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Privatização dos transportes ferroviários de passageiros?

Em rigor o processo de privatização dos transportes ferroviários está já admitido há muito tempo na organização vigente para os transportes terrestres, que implicou a prévia separação da CP – transportes e das infraestruturas – REFER, depois fundida com a JAE nas Infraestruturas de Portugal – IP.

Curiosamente no domínio dos transportes ferroviários de passageiros, temos apenas uma situação em que foi criada uma nova empresa – a Fertagus – para um serviço que não existia.

Quanto à CP o processo de privatização arrancou na vertente da carga com a entrada de um novo operador – Takargo – tendo a CP Carga, resultante de autonomização jurídica, sido privatizada por alienação à Medway. Recentemente veio novamente a falar-se de privatização num contexto que sugere provocação.

 

O Comboio da Ponte

A Fertagus foi criada por concessão a um privado, na esfera do Grupo Barraqueiro, para assegurar o transporte de passageiros entre Lisboa e Setúbal, com utilização do tabuleiro ferroviário da Ponte 25 de Abril. A wikipedia – Fertagus contém sobre a empresa um artigo que parece ter origem institucional. A concessão não abrange ainda o percurso até à Gare do Oriente, em Lisboa não se entende bem se por razões legais ou outras – tem-se falado de que seria necessário quadriplicar a via a partir de Roma – Areeiro – e recentemente tem-se dito que deveria ir até Praias-Sado para servir o Campus do Politécnico de Setúbal. As linhas e as estações são da IP que de modo geral é responsabilizada pelas avarias. Curioso é que o material circulante também pertença ao Estado, o que quer dizer que o apport da concessionária é basicamente a organização do serviço e a contratação / formação do pessoal. Aliás estará previsto no contrato de concessão que em caso de aplicação do instrumento de regulação colectiva de trabalho da CP o Estado compensará a Fertagus(i).

Durante muito tempo a Fertagus fez grande alarde da qualidade de serviço e do cumprimento dos horários, com elevados índices de satisfação dos clientes e foi capitalizando as reivindicações de reequilíbrio da concessão, através de extensões temporais desta. No conjunto o grupo rentabilizou a sua imagem empresarial através da sua participação na privatização da TAP, entretanto revertida, e anuncia pretender candidatar-se a outros serviços na rede nacional ferroviária.

Pixabay

A imagem da empresa do “comboio da ponte” ficou estilhaçada quando, depois de assinada uma nova extensão da concessão a Fertagus, anunciou um aumento do número de comboios que fariam o percurso em toda a linha, isto é, entre Roma-Areeiro e Setúbal , quando até aí a maioria das composições circulava entre Roma-Areeiro e Coina. Pelo que tenho podido observar, muito mais gente se desloca de comboio de Setúbal até Lisboa o que é positivo para os setubalenses, e, em abstracto, para o ambiente([ii). Quem toma o comboio a horas de ponta no Pragal / Almada ou Corroios / Seixal tem mais dificuldades e por vezes tem de esperar pelas composições seguintes, ou seja, queima mais tempo nos transportes. E as horas de ponta nos regressos têm sido também difíceis. A Fertagus tem tentado ajustar os horários e o número de carruagens por composição e tem reforçado a informação aos passageiros, mas é como na conhecida história de o velho, o rapaz , e o burro… E houve quem, em nome dos utentes (???), tenha proposto voltar aos horários antigos, o que se me afigura impensável.

O Ministério, ao aceitar estender a concessão e aumentar os padrões da prestação de serviço sem garantir que o material circulante era suficiente, cometeu nitidamente um erro. Tive ocasião de o dizer no Fb a alguém que fez uns posts sobre o “Socialismo”, a falta de investimento público, etc. Aliás alguns comentadores supostamente especialistas em transportes deixam crer que aqui estão apenas envolvidas empresas estatais e que o problema é a coordenação entre elas.

Uma vez ou outra, quem passou de manhã o rio confiadamente a caminho de um local na margem norte vê o seu regresso ameaçado por avaria na linha ou no material circulante. No “apagão” de outro dia terá sido pior, mas aí houve quem viesse de boleia dada por desconhecidos, o que em rigor deve ser visto como exemplar.

 

CP – uma provocação?

Miguel Pinto Luz conseguiu durante o ano que durou o primeiro governo de Luís Montenegro dar ideia que não seguia uma agenda de hostilização do sector público empresarial e de privatização de tudo o que pudesse ser alienado, que tinha sido a dos dois governos de Passos Coelho.

Depois do Governo Passos Coelho que se propôs ir para além da Troika, no caso concreto do Município de Cascais passou-se a ir para além das próprias preocupações sociais que sob o Governo de António Costa levaram à aprovação do eloquentemente designado PART – Programa de Apoio à Redução Tarifária nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. O Município de Cascais aponta para a gratuitidade dentro do concelho e quando a candidatura de Moedas triunfa em Lisboa, pretende proporcionar aos munícipes melhores condições que as da Carris Metropolitana, sendo que a privatização da Carris (de Lisboa) não voltou a ser posta em cima da mesa.

Muito embora a CP tenha muito cedo adoptado uma organização interna por áreas de negócios não parece ter sido novamente posta em cima da mesa a recriação da “Sociedade Estoril” cuja concessão terminara em 1976 e fora integrada na CP entretanto nacionalizada, recriação que havia sido anunciada pelo Governo Passos Coelho em Novembro de 2011(iii). O então Ministro das Infraestruturas Pedro Nuno Santos iniciou um processo de revitalização da CP escolhendo um novo Presidente do Conselho de Administração, voltando a fundir a EMEF na CP(iv), apontando para o alívio da dívida histórica e para a contratualizando a contrapartida das obrigações de serviço público. Em rigor já os governos de Cavaco Silva tinham, em relação a outras empresas públicas, assegurado o reequilíbrio financeiro através da assunção de passivos pelo Estado. O actual Ministro prosseguiu nessa via e foi até mais longe criando um passe extensivo à CP com âmbito nacional e assegurando desde logo a compensação desta.

Onde os sucessivos Ministros não têm conseguido controlar as situações é no relacionamento com o pessoal da CP. Salvo erro estávamos em modo de ministro Galamba quando, em 5 de Abril de 2023, publiquei no Jornal Tornado o artigo “As greves do quase desespero” onde não pude deixar de fazer algumas referências ao caso ferroviário. Tanto na I República como no Estado Novo, como aliás em outros países, os ferroviários estiveram frequentemente envolvidos em lutas laborais. Afonso Costa em tempo de greve fazia circular os comboios com ferroviários como escudos humanos, para dissuadir sabotagens. Durante a ocupação de França os nazis terão tido idênticas preocupações. No nosso mais benigno Estado Novo aquando das eleições de 1969 um dos candidatos da CDE foi recusado por estar envolvido numa “Comissão Nacional de Ferroviários” ilegal. O afastamento da unicidade sindical na lei abriu o caminho, na CP, a uma extraordinária proliferação de estruturas sindicais onde, para além dos sindicatos tradicionais, democráticos, independentes, etc. sobressaem denominações que indicam no essencial estar-se perante sindicatos representativos de categorias. O que aliás também se verifica, com menor incidência, em outros sectores de transportes.

De modo que para além das condições de trabalho dos seus filiados, a generalidade dos sindicatos também vigia as posições relativas destes no contexto da CP. E muito embora se compreenda que o Sindicato dos Maquinistas, autónomo, sobre cujo Fundo de Greve tive em tempos oportunidade de escrever um apontamento(v) tenha uma posição decisiva, da qual usa aliás com moderação, há outros trabalhadores que procuram defender a sua posição própria, como os da revisão comercial itinerante. A administração da empresa está de modo geral sujeita a orientações da tutela, ou de uma tutela dupla, sobre medidas com impacto na massa salarial e tem de articular a satisfação ou recusa das várias revindicações.

Perceba-se que neste contexto a influência da CGTP e da sua Federação de Transportes – a FECTRANS – (e por maioria de razão a do PCP) é muito reduzida pelo que é absurdo pensar que determinam as greves da CP. E convém também dizer que, sob pena de perda de influência, não  estão em condições de tentar travar greves ainda que duvidem da sua oportunidade.

Durante este período registou-se uma greve dos maquinistas de protesto pelo anúncio do Ministro António Leitão Amaro, como grande medida de controlo dos acidentes ferroviários, de que os maquinistas iam passar a ser sujeitos a controle da condução sob álcool. No entanto o Ministro de tutela conseguiu dar a ideia de que estava efectivamente empenhado na paz social da empresa até que, estando todas as negociações coroadas de sucesso, recusou a ultrapassagem do acréscimo fixado para a massa salarial com a razão – ou pretexto – de o governo se encontrar em gestão.

A insatisfação foi generalizada e vários sindicatos, entre os quais o dos Maquinistas (SMAQ) e o da Revisão Comercial Itinerante anunciaram calendários de greve próprios, havendo alguns dias comuns. De modo geral estas situações são atenuadas pela definição de serviços mínimos, mas a sentença do tribunal arbitral do Conselho Económico e Social, presidido por Jorge Bacelar Gouveia, personalidade do PSD, invocou razões de segurança para não decretar serviços mínimos, que só poderiam sê-lo afectando o núcleo fundamental do direito à greve. Tivemos assim alguns dias sem comboios – os maquinistas são um corpo altamente disciplinado – e grande perplexidade e indignação públicas, lançando-se sem mais que a greve teria sido decidida pelo PCP. Curiosamente o coordenador da FECTRANS, que apoiava a greve, explicava, com inteiro bom senso, que o que importava era obter um compromisso público de que o acordo seria aprovado.

