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Terça-feira, Abril 23, 2024

Marx, democracia formal e emancipação humana real

José Carlos Ruy, em São Paulo
José Carlos Ruy, em São Paulo
Jornalista e escritor.

A lenda ideológica da direita apresenta, desde sempre, Karl Marx como um adversário da democracia, sendo um antepassado de ditaduras do século 20.Esta lenda faz parte do combate ideológico das classes dominantes contra a democracia efetiva, real, e para perpetuar seu domínio. E tentar negar legitimidade ao fundador do pensamento democrático mais consistente.

O compromisso de Marx com a democracia foi manifestado já na juventude, e nunca foi abandonado. Mas Marx sempre deixou clara sua compreensão radical de democracia, sua rejeição da expressão meramente formal da democracia convencional, que predomina nas repúblicas modernas.

Desde a carta que escreveu ao pai, em 1837, na qual comunicou a troca do estudo do direito pelo da filosofia, já manifestou sua discordância com a maneira meramente formal com que o direito, influenciado pelo pensamento de Kant, encarava os direitos humanos, ao contrário da filosofia (hegeliana, como havia descoberto) dava a base à luta pela emancipação dos homens de maneira mais efetiva.

Este ponto de vista foi, poucos anos depois, em 1843, desenvolvido mais amplamente na Crítica da filosofia do direito de Hegel, na qual Marx fundamentou a convicção que guiaria sua atividade política junto ao proletariado ao longo de sua vida. Fez então uma severa crítica a Hegel, que “parte do Estado e faz do homem o Estado subjetivado; a democracia parte do homem e faz do Estado o homem objetivado. Do mesmo modo que a religião não cria o homem, mas o homem cria a religião, assim também não é a constituição que cria o povo, mas o povo a constituição”. Isto é, as leis, o direito, o Estado são feitos pelos homens, para os homens, e não o contrário. “A democracia é, assim, a essência de toda a constituição política, o homem socializado como uma constituição particular”. Na democracia, “o homem não existe em razão da lei, mas a lei existe em razão do homem, é a existência humana, enquanto nas outras formas de Estado o homem é a existência legal. Tal é a diferença fundamental da democracia”, escreveu.

O centro de sua crítica à democracia meramente formal vai além do respeito aos direitos humanos – que é fundamental – mas alcança a emancipação da humanidade. Marx opõe, em sua argumentação, o mero respeito aos direitos do indivíduo, à busca pela libertação do ser humano como ser genérico. Partindo da compreensão da igualdade radical entre todos os seres humanos, não admite – não há lugar para isso em seu pensamento – a atomização da sociedade em inúmeros seres individualizados cujos direitos pessoais se sobrepõem aos direitos de todos os demais, e seja visto como contraditórios aos direitos gerais de todos os seres humanos. Em A Ideologia Alemã (1845), ele define a “emancipação humana universal” como a “verdadeira democracia”.

Contra Hegel, Marx criticou o caráter meramente formal abstrato dos “direitos do Homem e do Cidadão” que, tendo como fundamento a defesa da propriedade privada, está na origem daquele formalismo político que disfarça a desigualdade entre os homens, sendo o principal obstáculo para a real emancipação humana. Marx assinala, na Critica da Filosofia do Direito de Hegel (1844), que “na verdadeira democracia o homem não existe em razão da lei, mas a lei existe em razão do homem, é a existência humana, enquanto que nas outras formas de Estado o homem é a existência legal.”

E, em Sobre a Questão Judaica (1843) Marx acrescenta aos “direitos” tradicionais da constituição burguesa, aquele que é o essencial para o domínio de classe dos capitalistas: “igualdade, liberdade, propriedade e segurança”. Para ele, sob o domínio da burguesia, “a aplicação prática do direito humano de liberdade é o direito da propriedade privada.” Os “direitos do homem” se reduzem, dessa maneira, aos direitos do homem egoísta, que prevalece na sociedade burguesa. Na qual o “homem” deixa de ser visto como ser genérico, social, mas ligado aos demais somente pelos interesses privados.

Contra esse domínio baseado na propriedade privada e no poder de seus donos, Marx diz que a “verdadeira democracia” só existirá com a real “emancipação humana universal”.

Muitos anos mais tarde, A Guerra Civil na França (1871), ele analisou a Comuna de Paris, e examinou a conjuntura política francesa com base na compreensão do Estado como instrumento da classe dominante – sendo portanto ditatorial. Que refletia a centralização do poder – “com os seus órgãos onipresentes: exército permanente, polícia, burocracia, clero e magistratura”, diz ele, “forjados segundo o plano de uma sistemática e hierárquica divisão de trabalho”. Organização estatal que reflete a desigualdade entre os homens decorrente da presença avassaladora da propriedade privada. Para cuja garantia o governo pôs sob seu controle o parlamento – “isto é, sob o controle direto das classes possuidoras” —, permitindo a elas (sobretudo à sua facção financeira) o controle total dos recursos do governo. O “poder de Estado assumia cada vez mais o caráter do poder nacional do capital sobre o trabalho, de uma força pública organizada para a escravização social, de uma máquina de despotismo de classe” anotou Marx. O estado havia se transformado, sob Luis Bonaparte, em um “meio para a escravização do trabalho pelo capital”.

A denúncia da desigualdade intrínseca ao capitalismo, decorrente da existência da propriedade privada e sua garantia pelo Estado burguês, está presente em O Capital (1867), onde Marx afirma, em certa altura, que o próprio sistema está baseada no formalismo jurídico da existência de pessoas livres em dois sentidos: são donas de si próprias, não estando sob o domínio pessoal de nenhum senhor, e também despojadas de todos os meios e instrumentos de trabalho, sendo portanto forçadas a vender sua força de trabalho a um patrão, para sobreviver. São assim duplamente livres – donas apenas de sua força de trabalho, e sendo capazes de estabelecer contratos de trabalho. Este talvez seja o principal fundamento da desigualdade no capitalismo, expresso no formalismo político da democracia burguesa.

A democracia, para Marx, é assim aquele sistema no qual, livres da propriedade privada, os homens estarão livres também do formalismo político que disfarça o domínio da burguesia. Liberdade que abre caminho efetivo para a verdadeira democracia, aquela que vai surgir da efetiva emancipação humana.

Idéia democrática radical, baseada na igualdade fundamental entre todos os homes, e portanto insuportável para a burguesia e sua democracia meramente formal.

  • Marx, Karl. A Guerra Civil na França. In Obras Escolhidas em três tomos, Editorial “Avante!”/Edições Progresso, Lisboa/Moscou, 1982.
  • Marx, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2005.
  • Marx, Karl. O Capital. Vol. I, Tomo I. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
  • Marx, Karl. Sobre la cuestión judia. In: Obras Fundamentales.
  • México: Fondo de Cultura Econômica, v. 1, 1987.

Texto original em português do Brasil

Ilustração: Karl Max,  de Olavo Costa para o especial Marx 200 anos para o PV

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