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Quarta-feira, Março 27, 2024

Natal: os Herodes de ontem e de hoje e a Divina Criança

Os ancestrais relatos sobre o “Divus Puer”(a Criança Divina) ganham sempre novas significações consoante a mudança dos tempos e dos contextos históricos. Nós os lemos e interpretamos com os olhos de hoje, no quadro de uma situação sombria, marcada pela morte de milhões do mundo inteiro e de milhares entre nós sob o ataque traiçoeiro de um vírus letal. Descobrimos similitudes e poucas diferenças entre o Natal de outrora e de hoje. Na verdade, numa leitura simbólica, temos a ver com algo que afeta a todos os humanos.

De um lado, temos José e Maria, sua esposa, grávida de nove meses. Eles vem de Nazaré, do norte da Palestina para o sul, em Belém. São pobres como a maioria dos artesãos e camponeses mediterrâneos. Às portas de Belém, Maria entra em trabalho de parto: segura a barriga pois a longa caminhada acelerou o processo. Batem à porta de uma hospedaria. Ouvem o que os pobres na história sempre ouvem: ”não tem lugar para vocês na hospedaria”(Lc 2,7).

Abaixam a cabeça e se afastam preocupados. Como ela vai dar à luz? Sobrou-lhes, na vizinhança, uma estrebaria de animais. Aí há uma manjedoura com palhas, um boi e um jumento que, estranhamente, permanecem quietos, observando. Ela dá a luz a um menino entre os animais. Faz frio. Ela o envolve com panos e ajeita-o nas palhinhas. Choraminga alto como todos os recém nascidos.

Há pastores que velam à noite, vigiando o rebanho. São considerados impuros e por isso desprezados, por estarem sempre às voltas com os animais e seus excrementos. Surpreendentemente, uma luz os envolveu e escutaram do Alto uma voz lhes anunciando: ”não temais anuncio-vos uma grande alegria que é para todo o povo; acaba de nascer o Salvador; este é o sinal: encontrareis um menino envolto em panos, deitado numa manjedoura”. Ao porem-se, pressurosos, a caminho ouviram um cântico mavioso, de muitas vozes, vindo do Alto: ”Glória a Deus nas alturas e paz na Terra aos homens por Deus amados”(Lc 2,8-18). Chegam e se confirmou tudo o que lhes fora comunicado: aí está um menino, tiritando, enfaixado em panos e deitado na manjedoura, em companhia de animais.

Algum tempo depois, eis que vem descendo o caminho, três sábios do Oriente. Sabiam interpretar as estrelas. Chegam. Extasiam-se pela misteriosidade da situação. Identificam no menino aquele que iria sanar a existência humana ferida. Inclinam-se, reverentes, e deixam presentes simbólicos. Com o coração leve e maravilhados, tomam o caminho de volta, evitando a cidade de Jerusalém, pois aí reinava uma pessoa terrivelmente belicosa.

Lição: Deus entrou no mundo, na calada da noite, sem que ninguém o soubesse. Não há pompa nem glória, que imaginaríamos adequadas a um menino que é Deus. Mas preferiu vir fora da cidade, entre animais. Não constou na crônica da época, nem em Jerusalém, muito menos em Roma. No entanto, aí está Aquele que o universo estava gestando dentro de si há bilhões de anos, aquela “luz verdadeira que ilumina cada pessoa que vem a este mundo”(Jo 1,10).

Devemos respeitar e amar a forma como Deus quis entrar neste mundo: anônimo como anônimos são as grandes maiorias pobres e menosprezadas da humanidade. Quis começar lá embaixo para não deixar ninguém de fora. A situação humilhada e ofendida deles foi aquela que o próprio Deus quis fazer sua.

Mas há também sábios e homens estudiosos das estrelas do universo e que captam atrás das aparências o mistério de todas as coisas. Entrevem neste menino de corpinho tiritante, que molha os paninhos, choraminga e busca, faminto, o seio da mãe, o Sentido Supremo de nossa caminhada e do próprio universo. Para eles é também Natal.

É verdade o que se conta por aí: “Todo menino quer ser homem. Todo homem quer ser rei. Todo rei quer ser Deus. Só Deus quis ser menino”.

Esse é um lado alvissareiro: um raio de luz no meio da noite escura. Um pouco de luz tem mais direito que todas as trevas. Daí nos vem o salvamento, uma revolução dentro da evolução que, de forma antecipada, chegou à sua plenitude. Enfim…

Mas há o outro lado, sombrio e também trágico. Há um Herodes que se sente ameaçado em seu poder de soberano pela presença deste menino. José, atento, logo se dá conta: ele quer mandar matar o menino. Foge para o Egito com Maria e o menino ao colo que dorme, busca o seio e volta a dormir.

Herodes é sanguinário. Por segurança mandou matar todas as crianças de Belém e arredores de dois anos para baixo. Assim não escaparia o menino Jesus. Então se ouviu um dos lamentos mais comoventes de todas as Escrituras: ”Em Ramá se ouviu uma voz, muito choro e gemido: é Raquel que chora os filhos assassinados e não quer ser consolada porque os perdeu para sempre”(Mt 2,18).

Os Herodes se perpetuam na história. Entre nós temos um que não ama a vida, que zomba do vírus letal, que não se compadece das lágrimas e choros de milhares de famílias que perderam filhos, irmãos, parentes e amigos. Não se sentem consoladas enquanto não se fizer justiça. Nega proteção vacinal a crianças e a jovens entre 5 a 11 anos. Elas podem ser contaminadas, contaminar e até morrer. Não quer porque não quer, na contramão da ciência e dos países que estão vacinando suas crianças. Acostumou-se ao negacionismo, parecendo ter feito um pacto com o vírus. Ouvem-se vozes de pais e de avós, vindas de todos os lados: ”quero a vida de meus filhos e filhas; quero que os vacinem; quero que vacinem meus netos e netas”.

Como o faraó, endureceu seu coração e alimenta o propósito do Herodes do tempo do Menino. Mas haverá sempre uma estrela, como a de Belém, a iluminar nossos caminhos. Por mais perverso que seja o nosso Herodes não pode impedir que o sol nasça cada manhã nos trazendo esperança, aquele que foi chamado “O Sol da Esperança”.

Essa alegria é inaudita: a nossa humanidade, fraca e mortal, a partir do Natal começou a pertencer ao próprio Deus. Por isso algo nosso já foi eternizado pelo Divino Menino que nos garante que os Herodes da morte jamais triunfarão. Feliz Natal a todos com muita luz e discreta alegria.


por Leonardo Boff, Ecoteólogo, filósofo e escritor. Escreveu Ecologia: grito da Terra, grito dos pobres, Vozes 1995/2015; em espanhol por Trotta, Madrid 1996, Dabar, México 1996  |   Texto em português do Brasil

Fonte: Brasil247

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