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Sábado, Maio 24, 2025

Revisitando: A Eleição de Deputados à Assembleia da República

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

Em 2 de Janeiro de 2019 publiquei no Jornal Tornado em artigo intitulado “A eleição dos deputados à Assembleia da República”.

Desde aí realizaram-se quatro eleições para a Assembleia – em 2019, em 2022, 2024 e 2025, sendo as três últimas antecipadas, porque o Presidente da República entendeu dissolver a Assembleia.

Inicialmente as críticas ao sistema eleitoral prendiam-se sobretudo com a necessidade de aproximar eleitos e eleitores, uma vez que alegadamente estes acabariam por não conhecer bem os deputados eleitos, mas também porque dada a diferente dimensão dos círculos, nos círculos mais pequenos muitos votos seriam “perdidos”.

Ao contrário do que tenho visto por aí escrito, o sistema pelo qual se vota actualmente não veio do século XIX – no início do Estado Novo, mais concretamente entre 1934 em 1945 os deputados foram eleitos em círculo único nacional e de facto era a União Nacional que apresentava as listas, e foi a partir de 1945, quando Salazar anunciou “eleições livres, tão livres como na livre Inglaterra” que se começaram a utilizar círculos distritais. Simultâneamente o Governo, que dependia apenas na confiança do Presidente da República viu reforçada a sua capacidade de legislar por Decreto-Lei inaugurando uma tradição que se manteve em larga medida após a aprovação da Constituição de 1976. Mas a hipótese de que as oposições ganhassem as eleições gerais ou mesmo as eleições num ou noutro distrito, foi sempre meramente teórica.

As eleições para a Assembleia Constituinte de 1975 com base em diploma preparado por Governo Provisório fizeram-se por sistema proporcional mas com o Continente organizado em círculos distritais, quando, salvo o caso dos Açores e da Madeira se deveriam também ter feito por círculo nacional, o que deveria ter permitido a representação de um maior número de partidos.

No entanto a Constituição acabou por ser aprovada por uma Assembleia baseada numa representação desnecessariamente distorcida. Ficou consagrado que a futura Assembleia da República seria eleita pelo sistema proporcional e sem exigência de uma percentagem mínima para a conversão de votos em mandatos. Mas embora a mesma Constituição permitisse a instituição de regiões administrativas e determinasse a extinção dos distritos, que apenas subsistiriam como “autarquia provisória” a delimitação dos círculos eleitorais passou a basear-se … nos distritos. O aumento da população com capacidade eleitoral, e a progressiva perda de peso do interior, tem dado origem à redução do número de deputados eleitos por alguns distritos, em detrimento de outros. E de eleição para eleição repetem-se os dizeres sobre o número de votos “perdidos”, isto é, os que não elegem nenhum deputado.

O problema não é, tenho insistido, do método de Hondt, é da delimitação dos círculos eleitorais.

Foi entretanto a Constituição revista para prever tanto a existência de círculos uninominais como de um círculo nacional (usualmente referido como de compensação) mas mantendo a referência à possibilidade de existência de círculos plurinominais.

Artigo 149.º

(Círculos eleitorais)

1. Os Deputados são eleitos por círculos eleitorais geograficamente definidos na lei, a qual pode determinar a existência de círculos plurinominais e uninominais, bem como a respectiva natureza e complementaridade, por forma a assegurar o sistema de representação proporcional e o método da média mais alta de Hondt na conversão dos votos em número de mandatos.

2. O número de Deputados por cada círculo plurinominal do território nacional, exceptuando o círculo nacional, quando exista, é proporcional ao número de cidadãos eleitores nele inscritos.

Apresentava-se na altura como desejável o modelo alemão, mas há diferenças sensíveis a considerar

  • na Alemanha, até recente revisão da lei, podiam ser criados no Bundestag tantos lugares quantos fossem necessários para garantir a proporcionalidade(i) enquanto que em Portugal o número de lugares da Assembleia da República é fixo;-
  • com o fim do bipartidarismo anunciado por André Ventura se três grandes forças eleitorais disputassem os círculos uninominais seria impossível garantir um círculo nacional de compensação adequado a todos os cenários.

Nestas condições, julgo que seria desejável que ao número de deputados que a lei eleitoral viesse a fixar (entre os 180 a 230 admitidos pela CRP) se retirassem os 4 deputados tradicionalmente atribuídos aos dois círculos da emigração(ii), cujos lugares seriam preenchidos como habitualmente, sendo dos restantes:

  • metade atribuída a círculos regionais plurinominais, correspondentes às Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira e, no continente, às NUTS 2, ou até às NUTS 3 de acordo com o respectivo número de eleitores;
  • a outra metade reservada ao círculo nacional de compensação.

tendo cada candidato de se apresentar simultaneamente num círculo regional plurinominal e no círculo nacional.

