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Sexta-feira, Abril 26, 2024

O jihadismo e a ordem internacional

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.
  1. O princípio da soberania dos Estados

O recém-falecido Henry Kissinger é o autor que mais se notabilizou na formulação do conceito de uma nova ordem internacional instaurada pela paz de Westfália que teria instituído o princípio da soberania dos Estados.

Kissinger, como a generalidade dos alemães, dá uma grande importância à Paz de Westfália de 1648, dado que foi esta que pôs fim à que foi a guerra que mais devastou a Alemanha até à secunda guerra mundial, mas penso que essa atenção é desproporcional à importância internacional desse tratado, que de forma alguma pôs fim às sucessivas disputas de soberania entre os vários Estados do mundo.

O sistema de Westfália, quando muito, poderá ser visto como o período de afirmação de uma identidade alemã por via pacífica, mas fora do domínio do Sacro Império Romano-Germânico (que não era nem sagrado, nem romano, nem germânico, nem império, na famosa caracterização que dele fez Voltaire), a regra continuou a ser a mesma que tinha sido antes de 1648.

Todo o Leste da Europa sofreu nesse período da suposta ‘Paz de Westfália’ um período de expansionismo russo e, por exemplo, em Portugal foi a partir dessa data que se agudizaram os confrontos com Espanha que, justamente, não reconhecia a soberania portuguesa

Menos profícua ainda que a Paz de Westfália foi a conferência de Viena que se seguiu às invasões napoleónicas e, naturalmente, a paz de Versailles, foi aquela cujas consequências foram menos duradouras.

A ordem internacional em que ainda vivemos – e que se sucedeu à segunda guerra mundial – tão pouco se pode considerar como um exemplo de sucesso, como vemos todos os dias, e como, com a guerra fria, já tínhamos constatado no período anterior à dissolução da União Soviética.

Em qualquer caso, aquilo que se afirmou com o sistema encimado pelas Nações Unidas, e que já tinha sido tentado antes em Westfália, Viena ou Versalhes, foi um sistema baseado na soberania dos Estados. Esse sistema evoluiu rapidamente para uma leitura anticolonial desse princípio. Em qualquer caso, o princípio foi rompido pela guerra fria, ao abrigo da qual a interferência internacional, ou mesmo a invasão pura e dura no caso da União Soviética, se sobrepuseram a qualquer princípio de soberania.

O principal significado útil do sistema de Westfália terá sido apenas o de não reconhecer – num espaço de um mundo germânico alargado – legitimidade a princípios religiosos para pôr em causa a soberania dos Estados, o que não obstou à continuação de expansionismos pelos mais variados motivos, e às guerras religiosas noutros espaços, como aconteceu durante esse período em França.

Com a revolução francesa assistimos à legitimação da violação da soberania em função de uma nova legitimidade revolucionária, que Napoleão nunca definiu claramente, enquanto com o Nazismo a violação da soberania é feita de acordo com uma legitimidade baseada exclusivamente na força e na suposta necessidade vital.

A legitimidade revolucionária do bolchevismo tem uma base conceptualmente elaborada, como necessidade histórica, resultado da luta de classes, que passava pela legitimidade da revolução popular e por novos princípios sociais que regiam, nomeadamente, o direito da propriedade.

  1. O fim da história

O comunismo – entendido como um sistema que legitima a violação da soberania (e em geral das regras de um Estado de Direito) em função de um objectivo político universal – terminou com a queda da União Soviética. A Rússia de Putin não é menos imperialista que a União Soviética de Estaline, como a China de Xi não é menos imperialista do que a de Mao. No entanto, Putin, ao invadir a Ucrânia, como Xi ao ocupar o mar e ilhas dos seus vizinhos, ou Maduro a preparar-se para conquistar parte do território da Guiana, não o fazem em nome do comunismo, mas apenas em função de argumentos avulsos (onde não há sombra de marxismo) e da percepção do seu poder, tal como sempre aconteceu na história.

O comunismo, como ameaça geopolítica à ordem tradicional estabelecida, acabou, já não existe. Pode-se pensar o que se quiser quanto ao sistema ideal de propriedade, quanto à função do dinheiro ou ao papel da classe operária, mas a articulação desse pensamento com uma lógica imperial de dominação e contestação das soberanias nacionais já não se encontra em lado nenhum no xadrez internacional.

Putin, Xi, ou Maduro, podem utilizar as velhas redes de cumplicidades herdadas do bolchevismo para os seus fins, como de resto utilizam toda e qualquer rede de interesses ou cumplicidades que possam entender ser-lhes úteis, mas não há nada que possa ser entendido como decorrente do marxismo, leninismo, estalinismo ou maoísmo que sirva para justificar ideologicamente as suas expansões imperiais.

Aquilo que o Ocidente precisa de entender é que no estrito contexto do desafio do materialismo histórico e dialético, a célebre expressão de Fukuyama do ‘fim da história’ é verdadeira. Sim, a Rússia, a China e a Venezuela (entre outros) continuam a ser ameaças à paz mundial, mas por razões, lógicas, e contextos que nada têm a ver com o que foi o desafio comunista.

  1. O novo desafio jihadista

O novo jihadismo – que eu defini como tendo nascido do movimento pelo Califado de 1920 – vai recolocar no centro geopolítico a contestação ao princípio da soberania dos Estados com base na religião, como aconteceu inúmeras vezes no passado e, nomeadamente, na guerra dos trinta anos.

Com a Revolução Islâmica no Irão e a queda da União Soviética, o mundo assistiu ao afundar da legitimidade comunista e a sua substituição pela legitimidade religiosa do jihadismo como elemento ideológico central na contestação à ordem internacional vigente.

A ascensão do jihadismo faz-se no contexto de uma flagrante erosão da ordem internacional vigente. Nem a Rússia, nem a China nem mesmo a Venezuela (embora esta última esteja mais comprometida com ele) são jihadistas. Os planos imperiais destes países afirmam-se em modos semelhantes ao que sempre aconteceu na história.

Mas o jihadismo está completamente fora dos radares ocidentais que não entendem nada do desafio que este coloca. O jihadismo usa o terrorismo, mas não se limita nem se confunde com o terrorismo; o jihadismo tem no Irão a sua materialização geopolítica mais forte, mas não se reduz a este Estado; o jihadismo penetrou profundamente nas superestruturas ocidentais, na educação, na informação, na política ou nos negócios e encontrou no wokismo a sua principal porta de entrada no Ocidente. Nestes domínios, foi mais longe do que alguma vez foi o bolchevismo em qualquer das suas variantes.

O jihadismo é um movimento imperial que se assume ideologicamente pelo islamismo, de forma não muito diferente ao que já aconteceu com o cristianismo, em tempos longínquos. O jihadismo assenta em redes, sendo as principais a do xiismo iraniano e a da irmandade muçulmana, que têm algo em comum com o que foi o Komintern, mas que lhe são incomparáveis em plasticidade, e dele divergem no seu profundo reaccionarismo.

A força do jihadismo não se mede em mísseis, porta-aviões ou ogivas, embora ela passe também por aí: mede-se na sua capacidade de infiltração de captura e de dissolução do que são os princípios humanitários que regem a sociedade em que vivemos.

O pogrom de 7 de outubro provou como é urgente entendermos a importância da ameaça jihadista, mas a mensagem, embora não pudesse ter sido mais clara, continua a não ser entendida pela generalidade das elites ocidentais.

Se esse entendimento não for feito pela cabeça, sê-lo-á pelos factos que nos irão entrar porta-dentro.

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