. Em 1984 e em 1986 Claude Cheysson não só condenou a política de Israel, mas ameaçou Israel. Depois da segunda Intifada, em 1987, Israel encerrou as quatro universidades que existiam na altura e Claude Cheysson suspendeu de imediato os acordos de cooperação educativa e cultural. No dia seguinte, Israel reabriu as universidades. Em 1986, antes da Intifada, os europeus começaram a importar os produtos dos agricultores da Cisjordânia e do Vale do Jordão e de Gaza – laranjas, limões, curgetes, beringelas, toranjas, morangos, kiwis. No início, Israel exigiu que fosse a empresa israelita Agrexco a comprar estes produtos e a vendê-los à UE. Os produtores começaram a queixar-se porque ganhavam menos de 1%, a companhia israelita pagava-lhes muito pouco e ficava com a margem de ganho.

Nós não podemos negociar um preço melhor, porque não nos compram directamente a nós? Foi assim que começaram a comprar directamente aos produtores, sem passar sequer pela Autoridade Palestiniana. Israel opôs-se e Cheysson respondeu-lhes que enquanto Israel não aceitasse a compra directa ao produtor, a UE suspenderia a importação de produtos fabricados em Israel. Bastaram 24 horas e deixaram de exigir que os produtos palestinianos fossem comprados por intermédio da Agrexco e autorizaram que os aviões e os barcos nos portos israelitas exportassem os produtos vindos directamente dos produtores. Isto prova que há formas de obter as coisas, há sanções, é possível defender posições, há pressões para exigir que Israel respeite os direitos dos palestinianos, mas é necessário que haja um comissário europeu pronto a fazê-lo.

 

Porque razão então isso não é feito?

Porque são cobardes. Quando Claude Cheysson foi comissário europeu para a política mediterrânea tinha já atrás dele uma carreira política, esteve na resistência francesa, foi ministro dos Negócios Estrangeiros da França entre 1981 e 1984, trabalhou para as Nações Unidas. Quando assumiu o cargo de comissário europeu não andava à procura de realizar interesses pessoais na política. Estava convencido do projecto mediterrâneo e de que não pode haver paz no Mediterrâneo se não for solucionado o conflito israelo-palestiniano. Foi ele aliás que Mitterrand enviou para negociar a saída de Arafat de Beirute em 1982 e 1983.

Outro homem corajoso foi o comissário para Relações Externas da UE, Chris Patten, que foi o último governador de Hong Kong. Hoje não temos comissários interessantes, nem sequer são capazes de avançar hoje com uma posição única sobre a migração, apesar dos milhares de pessoas em desespero que todos os dias batem às portas da UE. Há uma profunda cobardia política. A única preocupação de todos estes políticos hoje é serem reeleitos. As legislações defendidas hoje pelo governo francês, pelos senhores Valls e Hollande, têm como objectivo apenas retirar a Marine Le Pen votos que iriam para a Frente Nacional e não aumentar a segurança do povo francês. Preocupam-se apenas com a reeleição. Quem é que no seu perfeito juízo pode pensar que a ameaça de retirar a nacionalidade a cidadãos que tenham uma segunda origem no Norte de África pode realmente ser uma solução contra o terrorismo? Se alguém está envolvido com o terrorismo, está-se nas tintas, de qualquer modo quer é fazer-se explodir. Só serve a dizer aos eleitores que o governo está a combater o terrorismo.

 

O cenário é assim tão mau? Só temos cobardes nos cargos políticos?

Aqueles que não são cobardes, são tecnocratas, os especialistas do comércio, que olham em termos de balança comercial, quanto compras e quanto vendes, representam a visão comercial, economicista, puramente técnica, para eles a UE é unicamente um mercado comum de 450 milhões de consumidores. Para este mercado que importa e exporta, nós o povos do Sul são terreno de “dumping”, de escoamento de excedentes a preços que eliminam os fabricantes locais. Interessa-lhes que os povos do Sul não produzam nada, para que lhes compremos tudo.

A UE não tem uma visão política, não existe uma visão histórica. Se a UE assenta apenas em acordos de compra e venda de mercadorias, vai desmoronar, como estamos a ver.

 

Os cidadãos europeus foram ludibriados?

