Manipular o ser humano, individual e colectivamente, é bem mais fácil do que se possa supor. Mesmo aqueles que se esticam e gesticulam e que em bicos de pés e olhos em bico declaram em voz alta “a mim ninguém engana!”, vêm a revelar-se pequenos elementos estafados no grande jogo de encaixe de alguns interesses que precisam deles.
Vejam o século XXI, tão parecido com o período mais negro e desorientado da Idade Média, onde a religião aparece no vocabulário para servir de capa aos interesses dos manipuladores.
Quem tiver algum bom senso e procurar alguma resposta na cultura verá facilmente como assistimos a uma ficção bem montada.
Para comprar e vender petróleo e animar o mercado, em especial o mercado negro, armou-se militarmente um grupo internacional de arruaceiros, imbecis, uns, e pouco mais do que imbecis, os restantes, adornou-se o mesmo grupo com fardas novas e artilharia de topo, deu-se-lhes um vocabulário ao jeito de uma ideologia e motivação: vai lá e mata em nome desta religião – como se isso fosse possível. Mata-se por interesse – ou por acidente. Nunca por aquilo que nos dignifica.
É um tempo de barbárie, da falta de cultura, do delito comum e do crime organizado ao mais alto nível. Não é o tempo da religião, que essa serve para acrescentar o homem e não para o limitar.
O fenómeno religioso é fascinante. Essa forma inexplicável que o ser humano arranjou para explicar o inexplicável, dá-lhe, entre outros atributos do humano, uma elevação, uma dignidade ímpares. Ser mais do que matéria – ser o próprio espiritual. É por isso que as sangrentas manifestações ruinosas dos extremistas que dizem agir em nome da religião não passam de um equívoco. Areia do deserto deitada nos olhos das civilizações. E o que mostram ser a sua oração, é apenas o cumprimento de interesses muito grandes acima da sua compreensão.
Søren Kierkegaard escreveu um dia que a oração não muda Deus, mas muda aquele que ora. É uma afirmação que consagra um preenchimento surpreendente. O crente como ser mutante, mutável pela incursão do adquirido, isto é, construindo o seu espaço interior não tanto pelo entendimento daquilo que o possa transformar, mas pela diferenciação provocada pelo que recita e interioriza.
Porque orar é um rogo, um pedido e não uma aquisição. Mas um pedido convencionado e repetido, uma fórmula de auto estimulação, um caminhar em direcção à solidão e ao silêncio, para que o que há dentro de cada um se eleve ou pelo menos pacifique o que a insegurança lhe traz agitado.
Rezar é estar em si – com a conivência do divino, com a proximidade ao que nos transcende, ou simplesmente, na autoescopia do que nos entenda multi-sensorialmente, connosco e fora de nós, aprendendo-nos e apreendendo-nos.
O que há de sagaz em Kierkgaard – que nas contradições dos académicos tem sido classificado das mais variadas maneiras, como existencialista, neo-ortodoxo, pós-modernista, humanista e individualista – é que a vertente psicológica do que pensa e escreve explora as emoções e sentimentos dos indivíduos quando confrontados com as escolhas que a vida oferece. Isto é, o ser humano não é desenraizado do ser humano sentimental, o ser humano não é um número estatístico e operacional desligado dos afectos que produz e que o definem. Por mais materialista ou frio, o ser humano releva do que nele há de sentimento. E sentir é mais do que o estremecimento nervoso do que contactamos à pele.
Cada um de nós espelha em si mesmo todo o universo. Somos a poeira que ao todos não faz grande diferença, embora o todo seja o mosaico de todas as poeiras. É uma contradição. Somos nós.
A radiografia do homem do século XXI revela um interior magoado e as fracturas dos afectos. Só um novo projecto para o homem, restaurador de valores, inovador, de um novo humanismo, estabelecerá novos princípios.
Não se trata de uma perseguição aos deuses ou mesmo uma celebração dos mesmos, embora os fundamentalismos de todos nós sobressaiam e nos conduzam a essa errada suposição. Trata-se de orar pelo homem (ou uma coisa muito parecida), pedindo-lhe o ato público de uma nova moralidade, capaz de amar-se só e logo a seguir ser no Outro como um todo. É que estamos muito impreparados para ser.
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