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Quinta-feira, Abril 25, 2024

O “Livro Verde” ou o “Livro da Selva” das Relações Laborais?

António Garcia Pereira
António Garcia Pereira
Advogado, especialista em Direito do Trabalho e Professor Universitário

Foi recentemente divulgado, numa conferência sem debate realizada no passado dia 26/4, o chamado “Livro Verde das Relações Laborais”
Foi recentemente divulgado, numa conferência sem debate realizada no passado dia 26/4, o chamado “Livro Verde das Relações Laborais” (com uma tiragem de 150 exemplares…), o qual merece uma reflexão bem mais aprofundada do que aquela que é habitualmente feita com documentos desta natureza, ou seja, com uma ou duas destas “sessões de apresentação” e depois com umas quase sempre parciais e superficiais referências a (apenas) alguns dos seus dados por parte deste ou daquele órgão da Comunicação Social.

Trata-se de um documento importante pelos elementos, designadamente estatísticos, que contém mas, precisamente, é tanto por tais elementos como pelas reais explicações dos mesmos que se impõe uma análise mais séria e precisa do mesmo. E, por exemplo, comparar (vide fls. 233-234) os dados de incidência do assédio moral decorrentes de estudos e inquéritos de campo (entre 12,6% e 16,5%) com os números irrisórios dos procedimentos coercivos, para concluir que este “poderá ser um fenómeno que as vítimas tendem a banalizar”, só mostra quão necessária é essa análise.

Mercado de trabalho, contratos e cessações

Assim e antes de mais, o chamado “mercado de trabalho” português é ainda hoje essencialmente constituído (na ordem dos 80%) por trabalho dependente.

No entanto, os chamados trabalhadores autónomos ou por conta própria, nos quais se incluem, e representando a sua maior fatia, os chamados “recibos verdes” fraudulentos, representa já actualmente 13,1%, ao mesmo tempo que já são cerca de 5% os denominados “pequenos empresários” ou “empreendedores” (muitos dos quais não passam de verdadeiros trabalhadores por conta de outrem que foram aliciados ou mesmo forçados a, como condição para terem meio de sustento, constituírem formalmente pequenas sociedades unipessoais ou por quotas, como forma de assim se disfarçarem verdadeiros e próprios contratos de trabalho entre a empresa beneficiária da actividade e o real prestador desta).

Acresce que, não obstante a prevalência numérica ainda existente dos contratos permanentes, comummente designados de efectivos (e que baixou, só entre 2010 e 2014, de 74,8% para 69,7% – p. 161), o facto é que, de todos os novos contratos de trabalho celebrados entre 2014 e 2015 (p. 163), somente 18% tiveram essa natureza e a restante e astronómica percentagem de 82% desses novos contratos foi de contratos temporários (isto é, de contratos a prazo e de contratos de trabalho temporário)!

Ou seja e em suma, a larguíssima e esmagadora maioria dos novos contratos de trabalho foram contratos precários, o que faz com que a percentagem dos trabalhadores dependentes precários ultrapasse em Portugal os 20%, enquanto a respectiva média na União Europeia é de apenas 14%.

É também muito interessante constatar (p. 289) que, relativamente às formas ou causas de cessação dos contratos de trabalho em 2015, a ultra-maioritária (com 62,9%) é a da caducidade (dos contratos a termo), seguida, e a longa distância, com apenas 13,1%, pela revogação por mútuo acordo, pelos despedimentos por extinção do posto de trabalho (8,7%), só a final vindo os despedimentos colectivos, com 2,7%!

Ora o que é que estes outros números demonstram?

Antes de mais, que a forma por excelência de cessação dos contratos de trabalho é a da sua caducidade, operada pela não renovação, pelas entidades empregadoras, desses mesmos contratos, precisamente porque os novos são esmagadoramente a prazo.

Mas, sabendo-se por exemplo que só na Banca, entre 2009 e 2016, foram dispensados 13.084 trabalhadores (representando um corte de pessoal da ordem dos 22,6%), como é então possível que os mútuos acordos de revogação representem os já referidos 13,1% das cessações e os ditos despedimentos colectivos apenas 2,7%?

Tais números só são possíveis devido à circunstância de que, em especial após as reformas laborais da Tróica (muito em particular com as Leis nº 23/2012, de 25/6 e nº 69/2013, de 30/8), se tornou muito fácil, muito barato e muito pouco juridicamente arriscado efectuar despedimentos por causas ditas “objectivas” (colectivos e por extinção do posto de trabalho), sendo assim fácil impor como “melhor alternativa” uma revogação por mútuo acordo que, para o patrão, só tem vantagens – é rápida, é segura (e com o reconhecimento presencial da assinatura do trabalhador este não se pode arrepender do acordo e revogá-lo unilateralmente no prazo de 8 dias) e é socialmente bem vista (evitando os “custos de imagem” da prática de um conjunto de despedimentos, higienicamente disfarçados agora de “plano de rescisões voluntárias”…).

Despedimentos, o que não consta no Livro Verde

Isto, fundamentalmente devido à circunstância de que o trabalhador que se veja confrontado com um despedimento desses que considere não conforme à lei, se tem de haver com uma série de obstáculos praticamente incontornáveis, e de que o “Livro Verde” nada diz.

Antes de mais, ele tem de, mal a receba, devolver de imediato à entidade empregadora a compensação de antiguidade que lhe haja sido paga pois, de outra forma, o Código do Trabalho (nos nºs 4 e 5 do seu artº 366º) conclui que ele aceitou o mesmo despedimento e, logo, não o pode impugnar judicialmente.