Miguel Pinto Luz afirmava, contra toda a evidência, que a greve era explicada pelo contexto eleitoral, Luís Montenegro, falou da necessidade de “pôr cobro” e até a Ministra da Justiça, Rita Júdice, sobre a acção da qual, tudo visto e ponderado, me parece justificar-se um elogio, foi mobilizada para se pronunciar sobre a situação, apesar de se salvaguardar com o não ter lido a sentença de Bacelar Gouveia.

É muito possível que a recusa do Governo autorizar a assinatura do acordo alcançado entre a empresa e os sindicatos tenha sido uma provocação para criar um efeito eleitoral ou para favorecer uma alteração à regulação do direito à greve no Código do Trabalho. Afinal de contas os prazos dos pré-avisos de greve foram alterados, uma vez, por exigência do então Ministro Paulo Portas a pretexto de uma greve do Metropolitano de Lisboa.

Mas pode também estar a causa a intenção de se passar a manter uma actuação governamental agressiva em relação à CP, na sua actual configuração.

 

Um troglodita

No meio das vozes anti-greve distinguiu-se um conhecido jornalista que mantém um espaço de opinião no Expresso, o qual como “solução”, propunha falir a CP, enviar (sem dó nem piedade?) o pessoal para o desemprego, e recuperar apenas os que quisessem trabalhar, isto é, não fazer greves.

Li no Expresso as linhas em que escreveu esta coisa, não me incomodei a transcrever ipsis verbis. Registo a aversão que mostra a quem trabalha para ganhar a vida e os meios que propõe utilizar para vergar aqueles a quem odeia. Tanto quanto me lembro teve uma formação de base jurídica. Como será que se propõe “falir” uma empresa que alcançou recentemente o seu reequilíbrio económico e financeiro?

Mas é preciso vigiar esta gente, lá isso é(vi).

 

Notas

(i) Até agora não se verificou esta circunstância, os conflitos laborais que afectam a circulação na Fertagus, que terá uma política de formação e valorização que parece ser bem aceite, são apenas as greves do pessoal da IP.

(ii) Pessoalmente utilizo o comboio entre Foros de Amora / Seixal e Lisboa, mas posso viajar fora das chamadas horas de ponta.

(iii) Cfr. artigo de Cristina Carvalho “A linha de Cascais e a Sociedade Estoril “ publicado em https://eshtoris.hypotheses.org/1245 em 19 de Janeiro de 2015 e actualizado em 29 de Julho do mesmo ano.

(iv) A EMEF fora autonomizada da CP para ficar equidistante de todos os futuros operadores, passageiros e de carga.

(v) Fundos de greve

(vi) Uma nota pessoal: o meu avô Filipe da Silva foi maquinista da CP, residia no Entroncamento e fazia a linha da Beira Baixa. Fui várias vezes passar férias ao Entroncamento já ele estava, creio, reformado. Nunca se meteu em “sarilhos” mas reza a lenda familiar que o fez para dar apoio quando necessário às famílias dos irmãos que se meteram neles.

Revisitando: A Eleição de Deputados à Assembleia da República

Em 2 de Janeiro de 2019 publiquei no Jornal Tornado em artigo intitulado “A eleição dos deputados à Assembleia da República”.

Desde aí realizaram-se quatro eleições para a Assembleia – em 2019, em 2022, 2024 e 2025, sendo as três últimas antecipadas, porque o Presidente da República entendeu dissolver a Assembleia.

Inicialmente as críticas ao sistema eleitoral prendiam-se sobretudo com a necessidade de aproximar eleitos e eleitores, uma vez que alegadamente estes acabariam por não conhecer bem os deputados eleitos, mas também porque dada a diferente dimensão dos círculos, nos círculos mais pequenos muitos votos seriam “perdidos”.

Ao contrário do que tenho visto por aí escrito, o sistema pelo qual se vota actualmente não veio do século XIX – no início do Estado Novo, mais concretamente entre 1934 em 1945 os deputados foram eleitos em círculo único nacional e de facto era a União Nacional que apresentava as listas, e foi a partir de 1945, quando Salazar anunciou “eleições livres, tão livres como na livre Inglaterra” que se começaram a utilizar círculos distritais. Simultâneamente o Governo, que dependia apenas na confiança do Presidente da República viu reforçada a sua capacidade de legislar por Decreto-Lei inaugurando uma tradição que se manteve em larga medida após a aprovação da Constituição de 1976. Mas a hipótese de que as oposições ganhassem as eleições gerais ou mesmo as eleições num ou noutro distrito, foi sempre meramente teórica.

As eleições para a Assembleia Constituinte de 1975 com base em diploma preparado por Governo Provisório fizeram-se por sistema proporcional mas com o Continente organizado em círculos distritais, quando, salvo o caso dos Açores e da Madeira se deveriam também ter feito por círculo nacional, o que deveria ter permitido a representação de um maior número de partidos.

No entanto a Constituição acabou por ser aprovada por uma Assembleia baseada numa representação desnecessariamente distorcida. Ficou consagrado que a futura Assembleia da República seria eleita pelo sistema proporcional e sem exigência de uma percentagem mínima para a conversão de votos em mandatos. Mas embora a mesma Constituição permitisse a instituição de regiões administrativas e determinasse a extinção dos distritos, que apenas subsistiriam como “autarquia provisória” a delimitação dos círculos eleitorais passou a basear-se … nos distritos. O aumento da população com capacidade eleitoral, e a progressiva perda de peso do interior, tem dado origem à redução do número de deputados eleitos por alguns distritos, em detrimento de outros. E de eleição para eleição repetem-se os dizeres sobre o número de votos “perdidos”, isto é, os que não elegem nenhum deputado.

O problema não é, tenho insistido, do método de Hondt, é da delimitação dos círculos eleitorais.

Foi entretanto a Constituição revista para prever tanto a existência de círculos uninominais como de um círculo nacional (usualmente referido como de compensação) mas mantendo a referência à possibilidade de existência de círculos plurinominais.

Artigo 149.º

(Círculos eleitorais)

1. Os Deputados são eleitos por círculos eleitorais geograficamente definidos na lei, a qual pode determinar a existência de círculos plurinominais e uninominais, bem como a respectiva natureza e complementaridade, por forma a assegurar o sistema de representação proporcional e o método da média mais alta de Hondt na conversão dos votos em número de mandatos.

2. O número de Deputados por cada círculo plurinominal do território nacional, exceptuando o círculo nacional, quando exista, é proporcional ao número de cidadãos eleitores nele inscritos.

Apresentava-se na altura como desejável o modelo alemão, mas há diferenças sensíveis a considerar

  • na Alemanha, até recente revisão da lei, podiam ser criados no Bundestag tantos lugares quantos fossem necessários para garantir a proporcionalidade(i) enquanto que em Portugal o número de lugares da Assembleia da República é fixo;-
  • com o fim do bipartidarismo anunciado por André Ventura se três grandes forças eleitorais disputassem os círculos uninominais seria impossível garantir um círculo nacional de compensação adequado a todos os cenários.

Nestas condições, julgo que seria desejável que ao número de deputados que a lei eleitoral viesse a fixar (entre os 180 a 230 admitidos pela CRP) se retirassem os 4 deputados tradicionalmente atribuídos aos dois círculos da emigração(ii), cujos lugares seriam preenchidos como habitualmente, sendo dos restantes:

  • metade atribuída a círculos regionais plurinominais, correspondentes às Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira e, no continente, às NUTS 2, ou até às NUTS 3 de acordo com o respectivo número de eleitores;
  • a outra metade reservada ao círculo nacional de compensação.

tendo cada candidato de se apresentar simultaneamente num círculo regional plurinominal e no círculo nacional.

NUTS II – Norte, Centro, Lisboa(iii), Alentejo, Algarve, Açores e Madeira
(fonte: Apontamentos Na Net)

Todavia, os lugares que viessem a ser atribuídos no círculo nacional de compensação aos partidos / coligações seriam preenchidos pelos candidatos de cada um deles não eleitos nos círculos regionais plurinominais, por ordem que reflectisse a percentagem de votos alcançada em cada círculo e não pela dimensão, em termos absolutos, do número de votos perdidos nos círculos regionais, a qual seria relevante para o computo do número de lugares a atribuir no círculo nacional de compensação ao partido / coligação mas não para a indicação dos candidatos que seriam providos nesses lugares.