Os cidadãos europeus estão decepcionados. Eu ia muito não apenas ao Conselho Europeu, mas igualmente ao Parlamento Europeu e à Comissão. Existe um grande problema no parlamento, pois os deputados reconhecem que os seus eleitores já não acreditam no projecto europeu. E porquê? Porque a tecnocracia de Bruxelas está alienada dos cidadãos. Os cidadãos em Lisboa, Madrid ou Atenas estão afastados das decisões que são tomadas em Bruxelas e estão fartos. Existe um distanciamento, uma desafeição total. Israel faz parte desta visão economicista, tecnocrática e comercial e é por isso que um parceiro como Israel, que compra muito e vende muito, que pode importar e exportar, lhes é muito mais próximo que o Sudão, Marrocos, a Palestina ou o Líbano.

 

Quais são as alternativas?

A política não suporta o vazio. Consagrámos 23 anos, desde 1993, à negociação, suspendemos a acção militar, aceitámos sentar-nos à mesa com Israel, participámos nas conferências internacionais, aceitámos participar no projecto mediterrâneo como se Israel fosse um Estado normal e não um Estado que viola os direitos do povo palestiniano, e não tirámos de tudo isto nenhuma vantagem. Existe actualmente uma profunda decepção, é por isso que já ninguém quer falar com os israelitas, nem sequer os cidadãos, porque acreditaram que Oslo iria trazer algum resultado e não só não nos deu nada, estamos ainda pior. As pessoas estão realmente em cólera. Agora toda a gente reconhece que não há nenhumas negociações, até Abbas, Kerry, a UE. Do lado de Netanyahu não existe sequer o desejo de negociar. Existe o perigo de que esse vazio seja preenchido pelo terrorismo.

 

O presidente de Israel, Reuven Rivlin, disse em Outubro de 2014 que Israel é uma nação doente que perdeu o sentido do diálogo. Acha que as coisas vão piorar?

Israel é um Estado jovem, com apenas 66 anos, e uma grande parte desse povo são sobreviventes de um genocídio e os seus descendentes. Um genocídio deixa marcas muitíssimo profundas durante centenas de anos, não é possível esquecer que se foi perseguido, morto com gás como um animal e metido em fornos crematórios, desprovido de tudo. Tudo isto passou-se há muito pouco tempo, meio século é muito pouco tempo. Estou convencida de que o medo é sincero. As pessoas que viveram o medo das rusgas da Gestapo que vinha procurar famílias e crianças, não podem esquecer nunca essa experiência, seriam necessárias dez gerações para esquecer. É por isso que quando o Estado lhes diz “Estes muçulmanos em redor querem aniquilar-vos, os palestinianos são inimigos”, é fácil jogar com esse medo. O governo israelita manipula muito o medo sincero dos cidadãos. Avraham Burg, que foi membro do Knesset, fala deste problema no livro “Defeating Hitler”. E o historiador israelita Tom Segev escreveu também que os factos históricos foram manipulados para construir uma “história oficial” da criação do Estado de Israel assente em fundamentos ideológicos. Com base em arquivos históricos alemães, Segev revelou, horrorizado, no livro “The Seventh Million: The Israelis and the Holocaust” que Ben-Gurion negociou com os nazis alemães para recuperar os sobreviventes que chamava “bom material”, não todos, não aqueles que estavam demasiado doentes, demasiado fracos, obcecado em construir uma nação forte de pioneiros capazes de combater.

 

Vê alternativas na Europa a essa letargia ou cobardia que denuncia nos políticos europeus?

Há uma enorme urgência de intervenção da sociedade civil. A acção política no mundo hoje, já não está na mão dos governos. Os governos transformaram-se em aparelhos de corrupção e de lucro económico. Onde existe uma democracia, o parlamento, os média, a opinião pública, denunciam. Até acontece já um chefe de governo passar algum tempo na prisão por corrupção. Há uma crise muito profunda da acção política e da governação, que já não é uma governação democrática porque se transformou numa negociata entre uma elite política que é eleita e o sector privado, a alta finança e o sector imobiliário. Existe uma crise de confiança nos partidos políticos e nos sindicatos e os eleitores começam a abrir os olhos. Veja-se a debandada no partido socialista francês a um ano das eleições presidenciais. Passa-se o mesmo em Espanha, em Portugal, na Grécia. A sociedade civil não presta juramento a um sindicato que tem cálculos de poder nem a um partido político enredado em tráfico de influências. O que é que liga essa gente da sociedade civil? É pertencerem ao lugar onde vivem, à aldeia, à região, e defendem os seus direitos de cidadãos. Começam a exigir que o Estado cumpra. A sociedade civil é a única garantia da democracia. É muito difícil corromper uma sociedade, porque há todas as classes sociais, todas as tendências ideológicas, por isso acredito muito no trabalho dos cidadãos. Não só no contexto israelo-palestiniano – estou muito contente por ver que uma petição de um milhão de cidadãos que fez cair em França o projecto de lei de Myriam El Khomri sobre a reforma do direito laboral. No início Manuel Valls disse que não recuaria, que a lei faria da economia francesa uma economia moderna, e quando foi confrontado com um milhão de assinaturas contra a lei em duas semanas, calou-se. É um trabalho muito importante e os cidadãos querem assumir esse papel.

