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Quinta-feira, Março 28, 2024

O Admirável Mundo Novo de Boaventura

João de Almeida Santos
João de Almeida Santos
Director da Faculdade de Ciências Sociais, Educação e Administração e do Departamento de Ciência Política, Segurança e Relações Internacionais da ULHT

Acabo de ler uma longa entrevista de Giuliano Battiston, da Revista italiana RESET, a Boaventura de Sousa Santos (“Per salvarsi L’Europa deve andare a scuola dal resto del mondo”, 24.08.2017). Sou habitual frequentador desta Revista. Desde há muitos anos.Fui, por isso, lê-la com muito interesse, tratando-se, ainda por cima, de um amigo de longa data e de pessoa por quem tenho estima intelectual. Mas confesso que, infelizmente, acabei desiludido, pelo radicalismo algo aéreo e marciano de Boaventura. E já nem falo de perplexidades perante afirmações como a de que o PCP tem uma “base (“bacino”) eleitoral entre os 10% e os 13%”, quando é sabido que este partido, ainda que coligado, não ultrapassou, nas últimas duas décadas, uma média de cerca de 8%, ou a de que a Europa tem de aprender com o Uganda (com todo o respeito por este país africano e pela imensa beleza de África).

Mas, pelo contrário, fiquei feliz por saber que “estou orgulhoso da esquerda portuguesa e confesso que trabalhei muito para este resultado”. Não sabia, nem me lembro de o ter visto fazer uma defesa vigorosa da solução quando esta estava a ser duramente atacada pela direita. Mas, se o diz, acredito e fico feliz por isso. Como homem de esquerda, nem se compreenderia outra posição. Também eu defendi – e defendo -, com o vigor possível, a solução. De acordo, pois.

Neoliberalismo: o génio maligno!

Mas importante, importante é saber que Boaventura se bate politicamente (50% do seu tempo) por um novo mundo nos movimentos sociais, por esse mundo fora, a começar nesse santuário da esquerda que é o Forum Social Mundial, onde pontifica, embora, nesta entrevista, me pareça que ele vê o velho mundo de forma um pouco enviesada.

Acha ele que no mundo há uma espécie de génio maligno – identificado como neoliberalismo –, uma maléfica “longa manus” que tomou conta de nós e que acabou com a solução social-democrática ou mesmo com a democracia social, deixando os seus restos num vazio invólucro formal já incapaz de responder ao “fascismo social” que se instalou nas nossas sociedades. Acha, pois, que as democracias de matriz liberal, ainda que constituam regimes formalmente democráticos, só já sobrevivem nos escombros de relações sociais fascistas, do chamado “fascismo social”.

Não é coisa de pouca monta. Mas é isso que ele vê a partir do observatório privilegiado de Winsconsin-Madison, nos States. Também acha que, na União Europeia, o capital financeiro e o neoliberalismo, não conseguindo destruir caso a caso as sociais-democracias nacionais (porque nelas havia constituições,  partidos sociais-democratas e progressistas e sindicatos) decidiram fazê-lo através dos Tratados  da União, ou seja, de cima para baixo. Tratados neoliberais que conduziram a uma moeda neoliberal, o euro! Ou seja, a um neoliberalismo “de poche”, “tascabile” que todos nós, pobres pecadores, temos de utilizar, sob a forma de moeda, no nosso dia-a-dia.

Moeda neoliberal de que se perdeu o controlo, segundo Boaventura. Assim mesmo. Ou seja, na luta entre o “constitucionalismo nacional” e o “constitucionalismo global”, venceu este último, resolvendo assim a tensão entre capitalismo e democracia a favor do capital financeiro globalizado e dos neoliberais. O que acabaria por decidir o fim do contrato social.

Já temos que chegue nesta entrevista feita (em Coimbra) a um importante intelectual e político dessa esquerda mundial que se exprime nos movimentos sociais.

Retórica discursiva

E, todavia, desta entrevista não resulta uma análise realista das democracias ocidentais, um diagnóstico dos concretos problemas que afligem a União Europeia, como, por exemplo, o dos refugiados e da imigração ou os termos da solução proposta recentemente na Cimeira de Paris (França, Alemanha, Espanha e Itália) precisamente com base no documento italiano adoptado.

Nota-se, pelo contrário, uma leitura que prescinde da complexidade dos problemas, resolvendo-os com chavões de duvidosa eficácia científica: “fascismo social” (democracias formais em relações sociais de matriz fascista), democracias de “baixa intensidade”, pré- e pós-contratualismo, “democracia não hegemónica”, “demodiversidade”, “epistemologia do sul”, “ecologia dos conhecimentos” e outras fórmulas de eficaz retórica discursiva, mas de equívoca cientificidade.

O que resulta do discurso de Boaventura é uma visão de “nicho de mercado” discursivo que desvaloriza de forma surpreendente as conquistas que o mundo ocidental e a tradição greco-latina e iluminista conseguiram para a humanidade.