Deste modo:

  • os partidos / coligações que normalmente elegem deputados teriam de apresentar nos diferentes círculos regionais plurinominais candidatos que fossem conhecidos no âmbito geográfico do círculo e a quem os eleitores soubessem como pedir contas;
  • os partidos / coligações que se soubessem menos implantados teriam mesmo assim de lutar para maximizar os seus resultados em cada círculo, pois esses resultados, em termos relativos, iriam determinar quem ocuparia os lugares na Assembleia e não deixariam de exigir que, embora não formalmente eleitos pelo círculo regional, os candidatos “repescados” através do círculo nacional mantivessem ligações com os eleitores do seu círculo regional;
  • no caso de os círculos regionais no continente corresponderem às NUTS 3 o conhecimento dos deputados pelos eleitores seria maximizado, e alcançar-se-ia uma “representação do território” (por deputados de vários partidos, eleitos directamente no círculo ou pela atribuição de mandatos pelo círculo nacional), mais intensa sem se cair em engenharias de delimitação do território do continente para fins meramente eleitorais;

NUTS III (anterior a 2015 e composto por trinta sub-regiões) e NUTS III (em vigor desde 2015 e composto por vinte e cinco sub-regiões)
(fonte: Apontamentos Na Net)

  • criar-se-ia uma dinâmica de recomposição da estrutura partidária, reduzindo o peso das distritais, ou levando mesmo à sua implosão, enquanto que no cenário da criação de círculos uninominais subdistritais, concelhios ou até subconcelhios, o seu peso cresceria avassaladoramente.

Esta última consequência não deixaria ser particularmente interessante.

O leitor poderá confrontar, com algum proveito, a versão “revisitada” deste artigo com a versão original de Janeiro de 2019.

A concluir não quero deixar de chamar a atenção, em termos de prejuízos sofridos por agora pequenos partidos, que para além do Livre, que cresceu nos sítios “certos”, e do ADN, que ainda não conseguiu o seu grupo parlamentar mas tem uma votação significativa, temos os casos do CDS que (tal como o PEV em tempos) só tem grupo parlamentar porque foi adoptado pelo PSD na AD, e os do PAN e do BE que perderam os grupos parlamentares.

O caso do BE, ex-terceiro partido, do ponto de vista de crescimento / retracção eleitoral é interessantíssimo, uma vez que cresceu com alguma expressão em zonas sociologicamente intermédias (Braga, Aveiro, Leiria, Santarém, Setúbal, Faro), e começou a retrair-se quando a dinâmica social se alterou, sendo a perda do deputado na Madeira explicada ao que me lembro, por um escândalo de viagens, e em Coimbra, talvez pelos humores de Boaventura Sousa Santos.

Chamei uma vez no Jornal Tornado a atenção para a vulnerabilidade do Bloco em termos de dependência das receitas parlamentares. Admito que o “escândalo” que, talvez não o fosse, do “despedimento” de grávidas tenha levado a uma “punição” de uma organização vista como “moralista”.

Impressionou-me mais a atenção aos negócios internacionais e a vontade de reproduzir em Portugal o sobressalto que permitiu ao Die Linke manter-se no parlamento alemão. Contudo enviar Louçã, Rosas e Fazenda a fazerem-se eleger nos antigos lugares das glórias do BE, eles que foram figuras emblemáticas de Lisboa, parecia, e era, desajustado.

De qualquer forma o parlamento português teve em Mariana Mortágua, por Lisboa, e em José Soeiro, pelo Porto(iv), dois dos seus melhores deputados.

 

Notas

(i) Uma recente alteração legal fixou um limite máximo.

(ii) Em rigor só deveriam ser considerados votos dos países em que todas as candidaturas nacionais pudessem fazer campanha.

(iii) Atenção para a elevação a NUT 2 já prevista para áreas actualmente integradas em Lisboa.

(iv) Deixou o lugar pouco antes das eleições para exercer funções como professor auxiliar na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, área de Sociologia.

Português em Timor-Leste promove o desenvolvimento da língua tétum

O desenvolvimento do tétum depende da língua portuguesa. Esta foi uma das principais mensagens retiradas da brilhante palestra de Célia Oliveira proferida na semana passada na Universidade de Díli.

Os inimigos da língua portuguesa tentam a todo o custo minimizar a importância desta língua no contexto de Timor-Leste. Alguns cidadãos, por ignorância, desconhecem as vantagens políticas, culturais e socioeconómicas da língua portuguesa. Mas, os tais inimigos da língua oficial da CPLP, fingem não saber que o desenvolvimento do tétum depende da outra língua oficial do País, a língua portuguesa.

Quem teve o privilégio de estar presente na “aula de sapiência” de Célia Oliveira, PhD em Ciências da Cultura na Especialidade em Cultura Portuguesa, ficou absolutamente esclarecido sobre esta matéria,  tendo sido demonstrado que a língua tétum é fortemente influenciada pela língua portuguesa na medida em que o tétum vive de empréstimos linguísticos do português.

Numa perspectiva diacrónica, esta linha de raciocínio faz todo o sentido se pensarmos que a colonização portuguesa em Timor-Leste durou 500 anos e, durante esse tempo, a língua utilizada na administração em todo o território nacional foi a língua portuguesa, fazendo com que a língua tétum sofresse múltiplas influências, cujo desenvolvimento depende de empréstimos linguísticos do português.

Os empréstimos linguísticos ocorrem na sequência do contacto que existe entre diferentes povos, que “falam e escrevem de formas diferentes, e começam a fazer uso de palavras e expressões de uma língua ou de outra, seja para nomear coisas, situações, processos ou comportamentos que, no geral, não possuem uma palavra em nossa língua como referência” (Sangina Esteves, 2019).

Daqui se depreende que devido ao facto de ter havido durante cinco séculos contactos entre leste-timorenses e portugueses, com a necessidade da comunicação, até por força da imposição cultural colonial, a língua tétum passou a incluir uma boa dose percentual do léxico português.

Por consequência, facilmente se compreende que o actual tétum (tétum-praça) resulta de uma transformação do tétum-terique (tétum vernáculo que mantém a pureza original), sendo uma mistura de tétum-terique e português.

 

Português é elemento aglutinador dos povos e países da CPLP

Uma outra mensagem partilhada por Célia Oliveira aos estudantes e docentes do Departamento de Língua Portuguesa e de Culturas da CPLP da UNDIL foi a de que a língua portuguesa deve ser um elemento aglutinador dos povos e países da CPLP.

Segundo a prelectora, a língua portuguesa, por ser transcontinental e transnacional, tem um estatuto especial:

Este estatuto é atingido graças ao poder político, militar, económico, cultural e científico-tecnológico do povo, do país e do Estado de que ela é língua nacional ou língua oficial..

E, citando Vítor Aguiar e Silva, Professor Catedrático da Universidade do Minho falecido em 2022, a académica da UNDIL defendeu que a língua portuguesa sempre desempenhou um papel importante, estabelecendo,

uma primordial marca simbólica, um inestimável instrumento de comunicação, em especial nas práticas administrativas e judiciais”.

Este estatuto é atingido graças ao poder político, militar, económico, cultural e científico-tecnológico do povo, do país e do Estado de que ela é língua nacional ou língua oficial.

Após ter referido que a significação de «lusofonia» é polissémica, tendo sugerido por essa razão que o assunto deve ser debatido, considerou que a lusofonia é a “expressão do diálogo, da convivência e do comungar multissecular de vários povos e várias culturas”, Célia Oliveira referiu-se aos três círculos da lusofonia:

  • Instituições (Instituto Internacional da Língua Portuguesa – IILP, Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP, União das Cidades Capitais Luso-Afro-Américo-Asiáticas – UCCLA, Associação de Universidades de Língua Portuguesa – AULP, Fórum da Gestão do Ensino Superior nos Países e Regiões de Língua Portuguesa – FORGES, etc.);
  •  Compõe as línguas e culturas nacionais de cada um dos nove países, e que muito contribuíram para a diversidade e riqueza linguística e cultural que a língua portuguesa encerra em si;
  •  Todas as instituições, pessoas e grupos alheios à língua portuguesa, mas que mantêm com esta relações de interesses vários, nomeadamente de afecto e de amizade.

Portanto, independentemente do estatuto que o português possua nos países onde é falado, devido ao facto de refletir o génio e a alma de diferentes povos, a língua portuguesa é uma língua de património.

Docente e estudantes participantes (UNDIL, 17/05/2025)

A prelectora, invocando o saudoso político e jornalista brasileiro Barbosa Lima Sobrinho, encerrou a palestra relembrando (interpretação minha) a importância de se retirar a carga paternalista que alguns querem impor e que impulsionou alguns Estados da CPLP a não ratificar o Acordo Ortográfico:

Há que pensar num idioma que não seja monopólio de portugueses e brasileiros. (…) Nenhuma nação do mundo lusófono pode ter a pretensão pueril de querer ditar normas e usos linguísticos às demais. No caso, o que todas as nações devem fazer é proceder ao conhecimento das diferenças, sempre em busca de uma unidade superior. Até porque a norma culta da língua comum estará sempre onde houver o desenvolvimento de cultura e civilizações como hoje ninguém ignora. Sem outras palavras, todas as nações do mundo lusofónico falam a mesma língua, mas cada um a seu modo”. (Barbosa Lima Sobrinho).

 

Célia Oliveira, Professora e Investigadora da Universidade de Díli

A Doutora Célia Oliveira é professora da Faculdade de Educação da Universidade de Díli e Coordenadora do Centro de Investigação e Formação Avançada (CIFA) da UNDIL. É licenciada em Línguas e Literaturas Modernas – Variante de Estudos Portugueses e Ingleses, Ramo Educacional, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto; é Mestre em Estudos Ingleses pela Universidade do Minho; é Mestre em Ensino da Língua Portuguesa Língua Segunda e Estrangeira, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa; e é Doutora em Ciências da Cultura, Especialidade em Cultura Portuguesa, pela Universidade do Minho. Recentemente, recebeu os certificados de competência profissional em tradução e em tradução jurídica pela Associação Portuguesa de Tradutores.

