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Sexta-feira, Abril 19, 2024

Turquia – Um destino mais do que turístico

Alexandre Honrado
Alexandre Honrado
Historiador, Professor Universitário e investigador da área de Ciência das Religiões

Historiador, Professor Universitário; investigador da área de Ciência das Religiões

Talvez seja um sintoma da idade, mas as memórias que tenho aparecem-me de regresso com uma nitidez quase patológica. É a pior das memórias, essa, não por permanecer mas sobretudo por incomodar, normalmente aqueles a quem a contrapomos.

Por exemplo, acabo de lembrar-me da primeira viagem que fiz à Turquia, da emoção que tive no Palácio Dolmabahçe, em Istambul (maior emoção do que na visita à mesquita azul ou Mesquita do Sultão Ahmed, grande edificação do século XVII mas que a minha devoção, que promove o secular sendo profundamente laica, impediu sempre de apreciar com o rigor que lhe será devido, o que lamento, sou apenas um intérprete da estética e não do que procura transcender).

No Dolmabahçe, no entanto, como estava a dizer, as coisas foram-me mais profundas. Ali morreu Mustafa Kemal Atatürk, visionário fundador da República da Turquia, melhor dizendo de uma Turquia moderna. Certo é que Atatürk tomou como sua a cidade de Ankara e foi a partir dali que liderou a Guerra da Independência Turca.

Para quem não sabe, foi a primeira Guerra Mundial que ditou o fim do Império Otomano e foi Mustafa Kemal Atatürk quem estabeleceu um governo provisório em Ankara e derrotou as forças enviadas pela Triple Entente, aliança militar entre o Reino Unido, a França e o Império Russo, constituída sobretudo para enfrentar uma nova política mundial ansiada e iniciada pelo kaiser Guilherme II da Alemanha, em 1899 (parece que a Alemanha, cuja verdadeira história só começou por volta de 1870, sempre quis mandar no mundo).

Confesso que adoptei logo a figura de Atatürk, um admirador do iluminismo, que procurou transformar as ruínas do Império Otomano numa nação-Estado democrática e secular. A sua Turquia era o esplendor e a fundação do Estado turco moderno surgiu como resultado da sua inteligência e visão estratégica.

Imaginem um pomar e uma maçã pequena no chão, sem brilho nem viço. É o que me parece ao comparar Atatürk e o presidente atual Erdogan. Uma grande Turquia e uma pequena Turquia, tão pequena que até o regresso da pena de morte reclama agora.

Sem alinhar no lado fácil das teorias da conspiração sobre o golpe falhado na Turquia, ocorre-me pensar que, distante da completude política e pessoal de um Atatürk , herói da guerra e da paz, Recep Erdogan tem pelo menos a qualidade de aproveitar o vento que, talvez inesperadamente, empurrou o barco da história para o seu lado. O seu desejo de um regime presidencialista absolutista, ávido da concentração de poderes e distante da democracia, do Estado de Direito e do respeito pelos Direitos Humanos, teve no golpe falhado uma prenda providencial.

Desejoso de um bode expiatório, Erdogan ressuscitou das sombras Fethullah Gulen, religioso islâmico e opositor assumido do presidente turco. O Himzet – ou movimento Gulen – é poderoso. Teceu uma rede influente pelo mundo, possui uma rede de escolas a funcionar em muitos países, apresenta-se às claras como uma organização não governamental, influencia órgãos de comunicação, a opinião pública, a polícia e a justiça. E tem a força religiosa que se desprende do carisma do seu líder. Gulen promove uma mistura de misticismo sufi e uma filosofia de harmonia entre as pessoas com base no islão – um islão aberto à educação e à ciência.

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Palácio Dolmabahçe, em Istambul

Há, portanto, a Turquia de Fethullah Gulen e a de Recep Erdogan. E algumas memórias da outra, sonhada por Mustafa Kemal Atatürk. E há ao mesmo tempo a Turquia que alimenta as lutas nacionalistas contra os curdos (com início após a Guerra de Independência Turca ) e aquela que vê na União Europeia um oásis desfocado de oportunidades.

Há ainda a herança nunca cicatrizada de um império Otomano ferido de morte e as novas ideias e práticas fundamentalistas que atuam cobardemente por todo o lado. E ainda há aqueles povos estranhos que vivem nas fronteiras turcas (povos de oito países; a noroeste a Bulgária, a oeste a Grécia, a nordeste a Geórgia, a Arménia e o enclave de Nakichevan do Azerbaijão, a leste o Irão e a sudeste o Iraque e a Síria).

País asiático e europeu – Bipolar? Ou diz-se transcontinental e euro asiático? – tem muito que se lhe diga. Acho mesmo que voltarei a dizer, isto é, a falar da sua complexidade – agora a prosa vai muito extensa.

Voltar à Turquia é fascinante, isso tenho como certo.

Este texto respeita as regras do AO90.

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