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Sábado, Abril 27, 2024

Série Ponto de Virada: 11/9 apresenta o barbarismo da Guerra ao Terror

Carolina Maria Ruy, em São Paulo
Carolina Maria Ruy, em São Paulo
Pesquisadora, coordenadora do Centro de Memória Sindical e jornalista do site Radio Peão Brasil. Escreveu o livro "O mundo do trabalho no cinema", editou o livro de fotos "Arte de Rua" e, em 2017, a revista sobre os 100 anos da Greve Geral de 1917

Do interior de um Afeganistão destruído por décadas de guerra, corrupção, pela fúria dos EUA e pelo fanatismo religioso, um jovem soldado americano diz que conseguiu, após certa dificuldade, telefonar para a família. “Eu esperava ouvir que eles estavam com saudades”, disse, “mas eles disserem que estão bem e estão se divertindo. Ninguém perguntou se eu estou bem. Percebi que ninguém dá a mínima para o que eu estou fazendo. Ninguém mais fala do 11 de setembro, mas eu sinto que estou aqui por causa daquele dia que”, lamenta o jovem.

Essa sensação de abandono é o espírito da Guerra ao Terror, como mostra a série documental Ponto de Virada: 11/9, que estreou na Netflix em setembro de 2021, quando os atentados completaram 20 anos.

A triste cena fecha o quarto e penúltimo episódio da série. Já era governo Obama quando o soldado solitário percebe a falta de sentido daquela guerra. Já se somavam longos anos de ataques, vingança e erros que custaram pesados investimentos, a estabilidade no Oriente Médio e a vida de milhares.

O momento em que os operadores do Voo American Airlines 11 se dão conta de que o avião estava sequestrado inicia a série. É uma longa sequência que intercala vozes dos controladores de tráfego aéreo com depoimentos de pessoas que estavam no World Trade Center naquela terça-feira fatídica. O apelo de cada história de vida bruscamente interrompida busca a empatia do espectador. Mas é bom saber que a série não segue na toada de vitimizar os americanos, culpando outros povos pelos seus traumas. Pode faltar alguma coisa aqui e ali, mas é um documento importante e honesto em sua proposta.

Ronald Reagan postergou o problema

Logo no primeiro episódio fica claro que os EUA investiram muito em grupos armados do Afeganistão entre 1979 e 1989 com o objetivo de expulsar os soviéticos dali. Era Guerra Fria e qualquer propaganda de que o objetivo americano era salvar aquele povo, não passava de um disfarce que escondia o interesse em derrotar a URSS. Assim, dispondo de modernos armamentos, os EUA fortaleceram um grupo de jovens estudantes fundamentalistas, o Talibã. E facilitou a formação de um braço ainda mais radical e violento, a Al-Qaeda. Claro que naquela época era pedir demais que Ronald Reagan, entusiasmado com o triunfo do liberalismo, se importasse com o monstro que estava criando. Ele postergou o problema.

Problema que, para os americanos, começou logo após a saída dos soviéticos, quando a Al-Qaeda de Osama Bin Laden passou a mirá-los, pregando entre o Talibã o perigo de ter a cultura e as riquezas naturais do Oriente Médio saqueadas. Em outubro de 1990, quando George H. W. Bush (o pai) enviou uma enorme quantidade de soldados para a Arábia Saudita sob pretexto de libertar o Kuwait, ocupado pelo Iraque de Saddam Hussein, Bin Laden concluiu sua narrativa sobre a ameaça estadunidense. Na esteira das desconfianças e ressentimentos provocados pela Guerra do Golfo, membros da Al-Qaeda conseguiram driblar a vigilância e se estabelecerem em solo americano para dali mesmo tramar o choque que destruiria a tranquilidade daquele país.

Cowboy fora da lei

Com um saldo de 2996 mortos nos atentados de 11 de setembro, o governo de Georde W Bush (o filho) sentiu que era o caso de endurecer as leis e os contra-ataques. A série mostra o que já sabemos, que ele fez muito mais do que isso. Com a população em pânico, Bush e sua equipe deitaram e rolaram no desrespeito às leis, à Constituição e aos princípios humanitários e democráticos que os americanos gostam de exaltar. Parafraseando Raul, o texano Bush foi um verdadeiro “cowboy fora da lei”. E não foi só ele.

Logo em 14 de setembro o Congresso dos Estados Unidos aprovou a chamada “Autorização para o Uso da Força Militar Contra os Terroristas” que dava plenos poderes para o presidente lutar contra terroristas e nações que os abrigavam. No mês seguinte (em 26/10) Bush assinou a USA Patriot Act, ou “Lei Patriótica”, que permitia ao governo interceptar ligações telefônicas e e-mails de organizações e pessoas que eles julgassem suspeitos dentro do próprio país. A Lei de Segurança Nacional (Homeland Security Act) foi promulgada neste contexto, com amplos poderes.

Externamente, em 7 de outubro forças americanas e britânicas iniciaram bombardeios aéreos no Afeganistão, além de invadirem o território também com tropas terrestres, derrubando o Talibã em uma mega operação que veiculou por todo o globo.

