Diário
Director

Independente
João de Sousa

Sexta-feira, Março 29, 2024

Os paradoxos do comércio de armas

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

Sem tradição aeronáutica, sem capacidade humana para usar uma tão grande e sofisticada frota, o Qatar distribuiu as suas compras entre a França, o Reino Unido e os EUA, desafiando também aqui o mais elementar bom senso que aconselha a especialização num único fornecedor para poupar custos de treino e adaptação do pessoal e de gestão de material.

  1. Os negócios do Qatar

O Economist de 1 de Março dedica um interessante artigo às compras de aviões militares pelo Qatar – quase uma centena desde Junho de 2017 – bem como por outros países do Golfo. O pequeno país de menos de 300.000 cidadãos e o mais rico do mundo tinha-se já feito notabilizar pelas comissões que paga a políticos, a promoção que faz de equipas desportivas, luvas para ser nomeado para sede de campeonatos e vários negócios de duvidosa rentabilidade financeira, e passou agora a ser também campeão das compras militares.

Sem tradição aeronáutica, sem capacidade humana para usar uma tão grande e sofisticada frota, o Qatar distribuiu as suas compras entre a França, o Reino Unido e os EUA, desafiando também aqui o mais elementar bom senso que aconselha a especialização num único fornecedor para poupar custos de treino e adaptação do pessoal e de gestão de material.

Como o “Econonomist” faz notar, as volumosas e dispendiosas compras do Qatar não parecem ter qualquer ligação com a utilização dos aviões em operações de combate, mas têm apenas como objectivo comprar a boa vontade dos três membros ocidentais do Conselho de Segurança das Nações Unidas para que estes os protejam das ameaças dos seus vizinhos árabes do Golfo que parecem estar fartos do apoio do Qatar ao terrorismo e outras actividades de desestabilização, protagonizados pela Irmandade Muçulmana e outros grupos islamistas da sua órbita que têm sede no Qatar.

E o mais interessante do negócio, é que ele atingiu plenamente os seus objectivos, com o trio de países ocidentais a defender o Qatar, ignorando ostensivamente a vasta evidência que sustenta as acusações feitas ao Qatar pelos seus vizinhos árabes.

O Qatar é a terra de acolhimento do principal guia espiritual presente da Irmandade Muçulmana, o egípcio Yusuf al-Qaradawi, condenado a prisão perpétua no seu país de origem por incitamento ao terrorismo. Este, através da principal cadeia informativa da Irmandade Muçulmana, a “Al Jazeera” apela regularmente à Jihad contra o Ocidente e os países árabes “apóstatas”.

O Qatar apoia mais ou menos abertamente não só a Irmandade Muçulmana e as organizações suas filiadas que promovem o terrorismo por todo o lado como também a generalidade das outras organizações jihadistas, com a possível excepção do ISIS. Depois do Irão, o Qatar tem desempenhado o papel de principal centro da propaganda e do financiamento do jihadismo através do mundo.

E assim, os três países ocidentais militarmente mais importantes, qualquer deles alvo privilegiado de ataques jihadistas e com vastas operações militares contra grupos jihadistas, protege um dos principais centros propagandísticos e financeiros deste mesmo jihadismo, e isto para proteger a sua indústria de defesa que deveria servir, exactamente, para os defender do que assim protegem…

  1. Do absurdo burocrático e cupidez humana à teoria da conspiração

Estou em crer que para entendermos isto temos de ter em conta a lógica do funcionalismo, ou se quisermos, do mandarinato, a mais antiga, completa e complexa tradição corporativa de funcionalismo, bem como a insaciabilidade da cupidez humana, incapaz de resistir à febre do ouro, mesmo que seja para se entregar nas mãos dos seus inimigos (a tradicional venda da alma ao diabo).

