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Quinta-feira, Março 28, 2024

Marabô Obatalá, meu novo livro de poemas

Seleção de 21 orixás incorporou divindades cultuadas nas nações ketu e jejê

Oriki é o poema ritual da tradição iorubá, cantado até hoje nos terreiros de candomblé, celebrando os orixás. Quem introduziu o oriki no Brasil foram os negros africanos, escravizados no período colonial-monárquico, que conservaram as suas tradições religiosas sob o aparente sincretismo com o culto aos santos da devoção cristã.

As primeiras traduções desses textos orais para o idioma português em forma poética elaborada foram realizadas por Antonio Risério em seu belíssimo livro Oriki Orixá, publicado pela editora Perspectiva na coleção Signos, dirigida por Haroldo de Campos (antes do notável trabalho tradutório de Risério, circularam entre nós versões literais desses cantos sagrados, feitas por estudiosos como Pierre Verger). Em seu livro, Risério apresenta aos leitores excelentes ensaios críticos e traduções de alguns desses poemas cantados.

Ricardo Aleixo publicou orikis de sua autoria no livro A Roda do Mundo. Ricardo Corona, Fabiano Calixto e Frederico Barbosa também escreveram bons orikis. Minha pesquisa nesse campo procura manter elementos do oriki tradicional – os nomes e epítetos dos orixás, pequenas narrativas, provérbios e mitos, incorporando referências à situação do país, que desde 2013 vive sob grave crise política e social, que redundou no golpe de estado de 2016 e no atual regime de exceção.

Todos os poemas que compõem este livro foram escritos entre fevereiro e março de 2015, com exceção do oriki de Orunmilá, redigido em 2006, e os de Oxaguiã, Ikú e Otim, elaborados entre 2016 e 2017. As linhas apresentadas em itálico no interior dos poemas são citações de “pontos”[1] cantados em terreiros de umbanda no Brasil e os textos são apresentados conforme a ordem do xirê cantado no candomblé (adotamos a sequência estabelecida por Pierre Verger no livro Orixás, com poucas variações[2]).

Minha seleção de 21 orixás incorporou divindades cultuadas nas nações ketu e jejê. No final do livro, apresentamos um glossário com as palavras em iorubá que aparecem nos poemas. A primeira edição desta obra, impressa, saiu em 2015, com o título O livro dos Orikis; A Nova Versão, que o leitor tem agora em mãos, apresenta, além dos novos poemas, a revisão dos mais antigos. O título adotado nesta versão, Marabô Obatalá, é composto por nomes de Exu e Oxalá, orixás que abrem e fecham as cerimônias de candomblé (Marabô é um nos nomes ou qualidades de Exu, e Obatalá, de Oxalá).

 

Ogum

Ogum Onirê
pisca o olho
e cai um dedo
do mentiroso.
Pesca o peixe
sem ir ao rio.
Molamolá
— farejador
de farelos —
livra seus filhos
do abismo.
Ogum Ondó
viajou a Ará
e a incendiou.
Viajou a Irê
e a demoliu.
Senhor de Ifé,
livra seus filhos
do abismo.
Ogundelê
malha o ferro
e faz flechas
de flagelo.
Comedor de cães
fulmina o racista.
Ogum Megê
queima o sangue
do fascista.
Megegê
golpeia o golpista
da revista.
Ferreiro-ferrador
forja a foice
forja o martelo.
Que não falte
o inhame.
Que não falte
massa de pão.
Pai do meu avô,
livra seus filhos
do abismo.

Ogunhê!

 

 

Obá

Obá Obá
moça que
é noite
moça que
é rio.
Obá Obá
lutou
com Oyá
venceu
Oyá.
Obá Obá
moça que
é noite
moça que
é rio.
Obá Obá
lutou
com Exu
venceu
Exu.
Obá Obá
moça que
é noite
moça que
é rio.
Obá Obá
lutou
com Oxalá
venceu
Oxalá.
Obá Obá
moça que
é noite
moça que
é rio.
Obá Obá
cortou
a orelha
por intriga
d’Oxum.
Obá Obá
moça que
é noite
moça que
é rio.
Obá Obá
cortou
a orelha
por amor
de Oba-
Orungá.
Obá Obá
moça que
é noite
moça que
é rio.
Obá Obá
protege
aquele
que ama.
Obá Obá
protege
aquele
que luta.
Obá Obá
moça que
é noite
moça que
é rio.