Depois, temos o escândalo das custas laborais elevadíssimas (em que as custas do Tribunal Constitucional são mesmo um autêntico desaforo), e as quais representam uma verdadeira denegação da Justiça, tanto mais que o regime do chamado Apoio Judiciário e a consequente dispensa do pagamento das taxas de Justiça só se aplicam praticamente a quem viver debaixo das pontes.

Finalmente, deparamo-nos com as posições dominantes nos nossos Tribunais do Trabalho, cujos juízes não apenas se eximem a fiscalizar de modo efectivo a veracidade da motivação económico-financeira invocada para este tipo de despedimento (aceitando, em nome da sacrossanta “liberdade de iniciativa económica” e do “respeito pela autonomia da gestão empresarial privada”, todas as justificações apresentadas) como permitem que se calculem as indemnizações de antiguidade não a partir daquela que é verdadeiramente a remuneração base do trabalhador mas sim daquilo que os patrões designam, nos respectivos recibos, de “vencimento base”.

A isto se some a hoje igualmente dominante lógica – que é inimiga da busca oficiosa e efectiva da averiguação da verdade dos factos, da realização de todas as diligências úteis para tal descoberta e do exame atento e ponderado das questões mais difíceis e controversas (como as da determinação do real nexo de causalidade entre os motivos abstracta e genericamente invocados e a alegada necessidade de extinção do contrato daquele trabalhador em concreto, ou a da determinação daquilo que é afinal e verdadeiramente a retribuição base do trabalhador) – de “aviar” processos e decisões a todo o transe e de trabalhar para a estatística dos processos ditos “findos”, por ser esse o critério essencial, para não dizer único, de avaliação dos juízes dos Tribunais do Trabalho.

Reformas laborais da austeridade

Acresce que, por um lado, e confirmando que esse foi precisamente um dos principais objectivos do Código do Trabalho em 2003 e, posteriormente, das “reformas laborais da austeridade” cerca de uma década mais tarde, com a revogação do princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador (nos termos do qual as condições da lei só podiam ser alteradas para melhor por via de convenções colectivas de trabalho) e da caducidade destas, com a consequente individualização das relações laborais e a muito maior fragilização dos trabalhadores, passou-se (pp. 320) de 336 instrumentos de regulamentação colectiva publicados em 2005, abrangendo 1 milhão e 174 mil trabalhadores, para, em 2015, apenas 182 IRCT’s publicados, abrangendo 568 mil trabalhadores.

Mas há mais! Ainda segundo o mesmo “Livro Verde” (p. 267), actualmente apenas 23,7% dos trabalhadores têm um horário normal, estando a chamada flexibilidade horária – as mais das vezes com completa violação do princípio da conciliação da vida profissional com a vida pessoal e familiar – mais que assegurada pelos mais variados instrumentos legais, como os da adaptabilidade (cerca de 70%!) e do banco de horas, individuais e grupais, e das isenções de horário de trabalho.

Por outro lado, e apenas em 7 anos (2008 a 2015), assistiu-se a uma drástica diminuição da população activa (de 5,5 para 5,1 milhões de trabalhadores), muito em particular devido aos saldos demográficos negativos (ou seja, maior número de mortes do que nascimentos) e à emigração (que atingiu os mais de 100 mil portugueses por ano). E também a um seu acentuado envelhecimento, com um marcado decréscimo do peso dos jovens na actividade (de 14,3% para 7,1%).

Lei da Selva nos salários e horas de trabalho

Se tivermos presente o baixo nível dos salários dos trabalhadores comuns (que  eram em média de 906,8€ brutos mensais em 2014 – p. 270 – e chegam a ser apenas de 1% dos respectivos administradores como na Galp ou na Jerónimo Martins) e que é ainda mais baixo (cerca de 80% do daqueles trabalhadores) para os que têm vínculos precários – os tais que constituem mais de 80% dos novos contratos… – a carga fiscal que sobre eles recai (cerca de 41,5%, a 13ª mais alta dos 35 países da OCDE) e a enorme carga horária (segundo a mesma e insuspeita OCDE, em 2014, um trabalhador português trabalhou em média por ano 1865 horas, ou seja, mais 365 que um luxemburguês e mais 565 que um alemão), começaremos então, e só então, a ter uma noção mais próxima da verdadeira lei da selva que é – e muito em particular para os mais jovens à procura do 1º emprego, e dos mais idosos, desempregados de longa duração mas sem condições para acederem sem penalizações gigantescas à reforma – o chamado “mercado de trabalho português”.

Relações individualizadas ao máximo, sem protecção da contratação colectiva ou sequer da lei, contratos ultra-precários todos prévia e unilateralmente definidos pelo empregador com as cláusulas mais gravosas para o trabalhador, designadamente quanto às funções exigidas e aos locais de trabalho fixados, salários muito baixos, com 10% dos trabalhadores empregados em risco imediato de pobreza (p. 131) e horários demasiado extensos. Tudo isto sem qualquer evidência de ganhos de produtividade (que é um problema, não do trabalhador, mas do patrão e dos meios tecnológicos por este utilizados, ou não, no processo produtivo, exactamente ao contrário do que infundadamente pregam os ideólogos neo-liberais).

Mais de 130 anos após a heróica luta dos operários de Chicago pela jornada diária das 8 horas, e que comemoramos no 1º de Maio, com os enormes progressos científicos e tecnológicos alcançados pela Humanidade, se os trabalhadores, e em particular os trabalhadores portugueses, têm de trabalhar cada vez mais e cada vez mais dura e opressivamente, forçoso é concluir que a questão não reside em tais progressos, mas sim nas relações sociais dominantes que permitem que os enormes ganhos por eles possibilitados sejam, não colocados ao serviço da Humanidade, mas sim apropriados por uma minoria cada vez mais rica e poderosa.

E, por isso, são essas relações sociais de produção que têm de, e que inevitavelmente irão, ser mudadas!…

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