Entregar a guerra aos generais, é como entregar a banca aos banqueiros ou a economia aos economistas. Num exemplo mais prosaico, é como remeter a elaboração do código da estrada ao sindicato dos profissionais da estrada. Em todos os casos, há a necessidade absoluta de ter um sistema de equilíbrios e controlos que não deixe a nenhuma corporação ou interesse o direito exclusivo de decidir em matéria da sua especialidade mas de interesse geral, e que contenha a insaciável voracidade humana pelo dinheiro.

Para além dos óbvios incentivos financeiros e publicitários às elites políticas, financeiras e empresariais ocidentais para fechar os olhos aos problemas e ficar mesmerizado pelos lucros oferecidos pelo Qatar, há também o ângulo ideológico da questão, que neste negócio poderá não ter sido importante.

Em situações como estas, é fácil ao comum dos cidadãos ver aqui a prova clara de uma conspiração. Se o Qatar apoia o jihadismo e o Ocidente apoia o Qatar, não quererá isso dizer que na verdade o Ocidente apoia o jihadismo fingindo o inverso, e que tudo se compreende apenas como sendo uma conspiração?

E, claro, se a conspiração é plausível, e se interessa a actores geopolíticos globais contribuir o mais possível para o descrédito ocidental, temos todos os ingredientes necessários para vermos poderosas agências de desinformação como as iranianas ou russas alimentar essas teorias da conspiração.

Foi isto mesmo que foi feito com base na relação entre o Qatar e o Ocidente quando da deposição do ditador líbio. Tanto a Rússia como o Irão não alimentam hoje essa teoria da conspiração, que tem mais elementos verdadeiros do que qualquer outra, porque os seus principais actores ocidentais já saíram de cena (Obama e Clinton nos EUA, Sarkozy em França e Cameron no Reino Unido) e porque a Irmandade Muçulmana e o Qatar são hoje seus aliados.

As teorias da conspiração preferidas pelos aparelhos de desinformação iranianos e russos são hoje mais fantasiosas, mas geopoliticamente mais interessantes, e apontam para uma conivência entre o ISIS, a Arábia Saudita e o Ocidente (especialmente os EUA).

Em qualquer caso, o que me parece mais relevante destes negócios de armas com o Qatar, é que estamos perante uma ausência de verdadeira política de defesa, aquilo que deveria ser um seu instrumento – o avião de combate – torna-se num instrumento de negócios privados que atentam ao interesse público na área da defesa. E isto acontece porque o mais fundamental dos instrumentos de defesa – uma ordem moral clara, forte e consistente – está em plena decadência.

  1. A corrosão moral do Ocidente

Olhar para a facilidade com que o Ocidente fecha os olhos à evidente participação do Qatar na doutrinação, preparação e financiamento de acções anti-ocidentais – incluindo armadas – é mais de meio caminho andado para entender a facilidade com que o Ocidente tolerou e tolera o crescimento de regimes ditatoriais que directamente o ameaçam, como o da República Islâmica ou da Coreia do Norte, e a bonomia com que encara ditaduras como a russa ou a turca, apesar das ameaças que estas representam.

A realidade do nosso mundo globalizado é que não há regime ditatorial que não constitua a prazo mais ou menos longo uma ameaça à liberdade de todos nós, mesmo que aparentemente os seus actos inumanos não nos afectem aqui e agora.

E isto porque não existe ordem no mundo que prescinda de uma ordem moral, mesmo que essa ordem moral seja discutível, como qualquer ordem moral o é.

É sobre essa ordem moral que temos de concentrar as nossas atenções.

Receba a nossa newsletter

Contorne o cinzentismo dominante subscrevendo a nossa Newsletter. Oferecemos-lhe ângulos de visão e análise que não encontrará disponíveis na imprensa mainstream.

- Publicidade -

Outros artigos

- Publicidade -

Últimas notícias

Exit Costa

E agora Marcelo?

Governo Sombra?

A Lava Jato e seu epitáfio

Mais lidos

Exit Costa

E agora Marcelo?

Mentores espirituais

Auto-retrato, Pablo Picasso

- Publicidade -