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Quinta-feira, Abril 25, 2024

Portugal adere à Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA)

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

Na sua reunião plenária da semana passada, Portugal passou a integrar como membro de pleno direito a ‘Aliança Internacional para a Memória do Holocausto’ (IHRA, no acrónimo em língua inglesa), organização internacional lançada em 1998 na Suécia.

  1. A declaração de Estocolmo

Na sua reunião plenária da semana passada, Portugal passou a integrar como membro de pleno direito a ‘Aliança Internacional para a Memória do Holocausto’ (IHRA, no acrónimo em língua inglesa), organização internacional lançada em 1998 na Suécia. Na União Europeia, Portugal foi quase o último país a tornar-se membro (faltam apenas as pequenas ilhas/Estados de Malta e Chipre) o que mostra a pouca atenção dada ao tema no nosso país.

Esta organização Internacional – que já foi presidida pelo canadiano nascido nos Açores, Mário Silva – tem como documento fundamental a ‘declaração de Estocolmo’ que proclama o carácter excepcional do holocausto, no qual o assassínio de milhões de judeus foi metodicamente planeado e executado pelos Nazis, mas se assume também como um instrumento de combate a todo o genocídio, limpeza étnica, racismo, antissemitismo e xenofobia.

Esta adesão é portanto algo que espero contribua para colocar o nosso país no lugar que lhe cabe no concerto das nações que prezam os valores humanistas. A adesão de Portugal mereceu um comunicado das autoridades israelitas, e foi uma das razões que levou o Primeiro-ministro de Israel a encontrar-se com o seu homólogo português, mas não consta ainda da página da delegação portuguesa ao IHRA.

Tão ou mais importante será a adesão de Portugal à definição de antissemitismo da IHRA, adesão noticiada já na imprensa de Israel mas que não parece ter ainda acontecido e não consta da lista de países que o fez publicada pela IHRA, onde constam por enquanto apenas metade dos países da União Europeia, incluindo os mais populosos.

Essa adesão é importante porque o antissemitismo moderno tende a pintar-se de vermelho, descontextualiza e banaliza a violência e tenta mesmo inverter os termos dos factos, e isso é particularmente assim em países como Portugal.


Göran Persson with world leaders at the International Stockholm Forum on the Holocaust in January 2000. IHRA

  1. Hitler e o antissemitismo

Na questão do holocausto creio que é fundamental começar por situar a sua natureza extraordinária. Ela é fora do vulgar pela sua dimensão, pela lógica industrial onde foram utilizados os mais sofisticados meios técnicos e organizativos para a levar a cabo e ainda pela monstruosa campanha de desinformação para negar a sua existência.

Desse ponto de vista, mesmo comparando com as limpezas étnicas levadas a cabo de forma sistemática em países como Portugal no século XVI (época onde os padrões humanos eram outros) é de salientar quatro diferenças flagrantes, a primeira é a de que a matança se circunscreveu a motins populares, não foi organizada metodicamente pelo Estado, a segunda é a de que se deu a expulsão e não o extermínio, a terceira é a de que foi dada a opção da conversão e a quarta é a que, malgrado todas as barbaridades, sobreviveu entre nós uma comunidade marrana.

Posto isto, o holocausto foi só a mais extrema, desumana e bárbara manifestação de xenofobia jamais registada na história, mas ela tem a sua raiz nessa mesma xenofobia e nesse sentido, o holocausto inscreve-se na longa e trágica história da xenofobia da humanidade.

A generalidade dos analistas presentes tende a descrever a xenofobia antissemítica contemporânea como diferente da de Hitler por esta última ser de ‘extrema-direita’ e a primeira ser de ‘extrema-esquerda’.

Creio que é uma abordagem que tende mais a confundir do que a clarificar a questão com uso de conceitos que em vez de nos permitir compreender melhor a realidade a obscurecem.

Esquerda e direita são conceitos inerentes à democracia – em democracia, há sempre lugar para olhar a realidade de forma diferente – e o carácter ‘extremo’ aplica-se ao posicionamento no debate democrático. Em sistema totalitário estas noções não fazem sentido.

A extrema-direita de Hitler tornou-se o centro político alemão por ter lançado fogo ao parlamento, preso, morto ou torturado os seus opositores (não esqueçamos que os campos de concentração foram usados para os opositores antes de serem usados para os judeus), mas também por ter conseguido responder aos anseios populares de pleno emprego e de ultrapassar a humilhação de Versalhes.

