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Quinta-feira, Março 28, 2024

Baptista Pereira

Helena Pato
Helena Pato
Antifascistas da Resistência

1921 – 1984

Cidadão da Resistência, homem do povo e democrata, campeão de natação, era um ídolo da juventude antifascista nas décadas de 50 e 60. Foi o miúdo em quem o escritor Joaquim Soeiro Pereira Gomes se inspirou para criar o personagem Gineto do livro «Esteiros». Sendo um atleta que nunca teve um instrutor nem subsídios oficiais, já era, aos 14 anos de idade, o melhor nadador português nos 200, 400 e 1500 metros, e foi-o durante 15 anos consecutivos. Um homem vertical e de olhos abertos para o mundo, campeão nacional e internacional, venceu a travessia do Canal da Mancha[1], e morreu sem saber ler nem escrever.

Biografia

Joaquim Baptista Pereira, nasceu em Alhandra a 7 de Março de 1921, filho de gente pobre, que fazia da apanha do moliço o seu ganha pão. Sentia-se atraído pelas águas do Tejo, desde menino, fazendo dos esteiros a sua «piscina olímpica» e, ainda criança, começou a acompanhar o pai na faina de pescador.

A pouco e pouco, sozinho, começou a aventurar-se no rio, a nadar distâncias cada vez maiores. Conta-se que quando os pais se zangavam com ele, nadava até aos mouchões do Tejo e aí permanecia até as coisas acalmarem. Mas foram muitas as vezes em que atravessou o rio para ir ao «lado de lá» matar a fome com a fruta apanhada nas quintas de Alcochete. A vida dura fez dele garoto rebelde. Trabalhou nos telhais (fábricas de telha instaladas à beira Tejo).

Joaquim viveu a infância junto ao Tejo e Soeiro Pereira Gomes, que se fixou nesta vila na década de 30, escolheu este menino para personagem do romance «Esteiros», que conta a história das crianças obrigadas a trabalhar nos telhais da vila, com «Gineto» (Baptista Pereira) a revelar grandes qualidades de nadador. Antes de entrar na clandestinidade, em 1944, Pereira Gomes ainda dinamizou a construção de uma piscina pública em Alhandra.

Joaquim Soeiro Pereira Gomes foi o homem mais extraordinário que eu conheci, um homem bom, um homem inteligentíssimo, um grande amigo do povo. Foi um dos que me ensinaram as primeiras letras, e o primeiro fato e os primeiros sapatos que tive foi ele quem mos deu; lembro-me como se fosse hoje: era um fato aos quadradinhos pretos e brancos e uns sapatos amarelos de biqueira larga. (…) Soeiro Pereira Gomes trabalhava dia e noite: de dia na Fábrica Cimentos Tejo, onde era chefe de escritório; à noite e aos domingos na piscina, ao nosso lado, ao lado dos operários”

Respeitado a nível internacional

A natação em piscina, em Portugal, não só era uma prática reduzida, como era o número de clubes e praticantes; mas Baptista Pereira, em representação do Alhandra Sporting Clube, começou a somar vitórias na prática da natação desde os 15 anos. Fez-se desde logo campeão, conseguindo, na altura, os recordes nacionais dos 200 e 1500 metros. Era, então, um dos poucos nadadores portugueses em condições de ser respeitado a nível internacional. Sem apoios oficiais, mas ajudado pelas gentes de Alhandra e do Baixo Alentejo, teimava no aproveitamento de oportunidades e não desistia do sonho de menino.

Em 1946, BP faz parte de uma equipa portuguesa que se deslocou a Tenerife (Canárias) para disputa do IV Portugal-Espanha. Não teve uma prestação brilhante, e acabou por ser vítima do salazarismo. A sua corajosa atitude de levantar o punho cerrado frente a um painel gigante do ditador espanhol, enquanto outros faziam a saudação fascista, valeu-lhe a irradiação de toda a prática desportiva . Viu-se, assim, obrigado a abandonar a prática desportiva e entrar para a pesca do bacalhau, a bordo do barco Gil Eanes.

