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Quinta-feira, Março 28, 2024

Maria Alda Nogueira

Helena Pato
Helena Pato
Antifascistas da Resistência

Maria Alda Nogueira

Foi a primeira mulher condenada a 8 anos de prisão maior e medidas de segurança, a mulher com mais anos seguidos numa única prisão. Julgada em Tribunal Plenário em 1960, foi condenada a uma pena de 8 anos, seguida de “medida de segurança de internamento” de 6 meses a 3 anos, prorrogável por tempo indeterminado. Em 1967 iniciou o cumprimento da pena de “medidas de segurança”. E ficou em Caxias dez anos sofridos e intensos.

«Na prisão retiraram-me os melhores anos da minha vida. Entrei com 35 anos, saí com 45 anos.» – diz numa interessante entrevista a Helena Neves, de que deixamos aqui algumas passagens.

Biografia

Maria Alda Barbosa Nogueira, filha de uma costureira de alfaiate e de um serralheiro mecânico, nasceu a 19 de Março de 1923 em Alcântara. Andou na Escola da Tapada (Alcântara) e frequentou o Liceu D. Filipa de Lencastre. Militou no Socorro Vermelho Internacional, recolhendo géneros e roupas para os espanhóis, e foi Presidente da Associação Escolar durante vários anos.

Aos 17 anos entrou na Faculdade de Ciências, onde veio a terminar a licenciatura em Físico-Químicas. Foi uma aluna brilhante e iria entusiasmar-se com a investigação. Ao mesmo tempo que participava nas lutas académicas, como aconteceu em 1942/43 contra o aumento das propinas, Maria Alda intensificou a intervenção social e política, nomeadamente na Associação Feminina Portuguesa para a Paz.

Depois, chegou a exercer a docência no Ensino Secundário, durante 3 anos.

Em 1945 conhece Maria Lamas e com ela o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas renasce para um período apaixonante de actividade, de desenvolvimento. Numa entrevista que dá a Helena Neves, fala de si, da sua vida, da luta nessa época, e do fascismo:

«O Conselho estava organizado só aqui em Lisboa e a Maria (Lamas), tal como muitas de nós, considerava que era necessário alargá-lo a todo o país. Como eu dava aulas mas tinha uma vida bastante disponível, fui destacada para ir ao Algarve e lá consegui organizar várias delegações do Conselho. Tínhamos várias actividades, entre elas, os cursos de alfabetização. Recordo-me que em Olhão foi distribuída uma tarjeta pelas fábricas informando que no Conselho se ensinava a ler e a escrever e o largo onde eu morava e funcionava o Conselho, ficou pejado de mulheres, umas 200 ou 300, querendo vir às aulas. Foi um trabalho esgotante este, mas maravilhoso. Aprendi muito com a Maria e também ela aprendeu connosco – foi belo!»

Esta é a época do amadurecimento, em que Maria Alda se excede e se descobre nesse excesso, capaz de muito fazer e agir. Colabora nas “Mãos de Fada”, na revista “Modas & Bordados”, nas “Quatro Estações”, faz conferências sobre a mulher e a ciência. Vive. Apaixonada. Intensamente. E tal será sempre o seu modo de estar.

É na Faculdade que entra para o Partido Comunista Português. A sua ânsia de transformação da vida não se esgota no estudo nem nas outras actividades de intervenção, Maria Alda sente necessidade de outros horizontes, outras formas de luta. Arrisca. Em 1949 entra na clandestinidade e vai trabalhar na redacção do «Avante!» Acredita, no entanto, que será por pouco tempo. O seu desejo mais profundo é dedicar-se à investigação, procurando conciliá-la com a participação política. Ausculta o passar do tempo e vai lendo obras científicas. Lê muito obras científicas para não se desactualizar.

«Pensei que era uma suspensão na minha carreira, apenas isso. E lia imensas obras da minha especialidade que pedia aos camaradas que me arranjassem. Entretanto, uni-me ao homem que amava, tive um filho. Mas sempre aguardando o momento em que eu retomaria a carreira. Senti sempre e sinto a nostalgia de não seguir a vida da investigação científica.»

