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Quinta-feira, Março 28, 2024

A memória suspensa

José Carlos S. de Almeida
José Carlos S. de Almeida
Professor de Filosofia do ensino secundário. Licenciado em Filosofia e em Direito.

À medida que, sem querer, lhe íam surgindo imagens de acontecimentos ocorridos há muito tempo, foi temendo que isso fosse uma espécie de um balanço antecipado, a súbita consciência plena da sua história, o livro completo ou quase a completar para fecho de contas, a sensação de que nada havia para a frente, que o futuro se tinha esgotado e amarrotado perante o peso cada vez maior do passado.

Por isso começou a pensar em direcção a coisa nenhuma, tentando evitar constantemente esse assalto permanente do passado de forma a concentrar-se apenas sobre o futuro, como se este, afinal, fosse ainda uma caixa de surpresas e esperanças recompensantes.

Queria que essas imagens do futuro lhe insuflassem uma alma nova e uma nova vida e esconjurassem a morte.

Tudo isto deu início a um lento processo de apagamento da memória. Depois tomou decisões. Abandonou a família, a casa e o emprego, mudou de cidade, deixou para trás os livros, o café e os amigos. Deu um novo corte ao cabelo e deixou crescer a barba, como sempre desejara.

Deslocou-se para o interior. O interior do país, não o interior de si mesmo. Mas na altura, olhando o rosto e os modos dos seus compatriotas, afinal seus semelhantes, achou melhor mudar de país. Sentia, por causa deles, o peso da sua história. E isso incomodava-o.

caminhar-2

Mudou de país. Assim fez. Escolheu um país ao acaso. Durante a viagem vendeu o carro a uma família de camponeses que lhe deu abrigo durante umas noites, enquanto pensava melhor na sua decisão.

Quando vendeu o carro percebeu que, inconscientemente, estava a dificultar o seu regresso. Que não queria regressar.

Nunca tinha andado a pé e decidiu que era isso que queria fazer. Primeiro, quando chegava a um cruzamento, hesitava entre os caminhos, depois de deixar de se importar com isso. Apenas sabia que de manhã queria enfrentar o sol e à tarde queria caminhar com ele a bater nas suas costas.

Nos dias mais enevoados, sem a orientação firme do sol, fazia uma paragem e dormia. O seu único consolo era saber que ía deixando a sua história para trás como uma cobra que larga a sua pele.

Por isso não parava de caminhar. Chegado do país que lhe coubera em sorte, acabou por reparar, apesar dos milhares de quilómetros de distância da sua casa, que havia muitos pormenores que evocavam a sua terra e o seu passado. Por essa razão, não perdeu muito tempo e pôs-se de novo a caminhar.

Atravessou o mar. Durante várias semanas viveu no porão de um navio mercantil. Conheceu gente que apenas conhecia de ouvir dizer. Não os entendia pois falavam línguas estranhas. Mas era isso que ele procurava. Sentir-se absolutamente estranho. Contudo, nenhum lugar lhe era completamente estranho e,por esse facto, não parava em parte alguma. Demorava apenas o tempo suficiente para recuperar forças e fazer-se de novo à estrada.

Finalmente desfez-se dos seus documentos, lançando-os numa ponte. Já vira muitas vezes essa cena no cinema, e se o fazia dessa forma esperava ir esquecendo os filmes que vira no passado. E as circunstâncias que rodearam essas idas ao cinema.

O seu olhar tornou-se bondoso e aprendeu a convencer as autoridades que o interrogavam. Não inspirava nenhum perigo. Por fim, esqueceu-se do seu nome. Também era verdade que não precisava dele para mais nada. E ninguém precisava do seu nome. Não queria ouvir mais o seu nome.

E assim se foi começando a esquecer de si próprio. Muitas vezes tinha que se sentar à beira do caminho, quando sentia que aquilo que sobrava de si mesmo, se atrasara e ficara para trás. Até que percebeu que o que pretendia era precisamente o inverso.

E começou a apressar o caminho e a encurtar os períodos de descanso. Aprendeu a largar-se de si mesmo. Como isso era importante!…

Atravessou de novo os mares e alguns continentes. O que viu nunca vira. Mas não se demorava a ver. Atravessava as cidades mais populosas de uma forma quase imperceptível. Evitava parar nas cidades. As montras e os espelhos das ruas das cidades podiam ser fatais. Se alguém se demorava a olhar mais tempo para si, partia logo a correr. Temia ser reconhecido.

Ou reconhecer no olhar do outro, olhares ainda alojados no fundo da sua memória.

Não se queria ver a si mesmo, embora não sentisse que se reconheceria. Mas não queria correr riscos. Por isso escolhia os lugares menos povoados. Por exemplo, os campos. Preferia os caminhos mais estreitos. Os atalhos. Quando, por acaso, escutava alguém a falar, apercebia-se que tinha imediatamente que continuar a caminhar, atravessando os países.

Até que um dia chegou a uma cidade completamente desconhecida. Achou que era um bom lugar para ficar. Nada do que via à sua volta lhe era mesmo de leve familiar. Pela primeira vez, nada lhe dizia alguma coisa. Que local estranho, mas agradável, pensou.

Pela primeira vez sentia-se completamente vazio e ignorado. Entretanto, porque ganhara esse hábito, continuava a dar grandes passeios pela cidade, a passo vigoroso, grandes passadas, de forma apressada, quase parecendo um louco, não ligando a nada que estava à sua volta.

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Caminhando, apenas caminhando. O que fez passando indiferente por avenidas, ruas, becos, jardins. A isto nada ligava. Apenas se limitava a passar, dando grandes passadas, sem olhar para o lado.

Todos se interrogavam, como era possível caminhar assim, àquela velocidade, sem sequer parar ou mesmo abrandar, sem olhar para o lado, como se aquilo por onde passava não o interessasse. Era quase como se estivesse a provocar as outras pessoas, que amavam a sua cidade e achavam que havia muitos e muitos lugares para visitar ou, pelo menos, apreciar. Tudo isto para ter a certeza que nada lhe suscitava a mais leve recordação.

Por fim, já extenuado, resolveu entrar numa casa. Bateu à porta e mandaram-no entrar para a sala. Uma mulher e duas crianças apareceram-lhe pela frente e ficaram especadas. Olhavam para ele, incrédulas.

Pela primeira vez, desde há muito tempo, o homem parou para reparar em si mesmo. A sua roupa estava esfarrapada, quase descalço, as longas e sujas barbas, a magreza acentuada do rosto. Libertava-se dele um cheiro fétido. Mas a mulher e as crianças sorriram para o homem. Tinham passado mais de dois anos e não sabiam o que dizer. Foi o homem que rompeu o silêncio e o embaraço.

– Não me perguntem nada. Tive um dia esgotante.

E dito isto, o homem avançou e foi sentar-se num sofá, exactamente no mesmo sofá onde se sentava todos os fins de tarde quando regressava a casa, exausto e desconsolado.

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