Parecia que acabava ali a sua carreira, mas a forte contestação popular, com diferente manifestações de solidariedade, traduzidas em exposições às entidades desportivas nacionais, partindo do Alhandra Sporting Clube, Junta de Freguesia de Alhandra e Associação de Natação de Lisboa, não deixou que isso acontecesse. Os servidores do regime depressa se aperceberam de que o castigo a Baptista Pereira se estava a transformar em arma política contra

o governo de Salazar e o nadador acabou por ver resolvida a sua situação desportiva, com a revogação do seu castigo, e regressou à competição. Envereda pelas provas de longa distância, em que também irá destacar-se pelas suas excepcionais qualidades de nadador.

Em 1950, ao travar conhecimento com o campeão da natação argentino António Abertondo, vencedor da Mancha e do Estreito de Gibraltar, este aconselha-o a dedicar-se a provas de fundo; e, em 1953, bateu o recorde da travessia do Estreito de Gibraltar, gastando cinco horas e quatro minutos. Os seus êxitos em piscina e nas clássicas travessias rapidamente se foram avolumando, tornando-se num dos melhores nadadores nacionais da época.

Participar na prova da Travessia do Canal da Mancha

Após várias provas de fundo com assinaláveis sucessos recebe o convite mais desejado: Participar na prova da Travessia do Canal da Mancha. Constituía um desafio para si próprio, pois havia no grupo dos catorze concorrentes, de onze nações, alguns que lhe haviam ganho antes, noutras provas internacionais, como era o caso do egípcio Hammad o «Crocodilo do Nilo». Era, pois, para «gineto» um verdadeiro «tira teimas». Para tal, o seu treino tinha sido desenvolvido em longas distâncias a nado . A 21 de Agosto de 1954, finalmente, foi dada a partida para a clássica prova e, para espanto de todos, saiu vencedor. Consegue então uma das maiores proezas do desporto português: 12 horas 25 minutos e 1 segundo dentro de água, e ganha a Travessia da Mancha de 1954, conquistando uma das maiores proezas do desporto português[2]. Foi um dos maiores feitos desportivos portugueses até essa data.

Alhandra recebeu-o em festa e, em gratidão para com o conterrâneo, construíram-lhe e ofereceram-lhe uma casa onde ele habitou com a família. Representantes de associações e clubes, gente anónima, testemunharam na sede do Alhandra Sporting Clube, a homenagem merecida. O feito do nadador iria ser, posteriormente, divulgado por poetas populares e cantado em praças e feiras do País.

Culminando a brilhante carreira desportiva, (para cima de 150 vitórias), Baptista Pereira bateu, a 18 de Setembro de 1959, o recorde europeu de permanência na água, nadando 206 quilómetros, em 28 horas e 45 minutos[3].

Em 1971, BP recebeu a notícia, vinda dos USA, de que estava incluído no «Quadro de Honra» dos seis melhores nadadores do Mundo.

Ligação ao PCP

Na década de 40, Baptista Pereira relacionara-se com Soeiro Pereira Gomes, Alves Redol e António Dias Lourenço e ficara, desde essa altura, próximo do Partido Comunista. Depois, nas décadas de 60 e 70, participou em lutas reivindicativas, colaborou na distribuição do Avante!, e apoiou o PCP .

Depois da Revolução (em 1979), Joaquim Baptista Pereira preencheu a ficha de membro do PCP. Nunca pôde ser candidato nas eleições autárquicas, porque não sabia ler nem escrever, mas apoiava as listas do Partido Comunista Português e frequentava o Centro de Trabalho de Alhandra diariamente.

Morre novo, aos 63 anos, em 22 de Junho de 1984.

Tem o seu nome numa praceta na Amora (Seixal). O PCP homenageou-o em 2004, na Festa do Avante, organizando uma exposição sobre «Baptista Pereira, o maior nadador

português de longas distâncias». A exposição evocava o 50.º aniversário da sua vitória na travessia do Canal da Mancha e muitos outros feitos desportivos do nadador de Alhandra, bem como o seu recorde de permanência na água.