Tem experiência de vinte e cinco anos na área da educação em vários países da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, nomeadamente Portugal, Brasil, Angola e, nos últimos oito anos, em Timor-Leste.

Para além de ter trabalhado durante vários anos no ensino regular, possui uma larga experiência, quer como professora / formadora, quer como coordenadora de cursos e de equipas pedagógicas, na área do ensino recorrente e alternativo: no Reconhecimento e Validação e Certificação de Competências, na Educação e Formação de Adultos, no Ensino Recorrente e em Cursos de Educação e Formação.

Os conhecimentos atrás indicados levaram a que várias instituições, nos diferentes países onde trabalhou, a convidassem a desempenhar funções de consultoria, coordenação e assessoria: em Portugal, foi consultora sobre implementação de Cursos de Educação e Formação de Adultos e do processo de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências de jovens e adultos; no Brasil, foi consultora de educação; em Angola, foi Diretora Interina do Departamento de Letras Modernas e docente do Instituto Superior de Ciências da Educação do Uíge (Angola); em Timor-Leste, no Parlamento Nacional, desempenhou funções de docência, bem como de especialista em educação.

A apresentação que preparou, intitulada, “A língua portuguesa como elemento aglutinador da lusofonia”, é o resultado das suas investigações que decorrem desde a realização da sua tese de doutoramento.

A queda do velho mundo

Enquanto a generalidade da imprensa mantém a nossa atenção centrada na guerra comercial, iniciada pela administração Trump, ou na guerra da Ucrânia (agitando o perigo russo para justificar a inevitabilidade dos massivos investimentos europeus na defesa), alastram os sinais da aproximação de mais uma crise.

Só neste século, a Europa já enfrentou quatro grandes crises. Primeiro, a crise global provocada pelo rebentamento da bolha do subprime norte-americano – crise financeira desencadeada em meados de 2007, em resultado da concessão de empréstimos hipotecários de alto risco (subprime) por empresas como a Fannie Mae e o Freddie Mac, controladas pelo governo norte-americano, cuja titularização e disseminação pelo sistema financeiro, a par com as evidentes falhas na regulação bancárias, arrastou alguns bancos para uma situação de insolvência fortemente repercutida sobre as bolsas de valores mundiais –, depois a crise do euro – mais correctamente a crise da dívida pública europeia, que colocou alguns países do sul da Zona Euro em situação de impossibilidade de pagamento ou refinanciamento, normalmente atribuída ao seu excessivo endividamento e nunca à excessiva exposição da banca a esse tipo de dívida, que tornou difícil ou mesmo impossível, o pagamento ou o refinanciamento da sua dívida pública sem a ajuda externa.

A terceira foi a crise da Covid-19, situação infecciosa a que os vários governos responderam com políticas de confinamento que geraram problemas de produção e de ruptura das cadeias de distribuição a nível global. Por último e ainda mal refeitos dos efeitos das três primeiras crises, surgiu a partir de 2022 a crise gerada pela guerra da Ucrânia e especialmente pela resposta ocidental com a aplicação de sansões económicas à Rússia que era apenas a principal fornecedora de energia barata à Europa… com os resultados sobejamente conhecidos: a mais completa ineficácia no plano militar (a guerra continua e a Ucrânia estará cada vez mais longe de conseguir resolver a situação por essa via) enquanto no campo económico as populações europeias se viram condenadas a suportar uma inflação e uma quebra na sua produção industrial grandemente originada no desnecessário encarecimento da energia.

Neste primeiro quartel do século, enquanto os europeus viveram esta sucessão de crises que lhes roubaram disponibilidades financeiras e a fragilização dos mecanismos do estado social como o conheciam, os norte-americanos viram elevar a sua dívida federal acima dos 120% do PIB (em vinte anos passou de 5% para 123% do PIB) que já os obriga a suportar um encargo anual com o serviço da dívida de quase 900 mil milhões de dólares, ao mesmo tempo que o desempenho bolsista da GAFA (grupo de empresas do sector tecnológico onde pontificam a Alphabet (Google), a Aple, a Meta (Facebook, WhatsApp e Instagram), a Amazon e a Microsoft) registavam valorizações estratosféricas, completamente desligadas da realidade económica norte-americana e mundial, como o comprovou a reacção desproporcionada ao aparecimento de um do concorrente chinês no mercado da IA, DeepSeek, que provocou uma queda de 17% na cotação da Nvidia (principal fabricante mundial de semicondutores e actualmente muito focada no campo da Inteligência Artificial), assim reacendendo a possibilidade de rebentamento de uma nova bolha tecnológica.

Embora este possa não ser o evento percursor de uma nova crise financeira mundial, tal como a guerra na Ucrânia não se deverá transformar numa guerra mundial, já a crise financeira que os EUA atravessam, que os esforços de Trump tentam esconder enquanto a sua política de tarifas a procura disseminar pelo resto do mundo, poderá atingir outra dimensão – porque os choques tarifários vão ter seguros reflexos nas economias reais e no cada vez mais precário rendimento das famílias, enquanto a flutuação das cotações bolsistas fazem desaparecer milhões que na realidade nunca existiram –, tanto mais que o sector financeiro não estará muito melhor preparado – leiam-se as recentes declarações do secretário de estado do tesouro norte-americano em prol do abandono das regras bancárias criadas na sequência da crise do subprime – nem muito mais diversificado do que em 2008.

A financeirização das economias trouxe-nos a um ponto onde o dinheiro gera mais dinheiro sem a menor ligação à economia real, mas sendo nesta que as pessoas vivem (ou apenas sobrevivem…) está a deixar-nos agora perante uma encruzilhada de onde podemos perceber os escombros por ela criados e mal antever o que nos trará um novo paradigma financeiro, que nos prometem assente em criptomoedas e numa IA ainda em desenvolvimento, tendo como pano de fundo o estertor do império norte-americano que ameaça não desaparecer sem tudo tentar destruir à sua volta.

Abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes é total desumanidade

Este domingo (18) marca os 25 anos da instauração do Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. A data registra o bárbaro crime ocorrido em 18 de maio de 1973, no Espírito Santo, quando a pequena Araceli Cabrera Crespo, de 8 anos, foi raptada, drogada, estuprada, morta e carbonizada.

Os suspeitos Paulo Constanteen Helal e Dante de Barros Michelini (Dantinho), filhos de famílias ricas, foram inicialmente condenados. No entanto, a sentença foi anulada anos depois e ambos absolvidos. Como se vê, não é apenas na justiça espanhola que o dinheiro escancara a face cruel do poder econômico.

“Muito importante falar desse dia para marcar uma forte posição contra a violência que cresce no Brasil contra crianças e adolescentes”, diz Aline Aparecida Maier, secretária-adjunta da Juventude Trabalhadora da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), pois “o nosso país maltrata as nossas crianças demais e o abuso sexual ocorre principalmente dentro dos lares, onde a proteção deveria ser a regra”, complementa.

A data foi escolhida para alertar a sociedade sobre a necessidade de proteção às crianças e aos jovens, para nunca mais se repetir crimes hediondos como o caso de Araceli, e igualmente para reforçar a necessidade de políticas públicas permanentes para a ação de combate à violência sexual contra crianças e adolescentes.

Alinhada ao Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, também criado em 2000, a data reforça o compromisso do governo Lula no combate a essa prática criminosa.

Isso porque “a sociedade brasileira tem se revelado uma sociedade extremamente conservadora e violenta contra crianças e adolescentes”, reforça Celina Arêas, secretária da Mulher Trabalhadora da CTB. Para ela, é fundamental “um amplo trabalho de conscientização sobre a importância de se respeitar a infância e a juventude com proteção a essas pessoas em desenvolvimento”.

Como diz Berenice Darc, secretária de Relações de Gênero da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), “uma sociedade que maltrata crianças é uma sociedade profundamente adoecida”.

Para Berenice é “preciso um grande trabalho de educação das famílias com o envolvimento de toda a sociedade sobre a importância de proteção às nossas crianças de todo tipo de violência”.

O problema, acentua Vânia Marques Pinto, presidenta da Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag), é que “a violência vem crescendo assustadoramente e, com a chegada da internet, a coisa se intensificou de diversas maneiras, tanto na cidade quanto no campo”, por isso, “é fundamental regular o funcionamento da internet e das redes sociais”, porque “no campo a situação é mais grave porque via de regra o Estado está menos presente”.

Ela defende a “criação de políticas eficazes de fiscalização e punição sobre quem difunde imagens ou mensagens de cunho sexual de ou para crianças e adolescentes, assim como a responsabilização das plataformas que permitem esse tipo de crime”.

Como mostram os dados do SaferNet, em 2024 havia 2,65 milhões de usuários em grupos e canais do Telegram (mas em todas as plataformas se veem grupos extremistas com mensagens de violência e de ódio) com imagens de abuso e exploração sexual infantil.

Isso ocorre porque ainda “não temos políticas eficazes de enfrentamento a esses grupos e, com isso, o ódio tem na internet um forte mecanismo de difusão”, alega Francisca Pereira da Rocha (Professora Francisca), dirigente da Apeoesp – Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo, da CNTE e da CTB.