NUTS II – Norte, Centro, Lisboa(iii), Alentejo, Algarve, Açores e Madeira
(fonte: Apontamentos Na Net)

Todavia, os lugares que viessem a ser atribuídos no círculo nacional de compensação aos partidos / coligações seriam preenchidos pelos candidatos de cada um deles não eleitos nos círculos regionais plurinominais, por ordem que reflectisse a percentagem de votos alcançada em cada círculo e não pela dimensão, em termos absolutos, do número de votos perdidos nos círculos regionais, a qual seria relevante para o computo do número de lugares a atribuir no círculo nacional de compensação ao partido / coligação mas não para a indicação dos candidatos que seriam providos nesses lugares.

Deste modo:

  • os partidos / coligações que normalmente elegem deputados teriam de apresentar nos diferentes círculos regionais plurinominais candidatos que fossem conhecidos no âmbito geográfico do círculo e a quem os eleitores soubessem como pedir contas;
  • os partidos / coligações que se soubessem menos implantados teriam mesmo assim de lutar para maximizar os seus resultados em cada círculo, pois esses resultados, em termos relativos, iriam determinar quem ocuparia os lugares na Assembleia e não deixariam de exigir que, embora não formalmente eleitos pelo círculo regional, os candidatos “repescados” através do círculo nacional mantivessem ligações com os eleitores do seu círculo regional;
  • no caso de os círculos regionais no continente corresponderem às NUTS 3 o conhecimento dos deputados pelos eleitores seria maximizado, e alcançar-se-ia uma “representação do território” (por deputados de vários partidos, eleitos directamente no círculo ou pela atribuição de mandatos pelo círculo nacional), mais intensa sem se cair em engenharias de delimitação do território do continente para fins meramente eleitorais;

NUTS III (anterior a 2015 e composto por trinta sub-regiões) e NUTS III (em vigor desde 2015 e composto por vinte e cinco sub-regiões)
(fonte: Apontamentos Na Net)

  • criar-se-ia uma dinâmica de recomposição da estrutura partidária, reduzindo o peso das distritais, ou levando mesmo à sua implosão, enquanto que no cenário da criação de círculos uninominais subdistritais, concelhios ou até subconcelhios, o seu peso cresceria avassaladoramente.

Esta última consequência não deixaria ser particularmente interessante.

O leitor poderá confrontar, com algum proveito, a versão “revisitada” deste artigo com a versão original de Janeiro de 2019.

A concluir não quero deixar de chamar a atenção, em termos de prejuízos sofridos por agora pequenos partidos, que para além do Livre, que cresceu nos sítios “certos”, e do ADN, que ainda não conseguiu o seu grupo parlamentar mas tem uma votação significativa, temos os casos do CDS que (tal como o PEV em tempos) só tem grupo parlamentar porque foi adoptado pelo PSD na AD, e os do PAN e do BE que perderam os grupos parlamentares.

O caso do BE, ex-terceiro partido, do ponto de vista de crescimento / retracção eleitoral é interessantíssimo, uma vez que cresceu com alguma expressão em zonas sociologicamente intermédias (Braga, Aveiro, Leiria, Santarém, Setúbal, Faro), e começou a retrair-se quando a dinâmica social se alterou, sendo a perda do deputado na Madeira explicada ao que me lembro, por um escândalo de viagens, e em Coimbra, talvez pelos humores de Boaventura Sousa Santos.

Chamei uma vez no Jornal Tornado a atenção para a vulnerabilidade do Bloco em termos de dependência das receitas parlamentares. Admito que o “escândalo” que, talvez não o fosse, do “despedimento” de grávidas tenha levado a uma “punição” de uma organização vista como “moralista”.

Impressionou-me mais a atenção aos negócios internacionais e a vontade de reproduzir em Portugal o sobressalto que permitiu ao Die Linke manter-se no parlamento alemão. Contudo enviar Louçã, Rosas e Fazenda a fazerem-se eleger nos antigos lugares das glórias do BE, eles que foram figuras emblemáticas de Lisboa, parecia, e era, desajustado.

De qualquer forma o parlamento português teve em Mariana Mortágua, por Lisboa, e em José Soeiro, pelo Porto(iv), dois dos seus melhores deputados.

 

Notas

(i) Uma recente alteração legal fixou um limite máximo.

(ii) Em rigor só deveriam ser considerados votos dos países em que todas as candidaturas nacionais pudessem fazer campanha.

(iii) Atenção para a elevação a NUT 2 já prevista para áreas actualmente integradas em Lisboa.

(iv) Deixou o lugar pouco antes das eleições para exercer funções como professor auxiliar na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, área de Sociologia.

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