Na entrevista que dá a Helena Neves, não se inibe de falar da família e da vida clandestina: «O meu primeiro amor foi uma coisa muito complicada e simultaneamente uma coisa inesquecível. O primeiro amor… (…) A paixão viria mais tarde «e foi uma paixão à primeira vista. Olhei-o e pensei “Se não tiver mais ninguém, este há-de ser o meu companheiro”…» Sê-lo-ia. Durante anos. (…) «Queríamos ter um filho. Era um desejo partilhado. Era difícil economicamente, mas ousámos. Vivíamos privados de muita coisa mas porque, muitas vezes, estabelecíamos residência em zonas piscatórias ou agrícolas, sempre conseguíamos viver menos-mal. Recordo-me que numa das casas que tivemos, todos os dias passava um pescador a dar-nos peixe fresco só porque eu lhe dera umas calças velhas e uma camisola.»

Membro do Comité Central desde 57

Em 1957 no V Congresso do PCP é eleita membro suplente do Comité Central. Em 1959 é presa, abruptamente, e ficará presa desde Outubro de 1959 até Dezembro de 1969.

É logo nos primeiros dias de prisão, quando incomunicável, que Alda imagina a primeira história infantil, que termina já em liberdade e publicará em 1977: «A viagem numa Gota de Água.» – Uma escrita que corresponde à recordação do filho e de outras crianças atravessando a sua memória. E que corresponde também à necessidade de sobreviver, sem desespero, à incomunicabilidade.

«Quando estávamos completamente isoladas, só tínhamos o pente, o prato, o púcaro e pão. Nem lápis, nem papel, nem caneta. Deixaram-me ficar o bâton, que me serviu para fazer na mesa um jogo de xadrez com bolinhas de pão. Cada pessoa tentava enfrentar esta situação de isolamento. Eu entrei no caminho da recriação. Trazia para a minha mente coisas que me afastassem da realidade». E vai exercitar essa fuga indefinidamente. Nos interrogatórios. Nas horas pesadas de solidão da cela.

«As primeiras 24 horas são as mais difíceis, depois espera-se tudo. Também nos interrogatórios, eu imaginava como seria o Minho socialista ou esta ou outra terra, e desligava do que eles estavam para lá a dizer. Eles apercebiam-se e batiam com a gaveta. Isto foi uma espécie de defesa. Eu ia para outro mundo e imaginava una história para crianças.

Quando saí da incomunicabilidade tinha a história toda escrita na minha cabeça e uma das primeiras coisas que fiz foi passar a papel aquelas ideias, imaginei o desenho. Isto foi o alimento intelectual para este período. Pois foi assim que comecei a imaginar histórias… Escrevi, então, “A viagem numa Gota de Água”. Quanto à outra, “A Viagem numa Flor”, quando saí da cadeia já a tinha mais ou menos escrita, mas só depois é que a concluí.»

E na prisão, ao longo desses longos dez anos, Alda faz muitas amizades nas companheiras.

«Estive com várias amigas durante muitos anos – a Sofia Ferreira, Ivone Dias Lourenço, Maria da Piedade, Aida Paula, Matilde Bento, Maria Luísa Costa Dias e tantas outras. Passámos por várias situações. Houve salas com beliches (10 ou 12 pessoas) e outras menores. Dividíamos o dia em duas partes. De manhã levantávamo-nos e tínhamos de correr para tomar o banho quente (com o tempo contado e só uma por casa de banho). A inspecção e a contagem eram às 8H. Recebíamos um jornal diário – o Século – e líamos em colectivo. À volta da mesa fazíamos os nossos trabalhos. Fiz então as camisolas todas do meu filho, saias para a minha mãe, pegas para a cozinha, essas coisas… A Ivone fazia bonecas, caixas e outras coisas interessantes. Elas foram-me ensinando. A visita era às 10H, em geral de meia hora. Depois trocávamos as notícias… que não eram muitas pois a vigilância era muito grande. Almoçávamos. Repousávamos. E retomávamos o trabalho»

«Na prisão retiraram-me os melhores anos da minha vida. Irreversivelmente. As pessoas mudavam o carácter. Aquilo tinha tudo um efeito destruidor. As celas mediam 4m por 4m, contando com a casa de banho. Nas salas grandes fazíamos teatro, caricaturávamo-nos umas às outras, na brincadeira. Tínhamos direito a meia hora de gira-discos. A mim proibiram-me de ouvir uma sinfonia porque era tocada pela orquestra de Leninegrado. Os nossos tempos livres tinham grandes animadoras, cantava-se o fado. E cantigas de infância até!