As preocupações das sindicalistas se baseiam em dados concretos de pesquisas recentes, como o 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024, que aponta números astronômicos de registros de estupros anualmente, e para piorar 61,6% das vítimas são meninas de até 13 anos, com mais de 80% dos crimes ocorrendo dentro de casa por pessoas conhecidas das vítimas, por isso se diz da subnotificação das denúncias.

Lei 13.431/2017 define como abuso sexual toda ação promovida por adultos que utiliza a criança ou o adolescente com objetivos de satisfação sexual, seja presencialmente ou por meio digital. Já a exploração sexual é aquela onde o adulto obriga a criança à prostituição.

A Professora Francisca destaca a necessidade de ampla divulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, e dos preceitos da Constituição Federal e um debate sobre o que “estamos fazendo com nossas crianças”.

Para ela, “a escola não tem como resolver todos os problemas, mas tem um papel fundamental no processo de combate ao ódio difundido pelas redes sociais e no combate às plataformas que ‘desafiam’ as crianças a cometerem atrocidades”.

Isso porque dados do Atlas da Violência 2025, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), com dados do Ministério da Saúde, apontam que, de 2013 a 2023, cento e quinze mil crianças e adolescentes foram vítimas de violência no país. E crianças de até 4 anos são vítimas de abandono e falta de cuidados. Dos 5 anos em diante sofrem violência psicológica, física e sexual.

Aline lembra que estamos no Maio Laranja (instituído pela Lei 14.432/2022), pelo qual “o governo do presidente Lula intensifica ações de combate ao abuso e à exploração sexual de crianças e adolescentes, assim como põe a Polícia Federal nessas ações para desbaratar redes de pedofilia”.

Isso porque, “nos dois governos anteriores, as políticas públicas para esse fim foram desmanteladas, facilitando a ação dos criminosos”, conclui.

A Campanha Faça Bonito agrega inúmeras entidades e convida a sociedade a fazer bonito defendendo as crianças das agressões covardes de adultos infelizes.

Além disso, “é preciso ressaltar que a internet não pode ser terra de ninguém. Necessitamos de monitoramento e rígida legislação para impedir essa propagação”, acentua Gleicy Blank, secretária da Mulher da CTB-ES.

Mas como o real resiste, “é essencial promovermos ações de educação de toda a sociedade para o necessário enfrentamento a todo tipo de violência contra crianças e adolescentes nas escolas, nos sindicatos, nos movimentos sociais, nas igrejas, na roça, enfim em todos os lugares”, afirma Aline.

Denuncie:

Qualquer cidadã ou cidadão pode denunciar toda violência de que tiver conhecimento pelo Disque 100, pelo Ligue 180 ou em denúncias às polícias ou aos conselhos tutelares de forma anônima.


Texto em português do Brasil

Morreu Mujica, um dos grandes líderes de esquerda da América Latina

Hoje decidi homenagear o ex-presidente do Uruguai, José Alberto Mujica Cordano, conhecido por Pepe Mujica, falecido esta semana, vítima de cancro. Foi um líder socialista reconhecido na América Latina e em todo o mundo, tendo sido membro do Movimento de Libertação Nacional-Tupamaros.

José Cordano notabilizou-se no âmbito da guerrilha e especialmente em 1969 quando os guerrilheiros ocuparam uma unidade policial, agências bancárias e uma central telefónica.

Durante a luta de libertação, Mujica foi ferido várias vezes em combate e no início da década de 70 foi preso em conjunto com muitos líderes tupamaros, fortemente torturado e sofreu de forma bárbara na prisão durante mais de dez anos.

Fonte: Latin America Bureau “O início do movimento tupamaro”

O movimento Tupamaro actuava no âmbito político e armado. Com génese na década de 60, inspirava-se em movimentos de esquerda e era apoiado por agricultores e grupos de centro de esquerda.

O nome adoptado pelo movimento foi uma homenagem a um líder indígena assassinado pelos espanhóis no séc. XVIII, que se opôs ao colonialismo, e que se chamava Tupac Amaru. O movimento dos Tupamaros assumiu-se como socialista e tinha como principal finalidade fazer a revolução e a guerrilha urbana como forma de luta.

A guerrilha urbana inspirou a luta de outros de povos, nomeadamente, em Timor-Leste, como foi o caso da Brigada Negra (BN), uma força especial das FALINTIL, coordenada por Avelino Coelho (Shalar Kosi F.F., na altura líder da AST – Associação Socialista de Timor) e sob supervisão do Comandante das FALINTIL, Kay Rala Xanana Gusmão. A Brigada Negra, recorde-se, distinguiu-se na luta de libertação nacional de Timor-Leste na guerrilha urbana e os seus membros foram condecorados pelo Presidente da República.

José Alberto Mujica Cordano nasceu em Montevidéu, em 20 de Maio de 1935, foi um revolucionário e um lutador em defesa dos mais pobres, tendo sido uma pedra fundamental do Movimento de Libertação Nacional – Tupamaros.

Amigo e defensor dos agricultores e dos trabalhadores, chegou a ser ministro da agricultura em 2005. Foi presidente do Uruguai, entre 2010 e 2015, e Senador até 2018.

Era respeitado em todo o mundo por ser um Homem simples e humilde, residia num local modesto e conduzia o seu próprio carro quando se dirigia para a sede do governo.

Pepe Mujica morreu no dia 13 do corrente mês deixando o mundo mais pobre e vulnerável ao neoliberalismo e ao imperialismo.

Que repouse em paz!

Momento de reflexão

Este artigo é o número 200 dos que venho publicando como colunista do Jornal Tornado, em colaboração iniciada em 29 de Janeiro de 2018 com “Haverá lugar para os think tanks na política portuguesa?”. Agradeço ao Director, João de Sousa, o convite e a forma como tem mantido o título a funcionar e a Rute Henriques a forma como tem ilustrado os artigos ou mesmo assegurado a introdução de vídeos, como no caso de “Activistas climáticos”. Devo igualmente a esta última a paciente introdução de rectificações que vou pedindo quando me apercebo de deficiências nos originais que submeto.

Tenho tido muita honra em publicar ao lado de Arnaldo Xarim e Eugénio Rosa, para apenas citar os artigos produzidos mais recentemente, e dos colunistas do Brasil e de Timor-Leste, em especial de M. Azancot de Menezes, cuja discussão sobre a eventual suspensão da abertura de cursos superiores em Timor-Leste, recentemente publicada, tenho por modelar.

Quando fui convidado o Director João de Sousa atribuiu-me um espaço de 45 palavras para apresentação. Ficou assim:

Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

Mas justificam-se algumas explicações adicionais.

Economista

Os leitores do Jornal Tornado conhecem o meu cepticismo quanto à delimitação desta profissão (Os Economistas e as eleições na sua Ordem). Nos meus primeiros dez anos após a licenciatura exerci funções no Departamento Central de Planeamento, sucessor do Secretariado Técnico da Presidência do Conselho, num período em que foram dirigentes diversos juristas e sobretudo engenheiros. Investi aí e também no então Instituto Superior de Economia, no qual que leccionava a tempo parcial, na área de Finanças Públicas, e no Departamento, no domínio da orçamentação plurianual. Pressenti que a adesão à ainda Comunidade Económica Europeia iria contribuir para diluir a capacidade criada no domínio do planeamento, inclusive na construção de modelos (julgo que João Cravinho terá em tempos escrito um artigo sobre esta evolução) aliás o entretanto redenominado Departamento de Prospectiva e Planeamento acabou a sua vida como organismo do Ministério do Ambiente (!!!) em cujas instalações da Rua do Século pude consultar muito mais tarde parte dos seus arquivos.

Alguns dos meus antigos colegas ressentem a perda das capacidades desse tempo. Não tenho escrito muito no Jornal Tornado sobre isto, mas uma vez ou outra chamei a atenção para a dificuldade de concretizar um PRR quando se não dispõe de um modelo que incorpore as restrições da capacidade da indústria de construção e obras públicas, se insiste em disparar ”bazucas” com uma economia sobreaquecida por tensões inflaccionistas e em vez de modular o esforço de investimento com vista à “reindustrialização” se opta por acelerá-lo à custa de um empolamento dos custos.

 

Exerceu actividade em Gestão Pública… Mestre em Administração e Políticas Públicas. Doutor em Sociologia, especialidade de Sociologia Política

Depois de dez anos num Departamento Central que tendia a ver-se como o “centro” do mundo, ou pelo menos da Administração, procurei conscientemente oportunidades de exercer funções na “periferia”, tendo passado por vários Ministérios. Trouxe várias vezes ao espaço do Jornal Tornado relatos de algumas destas experiências, explicando num caso ou noutro em que qualidade as enfrentei. Para mim não fazem sentido as sínteses curriculares em que alguém declara que “é” “ex-isto ou aquilo“.

