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João de Sousa

Terça-feira, Dezembro 10, 2024

O Jihadismo iraniano e a desumanização ocidental

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

A presunção do direito de inocência e a robusta preservação dos direitos de defesa são pilares fundamentais das sociedades humanistas. Posto isto, quando as defesas só funcionam para quem tem meios e mediante o investimento de somas avultadas em mecanismos processuais, o resultado é que o pobre fica sem qualquer defesa e o rico dificilmente é condenado, mesmo se claramente culpado.

Obviamente que isto nada tem a ver com justiça ou humanismo e, pelo contrário, trata-se da consagração de uma sociedade desigual com pesos e medidas à proporção do dinheiro e influência de cada um, mesmo que os causídicos gritem mil vezes por princípios gerais humanitários argumentando os seus casos.

Temos agora a mesma situação nos direitos humanos, com enormes responsabilidades por parte da comunidade que navega entre as instituições internacionais, governamentais ou não, o mundo da informação e desinformação e o mundo da advocacia, onde frequentemente se cobram somas chorudas que resultam inteiramente do quadro feito pelas instituições internacionais e vendido pelas empresas de comunicação.

O problema tornou-se agudo com ‘Guantánamo’. Guantánamo é chocante, mas fundamentalmente por razões bastante diversas das que nos foram apresentadas. A ideia de instaurar um sistema de justiça paralelo ao sistema americano na sequência do 11 de Setembro surgiu da constatação pelos dirigentes políticos de que os responsáveis pelo crime nunca seriam condenados porque teriam forma de movimentar o necessário dinheiro e influência para obstar a que isso acontecesse, e porque o sistema de justiça americano é incapaz de lidar com crimes da envergadura e complexidade dos envolvidos no atentado.

Ou seja, Guantánamo surge como confissão da incapacidade dos sistemas de justiça ocidentais para fazer justiça no mundo global em que vivemos e como manifestação de que não há vontade política de mudar este estado de coisas. Paralelamente a Guantánamo, existiram aliás imensas prisões em países que não são Estados de direito – incluindo mesmo a Líbia de Khadafi – para onde foram conduzidos pelo Ocidente suspeitos de acções ou cumplicidade terroristas.

O campo de detenção de Guantánamo, nos Estado Unidos. Foto: Wikicommons/Mate 1st Class Shane T. McCoy (Creative Commons)

Muito pior do que isso, o problema é que o Ocidente – muito em particular o Reino Unido e os EUA – resolveram invadir o Iraque, contra o que o relatório nacional da Comissão do 11 de Setembro expressamente recomendou – entregando-o às mãos das milícias de Qasam Soleimani, o maior terrorista e assassino da época contemporânea, e foram essas milícias que, à sombra da política de apaziguamento ocidental com o Jiihadismo iraniano e a coberto de pretensa luta antiterrorista, cometeram a maior parte dos crimes contra a humanidade no Iraque.

O Conselho Nacional da Resistência Iraniana, por altura da morte de Soleimani fez uma pequena compilação dos crimes que este promoveu contra os resistentes iranianos no estrangeiro onde avulta o facto de, mesmo antes da invasão, este ser já responsável por um número impressionante de atentados terroristas no Iraque com inúmeras vítimas.

Eu fui pessoalmente testemunha da forma macabra como Soleimani utilizou o terrorismo para assassinar os seus opositores.

Mas o mais impressionante com Guantánamo, é que na mesma altura em que essa prisão foi massivamente utilizada, Soleimani e os seus cúmplices nas milícias e no ‘Estado iraquiano’ instalaram um sistema de dezenas de prisões clandestinas onde se dedicavam, entre outras coisas, ao rapto e extorsão de quem quer que não fosse alinhado com eles e que pudesse ter alguns meios. Eu, pessoalmente, ainda enquanto parlamentar europeu, conduzi várias diligências para conseguir a libertação de vítimas do sistema por quem o mundo institucional não fez o que quer que fosse.

A realidade é que enquanto em Guantánamo se encontravam vários jihadistas vindos de famílias ricas que pagaram indirectamente toda campanha feita sobre Guantánamo, nomeadamente os mesmos advogados ou as suas famílias que vamos encontrar em ONG ‘humanitárias’, os muitos milhares de iraquianos vítimas da máquina jihadista não tiveram meios para se fazer ouvir.

É isto justiça e direitos humanos ou um abjecto reino da corrupção universal?

É óbvio que em Guantánamo houve gente presa injustamente e outra que deveria ter sido decentemente julgada e obrigada a pagar pelos seus crimes, mas ter-se reduzido todo o problema dos abusos feitos em nome da luta antiterrorista a Guantánamo é uma atroz caricatura da realidade e apenas se explica pelos inconfessáveis negócios feitos à sua conta.

E recusar julgar os nacionais europeus suspeitos de jihadismo que se encontram em prisões sírias ou iraquianas, sujeitos a sistemas judiciais mais do que duvidosos, como se faz agora? É melhor do que Guantánamo?

Mas os ‘defensores’ de direitos humanos que nunca exigiram que Soleimani e os seus cúmplices iraquianos fossem postos perante a justiça, que nunca se sentiram particularmente incomodados com os milhares de assassinatos dirigidos contra pelos EUA em todo o Médio Oriente, com critérios muito menos claros do que os utilizados contra Soleimani, que acima de tudo nunca questionaram o Ocidente pelo seu principal atentado contra os direitos humanos, que foi o de fechar os olhos aos crimes do jihadismo iraniano, vieram exigir a perseguição pela justiça internacional dos autores do assassinato de Soleimani.

Poder-se-á argumentar com a ignorância, mas não será que temos aqui uma opção pela ignorância?

A multiplicação de disparates de todo o género, a difusão das invenções grosseiras dos serviços de desinformação iraniana, o ridículo alerta contra a terceira guerra mundial quando se deu um passo contra a guerra que já custou a vida a centenas de milhares de pessoas, culminando agora com a avalização de todas as ignóbeis mentiras na sequência do abate por míssil de um avião civil carregado de passageiros é a prova de que a psicopatia do apaziguamento, a síndroma de Estocolmo que tomou conta de boa parte do Ocidente, marcam a sua profunda desumanização.


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