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Domingo, Outubro 6, 2024

Sacuntala de Miranda

Helena Pato
Helena Pato
Antifascistas da Resistência

(1934 – 2008)

Sacuntala de Miranda, militante antifascista na década de 50 do século XX, foi uma mulher íntegra, de grande coragem, e com relevante papel de cidadania. Historiadora, o seu nome ficou ligado, sobretudo, ao início do ensino da História Contemporânea em Portugal, e como autora de obra de referência na nossa historiografia.Morreu no dia em que se completavam 60 anos da morte de Mahatma Gandhi (1869 – 1948), que exerceu forte influência no seu pensamento e nas suas atitudes perante a vida.

Açores, Índia, Açores, estudos e movimentos juvenis

Filha de uma açoriana e de um indiano natural de Goa, nasceu em Ponta Delgada, nos Açores a 7 de Novembro de 1934. Com 4 anos de idade acompanhou os pais para Goa. No início da Guerra regressou aos Açores, onde fez os primeiros estudos. Veio para Lisboa frequentar a universidade e aí completou o curso de Ciências Histórico-Filosóficas. Durante os estudos universitários em Portugal, esteve sempre inserida nos movimentos estudantis e da Oposição Democrática: Movimento para a Paz, MUD juvenil, campanhas eleitorais. Os amigos mais próximos eram os militantes dos movimentos pró independência das colónias e os jovens activistas na Universidade. De reunião em reunião, passou de dirigente do MUD Juvenil, responsável por algumas faculdades, a militante do PCP.

Terminada a licenciatura começou por não obter autorização para ensinar em estabelecimentos públicos. Era a represália habitualmente aplicada aos que ousavam questionar o autoritarismo e a falta de liberdade em Portugal, no tempo de Salazar. Como a tantos outros, valeu-lhe o refúgio no ensino no Colégio Moderno. Em 1959, já com a tese da licenciatura, foi autorizada a dar aulas no Liceu Raínha D. Leonor: História, Filosofia e Organização Política. Nesta disciplina consegue trocar a defesa da teoria política do Estado Novo pelo respeito pela Democracia e Liberdade de pensamento. É então que quando intimada pela reitora a fazer uma palestra sobre a NATO, recusou, o que lhe valeu a ordem para, como “castigo”, começar todas as suas aulas de Organização Política falando dessa organização. Nas aulas de Filosofia eram-lhe interditas todas as referências a Bacon, Descartes e Sartre.

Descontente em Portugal, vai para Londres

Jovem, descontente com algumas práticas e orientações do PCP – especialmente a atitude perante a integração de Goa na Índia – acaba por se afastar do partido. Amiga muito próxima de alguns companheiros de sempre, envolvidos no falhado “Golpe da Sé”( Março de 1959), acompanha-os solidariamente nesse momento. Mas, perante o desfecho que encerra a fuga de alguns implicados (o crime da Praia do Guincho), a nobreza de carácter que a caracterizava impele-a a fugir daquele clima doentio. Entretanto, prosseguiam as pressões da PIDE junto do liceu para o seu afastamento. É tudo isto que a leva a decidir «que não queria mais viver neste país sufocante e que ia partir para respirar os ares da Europa livre».

É também por solidariedade com o seu pai, exilado em Londres devido à sua posição acerca da integração de Goa na União Indiana, que opta por ir viver para Inglaterra. Aí aproveitou para efectuar a licenciatura em Sociologia, conhecer o mundo universitário inglês, que descreveu como «um deslumbramento», mas continuou sempre envolvida no combate pela justiça social e a liberdade, em duas frentes principais: a luta anti-colonial e de solidariedade com os movimentos de libertação africanos e a luta sindical dos trabalhadores portugueses imigrantes.

Como outros exilados, tentou reinstalar-se em Portugal na «primavera Marcelista», mas o ambiente pouco mudara e não se adaptou à irrespirável falta de liberdade de pensamento e de expressão. O longo intervalo de mais de vinte anos, que mediou entre a conclusão da tese de licenciatura e sua publicação em Portugal, traduz as vicissitudes de Sacuntala de Miranda e do país. Volta para Londres.

O regresso a Portugal após o 25 de Abril

Só regressa definitivamente a Portugal após o estabelecimento da democracia no 25 de Abril.

Finda a ditadura e de regresso a Portugal ingressou no ensino universitário, doutorou-se em história e publicou vários trabalhos de investigação, levando o nome dos Açores, de S. Miguel e da Ribeira Grande mais longe através das suas várias obras de investigação e de livros como “A emigração Portuguesa e o Atlântico” e o “O Ciclo da Laranja e os gentlemen farmers, da ilha de S. Miguel”.