Uma visão que põe no centro do discurso a ideia do génio maligno (o capitalismo, o imperialismo, o capital financeiro globalizado, o neoliberalismo – embora a expressão usada, em italiano, seja a de “neoliberismo”, ainda mais radical) que tudo linearmente modela a seu bel-prazer, como se a história da humanidade resultasse de uma força volitiva directa, de uma mão oculta ou “longa manus” que mexe tenebrosamente os cordelinhos contra os povos. Uma visão que, além disso, parece querer restaurar uma concepção do mundo assente na ideia de que é nos sistemas de matriz comunitária que a verdade histórica se revela com maior intensidade, residindo no seu ventre o futuro risonho da humanidade.

Não duvido de que faça falta, na nossa civilização de matriz societária (moderna), essa componente. Mas, elevá-la a bússola, equivale, isso sim, a restaurar o pré-contratualismo em nome de um duvidoso e problemático pós-contratualismo. Sim, porque os avanços em matéria de comunicação, em vez de anularem o contrato social ainda o vieram tornar mais vivo, mais exigente e mais democrático.

Ou não é disso que se fala quando se fala de “democracia deliberativa”? Mas, ainda por cima, estas duas ideias (pré- e pós- contrato social) nem têm hoje grande sentido, quando sabemos que a democracia representativa, na verdade, ainda está, historicamente a dar os primeiros passos e que, se mudanças há a fazer, elas deverão estar inscritas na sua própria matriz de origem.

Constitucionalismo Global

Este conceito de Boaventura só teria sentido se se referisse, como o faz Wolfgang Streeck, no seu interessante e discutível “Gekaufte Zeit”, de 2013 (Berlin, Suhrkamp Verlag, 2013), à famosa nova “constituency” dos credores internacionais dos títulos de dívida pública que, segundo este Director do Max-Planck-Institut, se veio juntar à dos cidadãos dos Estados nacionais. Mas não creio que se trate disso

O “constitucionalismo global” de que fala identifica-se com as regras ditadas pelo capital financeiro globalizado, não em cima das constituições, mas nos programas de governo, como aconteceu recentemente em Portugal, com o resgate financeiro, não assumindo, por isso, dignidade constitucional. Ou, então, com os Tratados da União que, esses sim, ditam directamente leis – através dos chamados regulamentos – aos Estados Membros.

Mas a isso não poderemos chamar “constitucionalismo global”. Ainda são tratados, não constituições e muito menos globais. De “constitucionalismo global” poder-se-ia falar, isso sim, como defende Habermas, num ensaio sobre cidadania e identidade nacional, se ancorássemos a cidadania e o constitucionalismo democrático nas grandes cartas universais de direitos…

Na verdade, ficou-me, da entrevista, a ideia de que o modelo clássico de democracia representativa se esgotou (o conceito parece ser o de “demodiversidade” ou de democracias de “intensidade” variável), quando, de facto, historicamente, quase ainda nem começou (basta ver a história do sufrágio universal durante o século XX), sendo certo que é um regime de uma exigência absolutamente radical, uma vez que solicita a total emancipação do cidadão singular, adquirindo até uma dimensão que poderemos designar como utópica e, neste sentido, com força propulsora em direcção a uma democracia de alta intensidade.

O Castells diz, num artigo de 2012, que, graças à rede, e pela primeira vez na história da humanidade, será possível construir uma verdadeira “democracia de cidadãos” no interior da actual matriz representativa, onde, todavia, a centralidade deixou de ser dos partidos para passar a ser dos cidadãos. E eu concordo com ele.

Em síntese

Não me revejo, pois, neste discurso e não só porque é vago, na sua ambição de mundialidade, retórico e maniqueísta, mas também porque não reconhece as potencialidades que a civilização ocidental introduziu na história da humanidade, preferindo diminuí-la pelas suas promessas não cumpridas mais do que revitalizá-la naquilo que ela teve e tem de bom, no seu natural registo matricial, que é liberal e, depois, social-democrático, com a sua evolução para o chamado modelo social europeu.

O seu discurso sobre a União Europeia e os seus tratados são muito reveladores do simplismo da sua visão do processo de construção europeia e da própria democracia. Mas eu creio, todavia, que o “espírito das favelas” que alimentou, julgo, a sua tese de doutoramento em Yale (“Law against Law”) talvez tenha permanecido nele como marca de água, como um permanente apelo moral de que nunca se libertou e que o mantém saudavelmente atento à importância das culturas subalternas e dos “damnés de la terre”.

Mas, se assim for, eu convido-o fraternalmente a dedicar-se mais aos estudos de um António Gramsci que disso nos deu lições muito mais profundas do que a mera retórica conceptual para uso de radicalismos politicamente pouco produtivos, ainda que muito folclóricos. E Gramsci até é um autor muito popular e lido nos ambientes da esquerda latino-americana!

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