  • 27 de Setembro de 1936 – Estreia oficial de Baptista Pereira como nadador, com 15 anos, durante a travessia do Tejo (Trafaria/Pedrouços). Foi 3.º na sua categoria;
  • 24 de Agosto de 1937 – Na Piscina do Sport Algés e Dafundo, bate o recorde nacional dos 400 metros livres com o tempo de 5 minutos e 50 segundos;
  • 29 de Agosto de 1937 – Realizou a travessia do Tejo (Trafaria/Pedrouços). Foi o 1.º na sua categoria;
  • Maio de 1938 – Com vista aos Campeonatos da Europa de Natação, vence todas as provas de selecção em que participou;
  • 3 de Outubro de 1938 – Atinge a internacionalização, durante a realização em Lisboa do Portugal/Alemanha, tendo sido 2.º classificado nos 400 metros livres, logo depois do campeão alemão;
  • 1939 – Faz parte da equipa portuguesa que defronta em Lisboa a Hungria;
  • 1938/40/41 e 42 – Foi vencedor da travessia da Póvoa;
  • 1948 – Ganhou a travessia da Baia de Sesimbra;
  • 25 de Agosto de 1953 – Baptista Pereira faz Alhandra/Rocha de Conde de Óbitos/Alhandra, nadando 166,600 quilómetros em 26 horas e 12 minutos, batendo o Recorde Nacional de distância;
  • 20 de Setembro de 1953 – Baptista Pereira nada das Berlengas a Peniche (cerca de 20 quilómetros), preparando-se para novos cometimentos;
  • 25 de Outubro de 1953 – Baptista Pereira lança-se à água na Ilha de Las Palomas, em Espanha, lutando contra as correntes do Estreito de Gibraltar, mas atingindo Ponte de Cires, no Norte de África, no tempo de 5 horas e 4 minutos que passou a constituir recorde da travessia do estreito;
  • 23 de Dezembro de 1953 – Na maratona do Nilo, Baptista Pereira comandou grande parte da prova, completando 39 dos 42 quilómetros em 10 horas e 10 minutos, acabando por desistir. A quase totalidade dos participantes abandona igualmente a prova. A baixa temperatura das águas não permitiu melhor. A federação egípcia, sabedora das anormais dificuldades, acabou por contemplar os desistentes com prémios;
  • 24 de Julho de 1954 – Baptista Pereira faz a travessia Peniche/Berlengas (cerca de 20 quilómetros);
  • Julho de 1954 – Rodeando a Ilha de Abscon, em Atalntic City, Baptista Pereira nada 48 quilómetros;
  • 21 de Agosto de 1954 – Vence a travessia do Canal da Mancha;
  • 1955 – Faz parte da travessia de Itaparica para a cidade de Salvador da Baia/Brasil, não competindo por falta das equipas de segurança contra tubarões. Faz 22 dos 50 quilómetros do percurso;
  • 1956 – Bate o seu próprio recorde, atravessando pela segunda vez o Estreito de Gibraltar, fazendo o tempo de 4 horas, 34 minutos e 6 segundos;
  • 1 de Julho de 1956 – Fica em 4.º lugar na III Travessia Internacional do Sena, Paris;
  • 14 e 15 de Julho de 1956 – Participa no Critério Internacional de Natação em França, prova entre o rio Loire e Nantes com duas distâncias (60 e 40 quilómetros), considerada o campeonato do mundo de longa distância. Venceu a de 40 quilómetros e ficou classificado em 3.º lugar no seu conjunto;
  • 1959 – Bate o recorde de permanência da água, percorrendo 204 quilómetros em 28 horas e 34 minutos;
  • 1967 – Baptista Pereira termina o seu percurso de nadador tendo-se atirado à água na inauguração da Piscina Municipal de Vila Franca de Xira. No seu currículo contam-se, entre outras, 19 vitórias em Campeonatos Nacionais, 14 recordes nacionais batidos, 29 provas no rio Tejo e 1.º classificado na travessia da Baia de Sesimbra.

[1] Quando Baptista Pereira nasceu, já o Canal da Mancha havia sido atravessado por dois nadadores. Desde o século XIX, a travessia a nado do Canal da Mancha constituía um desafio para os mais audazes. Em 1875 terá sido um marinheiro inglês, «capitão Webb» de alcunha, quem conseguira tal feito, gastando o tempo de 21 horas, 44 minutos e 55 segundos. Depois disso, a travessia anual do Canal da Mancha constituía uma atracção, interrompida aqui e ali por acontecimentos revelantes como foi o caso dos dois conflitos mundiais (1914-1918 e 1939-1945); terminada a segunda guerra mundial, a travessia passou a ser incluída no calendário das provas internacionais de natação. Portugal nunca revelara entre os seus praticantes de natação, valores que se pudessem considerar de nível internacional. Porém, foi um português de Alhandra quem, em 1954, conseguiu fazer a Travessia da Mancha em 12 horas 25 minutos e 1 segundo, conquistando assim uma das maiores proezas do desporto português.