O tempo tem uma contagem conforme se vive mais ou menos os acontecimentos. Ao fim de cinco anos de cadeia deixamos de ter a noção dos dias. O tempo deixa de contar. A sensação de sair em liberdade sozinha foi horrível. Eles tinham dito que eu saía e eu disse ao meu irmão para estar lá à minha espera. Anteciparam 24 horas e sai só, com duas malas grandes, num mundo que tinha mudado tanto. À porta da António Maria Cardoso foi horrível, não podia com as malas. Meti-me no eléctrico até à Rua do Ouro. Aí, meti-me num táxi e disse ao homem para me levar a Alcântara, ao Largo do Calvário. Quando saí tinha dificuldade em andar. Lembro-me de ir na rua com o meu filho e parecia-me ter um tapete rolante que me levava a cair. Fez-me muita impressão ver as pessoas juntas num eléctrico, num autocarro. Sentia as pessoas com um ar muito triste. O primeiro filme que fui ver o “Romeu e Julieta”. Quando veio o intervalo e vi todas as pessoas juntas, fiquei agoniada e vomitei o jantar todo e tive de me vir embora.

A vertigem dos espaços abertos. Sem grades. E o roçar da gente que vai ao nosso lado ou atrás de nós e passa à frente, e não é, afinal, um inimigo, como temíamos no coração feito pássaro de susto. Mas pode ser também a inocência no rosto apenas máscara, disfarce, armadilha. A maior partida não foi o amor que ma pregou, mas sim o fascismo. Se um homem andava atrás de mim, pensava logo que era PIDE.»

Em liberdade condicional, mas constantemente vigiada e perseguida, Alda Nogueira voltou à militância, e encontrava-se na Bélgica com o estatuto de refugiada política aquando do 25 de Abril de 1974.

Após Abril de 74

Depois do 25 de Abril foi também no combate pela libertação da mulher que se moveu – e fez mover outras mulheres – com paixão e empenhamento constantes. Colaborou no Suplemento “A Mulher” do Diário.

Publicou os livros infantis escritos ou imaginados na prisão: “Viagem numa Gota de Água” e “Viagem numa Flor” e “As coisas também se zangam”.

«Considero-me feliz e realizada, embora haja lacunas. Há aspectos em que fui defraudada, mas quem não foi, quem de nós que vivemos a maior parte da nossa vida sob o fascismo? Como mãe, o meu filho compensa-me do que eu sonharia. Como mulher, guarda recordações inesquecíveis. Descobri coisas que nem sequer pensava ser possível descobrir. Trabalhei e conheci pessoas extraordinárias.

Penso que só numa sociedade em que todos tenham acesso a tudo, a mulher poderá acabar com as discriminações. É um processo lento e não compensatório. Há problemas que não vão estar resolvidos tão cedo. Estou metida neste processo, não verei o seu fim, mas a minha preocupação é dar a conhecer às jovens de hoje, o que as mulheres fizeram. E tanto que foi!»

Deputada Constituinte

Foi deputada à Assembleia Constituinte de 1975 e eleita para a Assembleia da República em 1976, onde permaneceu até 1986.

Membro do C.C. do PCP e deputada de 1975 a 1985. Presidente da Comissão Parlamentar da Condição Feminina de 1983 a 1985, Maria Alda Nogueira permaneceu activa, interveniente, inquieta.

Para além de ter exercido o cargo de Vice-Presidente do Grupo Parlamentar do PCP durante 12 anos, integrou também várias comissões parlamentares.

Em 1988 foi condecorada com a Ordem da Liberdade pelo Presidente da República. Em 1987 recebeu a Distinção de Honra do Movimento Democrático de Mulheres.

Faleceu em 5 de Março de 1998. Entre as numerosas personalidades que estiveram presentes nas cerimónias fúnebres, no cemitério do Alto de S. João, encontrava-se o Presidente da República, Jorge Sampaio.

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