Sacuntala de Miranda foi uma das pessoas que fundou o Departamento de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da UNL, no final dos anos setenta, e foi professora do primeiro mestrado de História Contemporânea organizado em Portugal, em 1984. Tendo começado em Londres a preparação da tese de doutoramento sob a direcção de Eric Hobsbawm, veio a conclui-la na Universidade Nova de Lisboa, sob a direcção de Joel Serrão. Miriam Halpern Pereira, que fez parte do júri que apreciou a tese, considerou-a: um estudo inovador sobre o meio século, de 1890 a 1939, um trabalho excelentemente organizado e com qualidade literária rara, marca comum de todos os seus trabalhos, que analisa a estrutura dos principais sectores da economia portuguesa e a sua dimensão internacional» e referiu a obra publicada em 1991 “Portugal: o círculo vicioso da dependência (1890-1939) como «uma excelente síntese das principais linhas de evolução do comércio externo português, desde a década final de oitocentos às vésperas da Segunda Guerra Mundial.»

Sacuntala refere na sua autobiografia que lhe deu particular prazer a feitura do livro sobre os motins populares em 1869, em S. Miguel, de clara inspiração thompsoneana. (Tinha uma enorme admiração por E. P. Thompson e Eric Hobsbawm, ambos exerceram uma evidente influência na sua obra, que esteve sempre muito ligada à historiografia britânica marxista e de esquerda independente).

Com “O ciclo da laranja em S. Miguel e os gentlemen farmers na ilha de S. Miguel”, (tese complementar de doutoramento, publicada em 1989), inicia a sua participação na incipiente historiografia moderna sobre os Açores, para cuja renovação metodológica e temática vai contribuir decisivamente. Tornou conhecido, uma forma de protesto popular do povo urbano, das pequenas vilas e cidades de província, até então ignorada, e abriu o caminho neste domínio a outras pesquisas.

Trabalhos de investigação sobre os Açores

Algo desgostada com a evolução econométrica da história económica e a orientação ideológica dominante dos anos 90 em diante, como tantos outros historiadores, preferiu dedicar-se a temas de história social, com trabalhos que constituíram contribuições preciosas, pela novidade temática ou de abordagem. O seu livro sobre a emigração açoriana contém uma das raras análises sobre a emigração para o Hawai e uma original comparação entre fluxos de capitais e a emigração.

Em 2006 escolheu a cidade da Ribeira Grande para lançar o seu primeiro livro de poesia “O Sorriso de Satya”, uma das várias obras que deixou publicadas ao longo de uma vida dedicada à investigação histórica. A Biblioteca Municipal da Ribeira Grande foi também a instituição escolhida por Sacuntala de Miranda para doar a sua obra. O seu fundo particular inclui um total de 807 livros e 101 periódicos, abrangendo as áreas de educação, filosofia, física, história, literatura, poesia, política, sociologia e teatro, sendo parte dele em língua inglesa.

Um dos momentos mais felizes do final da sua vida foi a evocação teatral do motim da Ribeira Grande, encenada nesta cidade pelo seu amigo e conterrâneo Mário Barradas.

«Memórias de um peão nos combates pela liberdade»

Nos últimos anos de vida preocupou-se em passar o testemunho, escrevendo as suas memórias, uma autobiografia publicada em 2003: «Memórias de um peão nos combates pela liberdade». Deixou-nos nesse livro um retrato da geração dos anos 50-60, muito vivo e concreto, que permite às jovens gerações compreender essa época difícil, mas rica em combates por valores essenciais. Alguns outros textos irão completar o seu testemunho pessoal: sobre a luta académica e as eleições de Humberto Delgado (“esse momento decisivo para a nossa geração e para o país”), um novo volume autobiográfico e ainda um texto sobre a integração de Goa na União Indiana.

Sacuntala de Miranda, ao longo da sua vida, manteve grande ligação à Ribeira Grande, quer por motivos profissionais, nas suas investigações históricas, quer por laços familiares.

Morreu em Cascais, no dia 30 de Janeiro de 2008.

No dia 29 de Maio de 2012, a Câmara Municipal de Ribeira Grande promoveu uma homenagem a esta antifascista e historiadora, concedendo-lhe uma condecoração a título póstumo, e inaugurando uma rua com o seu nome, na freguesia de Conceição.

Dados biográficos:

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