Guantánamo

E é aqui que começamos a falar de um capítulo crucial da barbaridade que Bush filho batizou de Guerra ao Terror: a Prisão de Guantánamo.

A série não esconde a hipocrisia e o despreparo do governo ao tratar deste assunto. Primeiro afirma que os americanos não sabiam o que fazer com os “suspeitos” apreendidos, daí a ideia de construir uma prisão em uma base naval que Washington controla na ilha do Caribe. Depois afirma que os apreendidos não poderiam ser chamados de prisioneiros e deveriam ser tratados como terroristas, pois isso livraria os EUA de cumprir os direitos previstos na Convenção de Genebra. São muitos os depoimentos críticos à Guantánamo na série.

Os primeiros vinte homens pegos no Afeganistão pelo Exército Americano e levados para Guantánamo foram apresentados à sociedade como “o pior do pior”. Mas quando o mundo viu aqueles homens acuados no cenário medieval montado pelo governo e pelo Exército, eles pareciam pessoas, camponeses, alguns “peixes pequenos”, alguns que não tinham nada a ver com a história.

No alvorecer do século 21, a terra da liberdade cujos governantes sempre evocam em seus discursos os conceitos de democracia e direitos humanos, construiu naquela ilha uma terra sem lei. Instituiu a barbárie à base do abuso de poder, da força e da extorsão de informações fabricadas (sobre Guantánamo vale assistir ao filme O Mauritano, de Kevin Macdonald, 2021, e conhecer a história de Mohamedou Ould Slahi, preso sem nenhuma acusação em 2002, torturado de várias formas e liberado somente após longos 14 anos, em 2016).

A série afirma que foi em Guantánamo que o governo extraiu, através da tortura, informações que ligavam o presidente iraquiano Saddam Hussein à Al Qaeda e a um projeto de produção de armas de destruição em massa. Informações falsas que, entretanto, bastaram para dar início à ocupação do Iraque em 2003. Já naquela época se sabia que a Guerra do Iraque se baseou em uma mentira. E ela durou até 2011.

Obama e a ironia do Nobel da Paz

Barack Obama, que assumiu a presidência em 2009, voltou a centrar fogo no Afeganistão, obstinado pela ideia de matar Osama Bin Laden. Foi no governo do democrata, que ironicamente recebeu o Nobel da Paz logo na largada, que a matança de afegãos, ampliada pelo uso ostensivo de drones, se intensificou.

Segundo matéria da revista Istoé, de janeiro de 2013, levantamentos do Bureau de Jornalismo Investigativo, em Londres, revelam que “Enquanto o último ano da administração Bush (2008) registrou pelo menos 287 mortes em ataques aéreos, o número mínimo em 2012 seria de 866”.

A morte de Bin Laden em 2011, quando os americanos invadem ilegalmente o espaço aéreo do Paquistão, é outro evento nebuloso que a série apresenta. Com o rosto desfigurado pelos tiros, o cadáver do suposto Bin Laden foi reconhecido pela altura e pelas orelhas. Mas a notícia de sua morte foi apressadamente entregue à sociedade americana como um troféu na guerra contra o 11 de setembro.

Daí em diante a grande dança dos erros tornou-se indisfarçável. De um lado, um governo afegão montado na corrupção parasitava os recursos que os EUA injetaram nas forças locais, do outro, a perplexidade de combatentes americanos com a falta estratégia, com a falta de orientações do governo, com o desconhecimento sobre a missão, com a solidão e o abandono. A guerra se arrastava e pesava sobre os soldados a sensação de que “ninguém mais falava do 11 de setembro”.

Foi o pitoresco Donald Trump que firmou com o Talibã, em fevereiro de 2020, um acordo para a retirada das tropas americanas. A série chega em Joe Biden, mas por pouco perdeu a chance de adicionar à produção as impressionantes imagens da queda de Cabul e da tomada de poder pelo Talibã em 15 de agosto de 2021.

Com cinco episódios de uma hora cada, nem tudo virou spoiler neste artigo. Mas não é para saber o final desta história que vale assistir Ponto de Virada: 11/9. A série nos convida a repensar o complexo encadeamento de eventos em torno dos sequestros dos voos 11 da American Airlines, 175 da United Airlines, 77 da American Airlines e 93 da United Airlines, que resultaram nos atentados contra as torres do World Trade Center, em Nova Iorque, e contra o Pentágono, em Washington.

O dia 11 de setembro de 2001 inaugurou a geopolítica do novo século e colocou em xeque os mais altos valores que o governo americano usa para justificar seus atos: liberdade, democracia e direitos humanos. Valores que foram distorcidos na guerra ao terror, sintetizada por uma política baseada em perseguição, espionagem, tortura, bombardeios e matança.

Em 21 de setembro de 2021 Joe Biden falou na Assembleia Geral da ONU que pela primeira vez em 20 anos os EUA não estão em guerra. Até quando?


Texto em português do Brasil

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