A “volta à Administração” acabou para mim com o exercício de funções nos serviços de apoio ao Tribunal de Contas, onde já me encontrava quando frequentei no ISCTE o Mestrado em Administração e Políticas Públicas, e no ISCTE-IUL o doutoramento em Sociologia, especialidade em Sociologia Política, sendo que aquela instituição reorganizou há anos as suas áreas curriculares. A minha tese de doutoramento O Progresso da Ideia de “Gestão Empresarial” na Administração Pública Portuguesa, a que me referi várias vezes no Jornal Tornado, teve upload em Academia.Edu e deixo aqui link para o Repositório da instituição, alertando para que não se trata de uma tese mainstream:

Repositório do Iscte – Instituto Universitário de Lisboa: O progresso da ideia de gestão empresarial na administração pública Portuguesa

Por Manuelvbotelho – Obra do próprio, CC BY-SA 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=29894439

A frequência de formação conducente a graus académicos no ISCTE foi totalmente independente da minha lecionação de Gestão do Sector Público a finalistas no Instituto Superior de Gestão. A minha ligação contratual com esta instituição privada, neste momento integrada no Grupo Lusófona, cessou em 2011.

 

Exerceu actividade… em recuperação de empresas

Faltará explicar que me envolvi com a problemática da recuperação de empresas quando entre 1995 e 1999 desempenhei funções no GACRE e na AUDITRE em ligação com a qualidade de membro dos Gabinetes, primeiro do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, António Carlos dos Santos, e depois do Ministro das Finanças, António de Sousa Franco, qualidade que adquiri por confiança pessoal e não por confiança política. Mais uma vez reitero que os membros dos gabinetes não são membros do Governo.

Tenho publicado no Jornal Tornado diversos artigos sobre a matéria, dos quais o mais “noticioso” será Insolvência e Recuperação: campo para juristas ou para economistas? mas fará sentido dar aos leitores acesso à dissertação de Mestrado em Administração e Políticas Públicas Apoios públicos à transferência de titularidade de empresas em situação difícil. O contributo da alienação de créditos, que redigida dois anos depois do termo desta experiência (por forma a salvaguardar um período de nojo mínimo), incidiu não sobre Administração Pública mas sobre uma política pública.

 

Investiga em História Contemporânea

Esta referência era indispensável na apresentação, há 7 anos, do novo colunista, para se compreenderem os interesses actuais do autor, que, logo após a conclusão do doutoramento em Sociologia se inscreveu, após algumas trocas de impressões, em outro doutoramento do ISCTE – IUL, mais precisamente no de História Moderna e Contemporânea – Especialidade em Política, Cultura e Cidadania.

Porquê? Porque o doutoramento precedente me mostrara a existência de grandes lacunas em termos de identificação de documentação pertinente para o estudo da Administração Pública e das “políticas de administração pública”, designadamente durante o Estado Novo, e sobre os mecanismos de influência da cooperação internacional na formulação dessas políticas. E porque, se uma preocupação saudável na preparação de “projectos de tese” na área de História Moderna e Contemporânea determina que os candidatos a doutoramento se assegurem primeiro da existência e acessibilidade de núcleos documentais que suportem o estudo dos temas que seleccionaram, no meu caso pessoal o imperativo foi o de, ao estudar os mecanismos que me propus tratar, identificar o máximo possível de documentos e salvaguardar, inclusive por transcrição, a informação e opinião neles contida. Que credenciais tinha para o fazer? a posse de um doutoramento, ainda que noutra área, mostra pelo menos que o titular está apto para realizar investigação autonomamente, a aprovação na parte escolar (exigente) deu-me um Diploma de Estudos Avançados (3º Ciclo) na área de História Moderna e Contemporânea, o órgão competente da instituição aprovou o projecto de tese(i). Que recursos? Bem, a minha “bolsa” tem sido a pensão de aposentação fixada em 2014, mais tarde majorada como pensão unificada, que suportou inclusive algumas deslocações a Bruxelas – à sede do Instituto Internacional de Ciências Administrativas e à Biblioteca Real da Bélgica, e a Paris – à sede da OCDE.

Publiquei em 2019 o primeiro dos três estudos que previa viessem a ser reunidos em nova tese em O Sítio do Livro, com a denominação As Secções Nacionais Portuguesas do Instituto Internacional de Ciências Administrativas (1908-2012) e, com o acordo da editora, em Academia.Edu. Está há algum tempo também disponível no site do Jornal Tornado

É um trabalho feito, posso asseverá-lo, com a preocupação de preservar o maior rigor na utilização das fontes, o que implicou o frequente recurso a transcrições de textos em português e em francês na forma ortográfica original. E que me tem permitido outras pequenas pesquisas que têm propiciado a redacção de artigos que têm sido de igual modo publicados no Jornal Tornado e até a publicação em 2022 de um novo estudo, cujo título os leitores reconhecerão: A Intendência-Geral do Orçamento – História de um Organismo que Nunca Existiu (1929-1996), que pode continuar a ser pedido a O Sítio do Livro.

Anote-se que tenho procurado chamar a atenção para os opúsculos do Gabinete de Estudos António José Malheiro, felizmente quase todos acessíveis na biblioteca digital do Ministério das Finanças e para a Revista de Contabilidade Pública, infelizmente ainda não acessível.

Também já expliquei o porquê de não terem avançado outros trabalhos (Inacessibilidades).

Recentemente, a utilização das fontes com que o leitor está familiarizado permitiu-me escrever, a propósito da realização no Porto de um Congresso Internacional de História da Contabilidade promovido pela Ordem dos Contabilistas Certificados, um texto que, com o título “Por que razão falhou a introdução da contabilidade digráfica na Administração Pública do Estado Novo“, também ficou acessível no site do Jornal Tornado.

Como garantia da preocupação de rigor na difusão destas despretensiosas Incursões em História Contemporânea, consulte-se o blog, organizado à margem do blog onde fui publicando artigos de opinião.

Na altura em que escrevo este artigo, existe necessidade de um momento de reflexão sobre a importância e a viabilidade de continuar.

Na colaboração mantida até agora, julgo ter conseguido diversificar temas embora talvez sem conseguir manter sempre o interesse dos leitores. Os artigos mais penosos para mim foram contudo os que me vi forçado a escrever evocando os falecidos António Carlos Santos e André Freire. Aqui deixo mais uma vez a minha homenagem e reparo, agora, em relação a ambos assinalei uma vivência sindical (no ensino superior) comum: com o António Carlos, no SPGL, e com o André, no SNESup. Alguma coisa ficaria por dizer, mesmo neste talvez último artigo.

 

Nota

(i) Que, confirmei-o à data em que concluo este artigo, consta do RENATES – Registo Nacional de Teses e Dissertações, como tese de doutoramento em curso através do ISCTE-IUL.

A cultura e os dilemas da Igreja Católica

A Igreja Católica exerceu um protagonismo político marcante entre os séculos VII e XV. Esse domínio foi crucial para a consolidação do que chamamos de mundo ocidental, impondo padrões de conduta, crenças e uma rígida definição dos papéis sociais. Por meio de seus dogmas, colaborou para a construção de impérios e legitimou, com a disseminação do medo e de teorias sobre a alma e a salvação, invasões, dominação violenta de povos, processos de catequização, escravização e diversas formas de abuso.

Por outro lado, discussões em seu interior também deram origem a ideias humanistas, como aquelas que inspiraram a Teologia da Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base.

Em seus 12 anos de pontificado, o argentino Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco, conseguiu renovar a imagem da Igreja, abalada por décadas de conservadorismo, repressão, escândalos sexuais e financeiros, além de perseguições políticas. Francisco não mudou a instituição, mas lhe deu ares mais leves, humanitários e mais graça.

No momento em que escrevo, sua morte, em 21 de abril de 2025, ainda repercute, e tem início um novo Conclave — o quinto nos últimos 50 anos. Embora cinco Papas em meio século pareça muito para quem os testemunhou, trata-se de um intervalo breve diante da longa trajetória da instituição.

Uma história marcada por debates filosóficos, que também ecoam na cultura. Desde tempos imemoriais, a religião é tema recorrente nas artes — teatro, música, literatura, pintura e cinema — não como mera fantasia, mas como veículo de questionamentos e reflexões que renovam, com o tempo, a compreensão da fé e da espiritualidade.

Irmão Sol, Irmã Lua

O filme Irmão Sol, Irmã Lua, de Franco Zeffirelli (1972), por exemplo, apresenta um dilema moral quando Francisco de Assis (interpretado por Graham Faulkner), despojado de bens materiais, confronta a opulência da Igreja ao chegar a Roma e ser recebido pelo Papa Inocêncio II (até o ano de 1143, no filme interpretado pelo ator Alec Guinness).

“Não armazenem seu tesouro aqui na Terra. Não podem servir a Deus e ao dinheiro”, diz Francisco.

O Papa, por sua vez, responde:

“Descobri a minha vocação há muito tempo, mas o entusiasmo se perdeu com as responsabilidades da administração. Estamos cercados de riqueza e poder. E você, em sua pobreza, me causa vergonha”.

A narrativa se desenrola na transição da Alta para a Baixa Idade Média, período que já sinalizava o surgimento da burguesia — refletido na família de Francisco — e questionamentos ao poder clerical, que, no entanto, ainda perduraria por quase cinco séculos.

Os Bórgias

Esse cenário de transformações — marcado pelo declínio da autoridade absoluta da Igreja e da monarquia — é retratado na série Os Bórgias, de Neil Jordan (2011) centrada na figura de Rodrigo Bórgia, o Papa Alexandre VI (falecido em 1503), interpretado, na série, por Jeremy Irons.