Obà Siré!

 

 

Otim

Otim-Otim
moça da mata
fugiu, fugiu.

Otim-Otim
moça da mata
que virou rio.

Otim-Otim
filha de Oquê
cadê, cadê?

Otim-Otim
dona de Odé,
aqui-ali-além?

Otim-Otim
moça de ofá,
é água de mar?

Otim-Otim
filha de Otã
tinha segredo.

Otim-Otim
mana-oh-mana
era o segredo.

Otim-Otim
seu pai
é montanha.

Otim-Otim
sua pele
é de água.

Otim-Otim
sei o segredo:

que não direi
que não direi
que não direi.

 

Iku

Aquele-aquela
que-vem
e-leva-
me-leve-
não-me-leve-
orixá-mais-
leve-
que-a-pluma-
de-pavão-
mais-leve-
que-o-vento-
de-Oiá.
Ikú-meu-avô-,
negro-
negrura-
mais-escuro-
que-a-noite;
mais-branco-
que-o-branco-
do-olho-
mais-branco-
que-o-miolo-
do-pão-
leve-o-Temer-
primeiro;
orixá-que-
tudo-come-
-o-grande-
glutão-
leve-o-Moro-
em-seguida;
leve-o-Bozo-
depois-.
Senhor-dos-rios-
que-se-encontram,
permita-que-eu-
viva-um-pouco-
mais.

 

 

Oxaguiã

Ajagunã, aquele-que-muda-todas-as-coisas-
muda-noite-em-rio-
pedra-em-flor-
mulher-em-tempestade.
Kabiyesi —
aquele-que-sabe-
todos-os-saberes
sabe das minas de prata
sabe dos rios de água quente.
Eléèjìgbó —
orixá-comedor-de-inhame-
inventor do pilão
pai de todos os inventos
aquele-que-dança-com-espada-na-mão.
Eléèjìgbó —
orixá-comedor-de-inhame-
aquele-que-é-branco-
aquele-que-é-vermelho-
aquele-que-dança-com-espada-na-mão.
Oisa-Je-Iyán,
o grande teimoso
aquele-que-nunca-
se-conforma-
Oisa-Je-Iyán,
o grande teimoso
aquele-que-nunca-
silencia-
toma de quem
tudo tem
para saciar
a fome de seus filhos.
Filho de Oxalufã,
o astucioso
livra da miséria
todos os teus filhos.
Babá Ejigbô, aquele-que-luta-
vestido-de-branco-
aquele-que-dança-
vestido-de branco-
aquele-que-canta-
e-encanta-
todas-as-cores-
do-céu.

Epe, Epe, Babá Oxaguiã!

 

O livro Marabô Obatalá pode ser adquirido no site da Editora Kotter

[1] Os “pontos” de umbanda, cantados em português, são diferentes dos orikis, cantados em iorubá nos terreiros de candomblé, mas são igualmente formas de poesia cantada de louvor aos orixás. Na pesquisa que realizei para a composição deste livro, considerei as duas formas de canto sacro.

[2] A princípio, adotamos a sequência apresentada por Pierre Verger, no livro Orixás; depois, consultando outras obras de referência, como Mitologia dos Orixás, de Reginaldo Prandi, e O Candomblé Bem Explicado, de Odé Kileuy e Vera de Oxaguiã, mudamos a ordem dos poemas, até estabelecermos a sequência apresentada aqui. Em todos os autores consultados, a sequência do xirê é diferente; todos concordam, porém, que Exu é saudado em primeiro lugar e Oxalá por último.


por Claudio Daniel, Poeta, tradutor e ensaísta, é formado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, com mestrado e doutorado em Literatura Portuguesa pela USP, além de pós-doutor em Teoria Literária pela UFMG   | Texto original em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado

 

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