 

Como avalia o posicionamento do mundo árabe?

Do mundo árabe podemos dizer o mesmo: os regimes deviam ir todos para o lixo. Antes de mais, porque são anti-democráticos, foi por isso que aconteceram as primaveras árabes. Esses regimes são os parceiros políticos desses senhores que estão no poder nos Estados Unidos e na UE. Em Bruxelas diziam que Ben Ali era o melhor aluno da UE. Eu perguntava “Como é que podem dizer que é o melhor aluno com todas as violações dos direitos humanos?”. A resposta era “O que conta é que tem uma economia que funciona. E é um escudo contra os islamistas”. O mesmo para Hosni Mubarak: “Assinou um acordo de paz com os israelitas, garante a estabilidade na região”. Há muita desonestidade na política dos Estados europeus, que dizem que falam de democracia e liberdade mas de facto fazem outra coisa, como hoje com a Arábia Saudita. Eles não sabem que na Arábia Saudita cortam as mãos dos ladrões e lapidam as mulheres acusadas de adultério? Porque denunciam os jihadistas do Daesh por decapitarem os prisioneiros e se calam quando o regime saudita corta as mãos de um pobre ladrão que roubou um pão e manda apedrejar e enterrar viva uma mulher tem uma relação sem estar casada? São bárbaros, mas são eles que lhes vendem o petróleo e por isso são amigos privilegiados. Há uma grande hipocrisia na política europeia. Com a possibilidade que as tecnologias de comunicação permitem hoje, é possível chegar á informação e as pessoas nem já têm necessidade de ver a televisão, até porque os média nem sempre lhes dão essa informação.

 

Que perspectivas, para a sucessão de Mahmoud Abbas?

A sucessão de Abbas não é uma questão fácil, pois chegou ao fim a era dos fundadores da OLP – Yasser Arafat, Mahmoud Abbas, Abou Iyad, Abou Jihad, Abou Youssef al-Najjar, Nayef Hawatmeh, Georges Habache. Começou em 1964 e Abbas é o último “moicano”. Os que se seguem são já outra geração e não há no horizonte uma personalidade com suficiente carisma nem que tenha o reconhecimento do povo. As pessoas não gostam da política de Abbas, mas respeitam-no, reconhecem-lhe uma legitimidade histórica. Os jovens não têm o carisma de um líder histórico e o único meio de assegurar a sucessão seria formar uma direcção colegial, o que me parece ser uma boa solução. Não abundam na história dos povos vários Mandela ou de Gaulle. Do que realmente precisamos, tal como todos os países do terceiro mundo, é de instituições democráticas. Necessitamos rapidamente de eleições, de um verdadeiro parlamento, onde se encontrem representadas todas as tendências. Numa liderança colegial poderíamos ter gente de Gaza, da Cisjordânia, de Jerusalém, da Frente Democrática, do Fatah, de todas as tendências.

 

Que papel vê para si?

Saí da diplomacia para manifestar a minha decepção. Interessa-me preservar a vitalidade e força da sociedade civil palestiniana. O povo palestiniano tem uma enorme capacidade de se renovar e de se levantar, uma enorme resiliência. Não é apenas uma capacidade de combate político, é a criação artística, intelectual. Somos um povo pequeno, no mundo inteiro apenas 10 milhões, mas com uma grande vitalidade. Quanto mais são postos à prova, mais reinventam formas de criar e existir. As mulheres palestinianas batem-se como leoas, os artistas são criativos, e quero fazer tudo para transmitir a essas pessoas aquilo que aprendi durante estes anos na Europa.

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