A série aborda eventos históricos como a peste, o fato de o Papa constituir família — incluindo amantes e filhos —, o papel de Lucrécia Bórgia e o uso político dos casamentos e a presença de Maquiavel, cuja obra nasce das mudanças políticas daquele período e inaugura uma nova concepção de poder. É um contexto que representa o surgimento de uma nova classe dirigente, que desbanca a hegemonia eclesiástica e real.

O Banheiro do Papa

Já no século XX, Karol Józef Wojtyła, eleito Papa em outubro de 1978, adotando o nome João Paulo II, imprimiu ao cargo um inédito perfil midiático e voltado à cultura de massa.

Anticomunista, João Paulo II liderou a Igreja nos anos finais da Guerra Fria e enfraqueceu grupos progressistas, o que afetou diretamente organizações populares e a militância de esquerda como as Juventudes Católicas, a JOC, a JUC, a Ação Católica Operária e os padres operários, entre outros.

A crítica ao afastamento entre o pontífice e o povo pobre é retratada na comédia O Banheiro do Papa, de Enrique Fernández, César Charlone (2008), que mostra a expectativa de uma família da cidade uruguaia de Melo, próxima à fronteira com o Brasil, durante a visita de João Paulo II.

A população pobre sonha com lucros vindos dos turistas, mas a realidade frustra as esperanças: ninguém consome nada, e o esforço se desfaz com a brevidade da visita. É uma história que mostra a contradição entre a pompa da Igreja e as carências do povo.

Conclave

Atualmente, a instituição está longe de ter a influência que exerceu até o século XV. No entanto, mesmo diante das tensões entre tradição e modernidade, a Igreja manteve suas bases e continua capaz de mobilizar multidões.

Esse embate entre passado e presente é tematizado no filme Conclave, de Edward Berger (2024), cujo enredo gira em torno da eleição de um novo Papa. Um momento emblemático ocorre quando o cardeal de Cabul, o mexicano Vincent (interpretado por Carlos Diehz), afirma:

“Nos últimos dias, temos demonstrado ser um grupo de homens pequenos, mesquinhos. Interessados somente em nós mesmos, em Roma, na eleição e no poder”.

Sua fala ecoa a do cardeal Lawrence (Ralph Fiennes), que pondera sobre a importância da dúvida:

“A certeza é inimiga da tolerância. Mesmo Cristo não estava certo no fim: ‘Meu Deus, Meu Deus, por que me abandonaste?’ Rezemos para que Deus nos conceda um Papa que duvide. Que Ele nos conceda um Papa que peque, peça perdão — e siga em frente”.

Vincent e Lawrence apontam para a urgência de reformas, o reconhecimento da fragilidade humana e, ao mesmo tempo, o resgate do princípio fundamental da fé: a comunhão e o crescimento espiritual.

Cultura e debate

As quatro obras citadas — Irmão Sol, Irmã LuaOs BórgiasO Banheiro do Papa e Conclave — promovem reflexões sobre a história, o poder e os dilemas da Igreja Católica.

Um debate que se impõe a partir do legado de Papa Francisco cuja trajetória resgata a memória de lideranças religiosas inspiradoras como Dom Helder Câmara, Dom Paulo Evaristo Arns, Pedro Casaldáliga, Dom Tomás Balduíno e, atualmente, Padre Júlio Lancelotti.

Assim, ressalto não apenas o entrelaçamento entre cultura e religiosidade, mas também, a despeito do reacionarismo que atravessa a história da Igreja, o outro lado deste debate: as ideias e ações humanistas que influenciaram a formação de líderes e movimentos progressistas, como, no Brasil, as Ligas Camponesas, o MST, o PT e o PCdoB.

 


Texto em português do Brasil

Internacionalização da língua portuguesa na ASEAN

A Embaixada da República de Angola em Timor-Leste foi inaugurada, em Díli, com a presença do Presidente da República, membros dos governos de Angola e de Timor-Leste, académicos, oficiais das forças armadas, dirigentes partidários, empresários, representantes da igreja católica e vários diplomatas.

O Embaixador Extraordinário e Plenipotenciário da República de Angola em Timor-Leste, José Andrade de Lemos, tornou pública uma «Nota de Imprensa» onde destacou a importância da “Cooperação Bilateral, com destaque para os domínios político e económico, bem como, ao nível da Cooperação Multilateral das Nações Unidas”.

 

Ensino da língua portuguesa na ASEAN para a sua internacionalização

Os governos de Timor-Leste e de Angola, conforme se pode ler na Nota de Imprensa, defendem que há necessidade de “expandir o Ensino da Língua Portuguesa na Região da ASEAN”.

As duas entidades, governos de Angola e de Timor-Leste, comungam a ideia da necessidade de se expandir o Ensino da Língua Portuguesa na Região dos Países do Sudeste Asiático, com vista a uma ampla internacionalização da mesma.

José Ramos-Horta (Presidente da RDTL)

 

Mais de 200 convidados na inauguração da Embaixada de Angola

A Embaixada de Angola em Timor-Leste está localizada na Marginal de Díli, Avenida de Portugal, Praia dos Coqueiros, nº 68, em Díli, e foram convidadas cerca de 200 personalidades, das mais diversas proveniências, política, diplomática, cultural, científica, económica, religiosa, empresarial, o que é revelador da visão do Embaixador Andrade de Lemos em relação à dimensão da cooperação que Angola pretende desenvolver com Timor-Leste.

Em representação do Ministro das Relações Exteriores (MIREX) de Angola, esteve presente o Embaixador Osvaldo dos Santos Varela, Secretário de Estado para a Administração, Finanças e Património do MIREX, que inaugurou oficialmente, no passado dia 6, a Embaixada da República de Angola na República Democrática de Timor-Leste.

José Andrade de Lemos (Angola) e Benjamim Freitas (MNEC)

Da parte de Timor-Leste, marcaram presença o Presidente da República, José Ramos-Horta, a Vice-Presidente do Parlamento Nacional, Maria Teresinha Viegas, o novo Presidente do Tribunal do Recurso, Afonso Carmona, o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Bendito dos Santos Freitas, o Ministro da Justiça, Sérgio de Jesus Fernandes da Costa Hornay, os Embaixadores de Portugal, Cuba e da União Europeia.

No seio das duas centenas de convidados, de forma mais reservada, testemunharam o acto, o General Falur Rate Laek, o Tenente-General Lere Anan Timur, Mari Alkatiri (Secretário-Geral da FRETILIN), Roque Rodrigues (Comissário Nacional do Instituto Internacional de Língua Portuguesa em Timor-Leste), o Pe. Joel Pinto (Reitor da Universidade Católica Timorense), M. Azancot de Menezes (Pró-Reitor da Universidade de Díli e Secretário-Geral do PST) e Abílio Araújo (Empresário), entre outros.

Festa cultural em Timor-Leste e Dia Mundial da Língua Portuguesa

O Presidente da República, José Ramos-Horta, o Embaixador de Angola, José Andrade de Lemos, a Embaixadora de Portugal, Maria Manuela Bairos, a Embaixadora de Cuba, Grisel Inniss, a Ministra-Conselheira do Brasil, Rita Marques, a Vice-Ministra do MNEC, e a comunidade lusófona residente em Timor-Leste, entre outras entidades, juntaram-se em Díli para uma grande festa cultural da CPLP.

José Andrade de Lemos, Embaixador de Angola em Timor-Leste e Presidente da República, José Ramos-Horta

A iniciativa partiu de Mirabilia Sarmento, Presidente da AEGCTL, no âmbito das comemorações do Dia Mundial da Língua Portuguesa, envolveu várias associações e centenas de cidadãos de Angola, Brasil, Cabo Verde, Moçambique, Portugal e Timor-Leste, residentes em Díli, tendo incluído a angolana Fernanda Formoso da Silva, docente do Departamento de Língua Portuguesa e de Culturas da CPLP da Faculdade de Educação da Universidade de Díli (UNDIL).

O Dia Mundial da Língua Portuguesa é celebrado anualmente, no dia 5 de Maio, por ter sido aprovado numa Sessão da Conferência Geral da ONU, em 2019. É oficial em 10 países e territórios e falada por mais de 280 milhões de pessoas. É considerada a quinta ou sexta língua mais falada em todo o mundo, estando em múltiplas organizações da União Africana, da União Europeia e em outras regiões.

O Embaixador de Angola, José Andrade de Lemos, após a visita ao “Espaço Gastronómico e Cultural de Angola” acompanhado do Presidente da República de Timor-Leste, José Ramos-Horta, e da Embaixadora de Portugal, Maria Manuela Bairos, manifestou a sua grande satisfação:

O envolvimento da comunidade angolana nesta festa cultural alusiva à língua portuguesa em Timor-Leste com a apresentação da gastronomia e das danças de Angola é uma manifestação de alegria e de inequívoco compromisso com a CPLP, na sua promoção e desenvolvimento cultural, económico e político.

José Andrade de Lemos

A festa cultural da CPLP realizou-se no passado dia 3 de Maio, em Díli, sob o lema “Festival do Feijão”, e teve como principal finalidade promover o desenvolvimento da cooperação e cultura entre os povos da CPLP e cidadãos de outros países a residir em Timor-Leste.