[2] Sobre o histórico feito de Baptista Pereira, o jornalista desportivo Carlos Miranda escreveu, na ocasião:

Não se tratava só de fazer a travessia do Canal, o que, por si, já era uma tarefa espinhosa. Era isso sim, chegar primeiro que todos os outros… Na balbúrdia da partida, Baptista Pereira fica um pouco para trás… Meia hora de prova… o nadador de Alhandra era já o primeiro, à frente do egípcio Hammad, o «Crocodilo do Nilo», como era conhecido pelos seus patrícios… Começava bem, mas havia tanto para nadar… Com cinco horas de prova, Baptista Pereira está sensivelmente a meio do Canal e já tem cerca de duas milhas de avanço sobre Hammad… Nasce o dia… Do maltês Arthur Rizzo que inicialmente tinha acompanhado Baptista Pereira, já não há notícias… Estão percorridas três quartas partes da distância. Pressente-se que o assunto agora é apenas entre os dois grandes rivais, separados na altura, por uma diferença aproximada de 1600 metros. A terra já está á vista. Há dez horas de prova. Parece que a vitória, não vai fugir ao alhandrense. Mas entretanto o campeão do Nilo, começa a aproximar-se a aproximar-se… Num ápice, estala o alarme. O egípcio, com uma extraordinária ponta final, está já só a 400 metros… Surge outro contratempo, como tinha sido anunciado, o nevoeiro está implantado sobre a costa inglesa. O barco dos acompanhantes (do Baptista Pereira), extraordinários de dedicação, de amizade, de comungar num querer comum, mas contrastando fortemente com a embaixada luxuosa do egípcio, composta por mais de vinte pessoas -, o barco português não está provido dos meios de orientação. Por erro, em vez de encaminhar Baptista Pereira para Dover, para as rochas brancas de Dover, desvia-o em direcção a Santa Margarida. É mesmo Baptista Pereira que se apercebe do erro, quando vê o barco do egípcio dois quilómetros para lá, a tomar outro rumo…dentro de água, preocupado, nervoso com a corrida… Baptista Pereira, dá instruções para que o rumo seja corrigido… As dificuldades ainda não estão acabadas…surge outra forte corrente, e Baptista é obrigado a um esforço enorme, durante mais uma hora… Hammad não é capaz de vencer o obstáculo, e atrasa-se; novamente mais de duas milhas separam os dois nadadores… Ainda faltam cerca de oito quilómetros… Os últimos momentos são verdadeiramente emocionantes. Alguns amigos de Baptista Pereira, que se tinham deslocado propositadamente de Alhandra, fretam um «gasolina», e vão ao encontro do grande nadador…e caem de espanto quando vêem dois nadadores bem juntos. Seria possível que Hammad… Num desespero rompem todos a incitar o conterrâneo – Força, Baptista! Força, Baptista!… Ficam estupefactos quando o nadador português se limita a fazer-lhes um vago aceno, e continua a nadar calmamente, nitidamente descontraído… o outro nadador era um inglês que se tinha atirado á água, para nadar um bocado ao lado de Baptista Pereira…O meio-dia aproxima-se. O Sol está a pino… A corrente arrasta-o. O português já a chegar ao limite das suas forças, não resiste muito, e acaba por tocar terra, num sítio extraordinariamente abrupto e escarpado, a Oeste de South Foreland Point… É tempo de fazer o sinal ao júri e cair, cansado, exausto. Baptista Pereira 12 horas 25 minutos e 1 segundo dentro de água, tinha ganho a Travessia da Mancha de 1954, conquistando assim uma das maiores proezas do desporto português…»

[3] Sacrifiquei-me muito, muito… as provas de longa distância são terríveis; chegam a ser desumanas; saímos da água inchados, a língua não nos cabe na boca. Mas tinha de ser, só assim era possível chegar onde cheguei»

Dados biográficos:

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