Para demonizar os judeus, o principal instrumento usado por Hitler foi o de os identificar com a plutocracia financeira responsável pela catástrofe económica que reduziu milhões de trabalhadores à miséria. Ele aqui não inventou nada, limitou-se a subscrever as teses populares na extrema-esquerda que diziam isso mesmo. Hobson, um dos mais reverenciados autores para a construção da tese de Lenine sobre o imperialismo (e homenageado contemporaneamente por Corbyn) constrói o aparelho discursivo depois usado por Hitler.

E se olharmos atentamente para a propaganda contemporânea da extrema-esquerda parlamentar (a começar pela portuguesa) a aproximação é a mesma: o sionismo é o instrumento do capital financeiro (nomeadamente americano). Isto é a essência do antissemitismo, não o é da extrema-direita ou da extrema-esquerda.

O segundo grande argumento de Hitler foi o pseudo-panarabismo (que termina tão depressa quanto deixe de ter interesse para diabolizar os judeus). Os judeus seriam invasores da Palestina, expulsam os seus habitantes, coartam-lhes os seus direitos, matam as suas crianças. Basta comparar os textos dos Nazis com os dos pseudo-panarabistas antissemitas contemporâneos para ver a mesma distorção da realidade e o mesmo ódio racial.

De passagem, isto serve-nos também para descobrir a falsa noção de racismo que os antissemitas contemporâneos nos querem vender. Quem olhar atentamente para o mufti de Jerusalém, por exemplo, nas suas imensas fotografias de confraternização com Hitler e os Nazis, e abstrair a sua indumentária clerical, não o consegue distinguir racialmente de qualquer judeu.

E isto é assim porque o racismo não tem necessariamente que ver com a cor da pele ou a forma do nariz (mesmo se isto possa ser usado nas caricaturas xenófobas) mas com a estigmatização que se pode dever a isso ou a uma multitude de outros factores: tal como Hitler faz de herói e confraterniza sem qualquer problema racial com um árabe, também os antissemitas contemporâneos o fazem e não são por isso menos racistas do que Hitler.

O terceiro argumento utilizado pelos antissemitas contemporâneos é o de que há judeus prontos a denunciar os outros que não se submetem e a negar que o ódio a Israel seja antissemita. Basta olhar com o mínimo de atenção para a política de desinformação de Hitler para ver exactamente a mesma coisa, simbolizado talvez na orquestra judaica de Terezin usada até ao fim da segunda guerra para mostrar à comunidade internacional como essas reclamações de holocausto eram inventadas.

  1. O antissemitismo contemporâneo

Nos últimos oitenta anos é claro que muita coisa mudou ou se adaptou à mudança, e o antissemitismo não é excepção. A sua essência no entanto não mudou, e os rótulos de ‘extrema-esquerda’ ou de ‘extrema-direita’ não têm qualquer utilidade para entender a sua realidade, prestando-se pelo contrário à manipulação dos vários quadrantes parlamentares, que ontem utilizavam o nazismo, o fascismo ou o antissemitismo para proscrever todos os que se apresentam à direita, e hoje tendem a fazer o mesmo com o socialismo ou a extrema-esquerda, utilizada para proscrever todo esse quadrante político como necessariamente proto-fascista e antissemita.

A pedra angular de qualquer política que queira terminar com o antissemitismo é a de proscrever a desinformação reinante na matéria, nomeadamente a que esconde a sua lógica Nazi atrás de um pretenso pan-arabismo.

Para entender isto, nada melhor do que comparar o tratamento pela imprensa ocidental da forma como o fascismo clerical iraniano e o Estado de Israel tratam o mundo árabe.

O Irão que conquistou pela força o Arabistão nos anos trinta do século passado e que discrimina de forma brutal os seus cidadãos árabes, é responsável da morte pela fome de grande parte da população do Iémen imposta pela sua sucursal Ansar Allah (conhecida como Houti); pela maior matança árabe contemporânea (Síria) e pela colonização do Líbano e do Iraque, países que agora se revoltam contra os guardas revolucionários. Só na Síria, terão morto milhares de refugiados árabes oriundos da Palestina.

No entanto, os antissemitas que atacam todos os dias da semana Israel pelos seus pretensos crimes na Palestina nem uma vírgula dizem sobre esta realidade. Isto é puro antissemitismo. Enquanto isso não for assim entendido e tratado como tal, não estaremos mais perto de combater eficazmente o antissemitismo.


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