Fernanda da Silva e Equipa no “Espaço Gastronómico e Cultural de Angola”

Os EUA não parecem apenas perdidos… | Parte II

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A opção da actual administração norte-americana pela aplicação de tarifas protectoras, invariavelmente classificada na Velha Europa como atentatória do livre comércio e fruto de um governo errático, talvez deva ser vista numa perspectiva diferente; a de um sistema político-económico que se reconhece à beira de um precipício, sempre negado, mas cada vez mais próximo e mais profundo.

Se o mais recente sinal tem sido a agitação em torno das tarifas aplicadas pelos EUA às suas importações, outros, menos propalados mas não menos graves, se têm registado, com destaque para o anúncio do abandono das regras bancárias criadas após crise do subprime, feito pelo secretário de estado do tesouro durante uma recente conferência da American Bankers Association, onde defendeu o alívio das restrições relativas aos capitais próprios dos bancos, no que apenas pode ser entendido como uma clara confirmação das dificuldades financeiras que a economia norte-americana atravessa e o prenúncio da próxima crise financeira.

Tal como a actuação do DOGE (o departamento para a eficiência onde pontifica o inefável Elon Musk) só pode ser entendida pela absoluta necessidade de reduzir uma despesa incontrolável e financeiramente insustentável, também a apregoada ideia de recuperar o tecido produtivo norte-americano graças ao aumento do preço das importações deve ser avaliada enquanto sinal do estertor há muito anunciado da oligarquia local. Depois de décadas a vermos, ouvirmos e lermos críticas e denúncias de outras oligarquias, está cada vez mais difícil disfarçar o que realmente tem germinado e governado a maior economia do mundo e, pior, o mais poderoso exército de todos os tempos.

Por conveniência própria, o Ocidente tem exposto e condenado as oligarquias e os apparatchiks orientais, escondendo as suas próprias fragilidades e idiossincrasias, mas a sucessão de acontecimentos como o Watergate, o escândalo Irão-Contras ou a absurda ideia de impor a democracia no Médio Oriente pela força (para só falar nos mais recentes e de natureza política, mas onde não se pode esquecer o absurdo que foi a política de deslocalização industrial e a absoluta loucura que tem sido a financeirização das economias e a sua repercussão em várias crises económico-financeiras de dimensão global) foram revelando a verdadeira dimensão de um modelo de desenvolvimento completamente capturado pelos interesses financeiros (oligarquia) , em vias de esgotamento e cada vez mais dependente de mecanismos de corrupção.

Sendo por demais conhecidos os efeitos da aplicação de tarifas protectoras, invariavelmente expressos na sufocação da concorrência, no aumento da inflação, na limitação ao crescimento económico e, facilitando soluções ou alternativas de natureza casuística, no crescimento da corrupção generalizada, admitir que os EUA estão em vias de se tornarem uma economia superprotegida por um muro tarifário elevado não passa de mais um eufemismo para esconder uma realidade muito pior que a que se deixa transparecer. Falar nas tarifas prontamente impostas sobre as importações chinesas, sobre as importações de matérias-primas como o aço ou o alumínio, nas ameaças de agravar as tarifas sobre todas as importações mexicanas, canadianas e europeias, ou na sugestão de tarifas semelhantes sobre todas as importações de automóveis, produtos farmacêuticos, semicondutores e madeira, enquanto crescem as ameaças de retaliação com tarifas “recíprocas” contra qualquer país que pense reagir de igual modo, não é sinal de incongruência ou mera prepotência, podendo (e devendo) ser visto como claro reflexo de sobrevivência.

Este tipo de actuação costuma encontrar-se nas chamadas economias emergentes (como o reconheceu o CEO da Euronext) e em especial nas que revelam profundos problemas, nomeadamente grandes défices orçamentais e um elevado peso de dívida pública, que é precisamente a situação da economia norte-americana, que no início deste ano apresentava um défice orçamental de 6,5% do PIB, e uma dívida pública que a FED St Louis coloca perto dos 122% do PIB, cenário francamente pior que o do final da Segunda Guerra Mundial e bem diferente do que seria de esperar de uma economia desenvolvida e com um nível de emprego estável, a acreditar nos números oficiais.

Não fosse a escolha de Trump por uma política de reduções fiscais em benefício dos mais ricos, que segundo o Comité para um Orçamento Federal Responsável irão agravar o défice orçamental dos EUA entre 5 biliões e 11 biliões de dólares na próxima década, talvez este fosse o momento para tentar um orçamento equilibrado mas, segundo aquele mesmo organismo, o que iremos ter será o contínuo aumento da dívida para níveis cada vez mais incomportáveis…

…enquanto cresce a evidência da instalação de uma verdadeira oligarquia em Washington, tal é o número de bilionários que integram ou pululam em torno da administração Trump (onde pontificam figuras como Jeff Bezos, Mark Zuckerberg e a figura de proa da campanha pela eficiência governativa, Elon Musk (que agora se diz em vias de abandonar as funções), ou os secretários de estado Scott Bessent e Howard Lutnick (que ocupam as pastas do Tesouro e do Comércio, respectivamente), e os vemos minar persistentemente a confiança nas instituições públicas e, especialmente, no banco central.

Por fim, a abordagem altamente errática à formulação de políticas económicas, criadora de uma atmosfera de grande incerteza que corrói a confiança de investidores e consumidores, expressa em tonitruantes anúncios de proibitivas tarifas que nos dias imediatos são adiadas ou completamente alteradas, na demissão em massa de funcionários públicos que, exposta a sua indispensabilidade, são depois recontratados, começa a produzir efeitos palpáveis com a queda dos principais mercados bolsistas e a corrosão daquela que tem sido a grande vantagem dos EUA: a confiança dos investidores na igualdade de condições para todos os participantes no mercado. Mesmo que esta vantagem seja apenas aparente, desperdiçando-a, a administração Trump arrisca um desgaste reputacional acrescido, altamente preocupante para as perspectivas económicas internas (convém não esquecer que o objectivo anunciado para a agressiva política tarifária do trumponomics é o aumento do investimento e da produção interna, algo fortemente dependente da capacidade de atracção de capitais externos e da confiabilidade norte-americana), potenciador de uma quebra no PIB que já é estimada na ordem dos 160 mil milhões de dólares, mais um reflexo do desperdício das suas vantagens e uma clara antevisão de uma recessão mundial para a qual não haverá resgate do FMI que nos valha.

 

Os EUA não parecem apenas perdidos… | Parte I

Mulher negra, nordestina, comunista e candomblecista toma posse como a primeira presidenta da Contag

Vânia Marques Pinto concede esta entrevista pouco antes de sua posse como a primeira presidenta eleita da Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag), em chapa única com mais de 96% dos votos.

A cerimônia acontece nesta quinta-feira (24), mas a posse efetiva no dia 28 porque a gestão atual encerra o seu mandato no domingo (27).

Com sua postura serena de sempre, Vânia segue trilhando seu caminho com a candura que a leva em frente sem hesitações. Incessantemente firme na defesa dos direitos das trabalhadoras e dos trabalhadores do campo, essencialmente das agricultoras e dos agricultores familiares, os principais responsáveis pela produção de alimentos no país.

Em especial sobre o que se convencionou chamar de “comida de verdade”; totalmente consciente de sua responsabilidade por ser a primeira mulher a presidir a maior confederação camponesa da América Latina, com mais de 60 anos de existência, que há pouco tempo resolveu definir a paridade entre mulheres e homens como lógica em sua direção.

Vânia sente-se fortalecida como mulher negra, nordestina, comunista e candomblecista, por conter “as coisas nas quais acredito e que me fazem ser quem eu sou” e “nesse lugar florescem meus princípios, minhas crenças e meus valores, e me fazem mais forte. Porque vou imprimindo no mundo a minha marca, o meu jeito de ver e entender o mundo e isso me traz força para lutar pelo que acredito”.

Segundo ela, “o fato de ser a primeira mulher carrega um simbolismo muito forte” porque “representa a força da mulher agricultora. O sentimento que me domina neste momento é de extrema alegria, me sinto honrada por representar a conquista e a realização do sonho de várias mulheres que é ter uma mulher ocupando esse lugar, o nosso lugar”.

Além do mais, ela destaca que as mulheres já superam os homens na militância sindical e no trabalho do campo. “Nós mulheres somos a maioria entre as pessoas que trabalham no campo, assim como na agricultura familiar e também na atuação sindical. Por isso, chegamos a uma mulher no principal cargo da Contag depois de 61 anos de existência. E não vamos parar mais”, garante.

Vânia acentua também acreditar e lutar por um “mundo livre das desigualdades, um mundo onde as pessoas possam viver livres, amarem e serem amadas e sobretudo que a classe trabalhadora tenha vida digna e possa usufruir do que produz”.

Leia a íntegra da entrevista:

É muita responsabilidade ser a primeira mulher a presidir a Contag?

Sem sombra de dúvidas é uma grande responsabilidade. Estamos falando da maior confederação da agricultura familiar da América Latina. Então estar na presidência da Contag é uma grande responsabilidade e o fato de ser a primeira mulher nesse cargo carrega um simbolismo muito forte, representa a força da mulher agricultora.

O sentimento que me domina neste momento é de extrema alegria, me sinto honrada por representar a conquista e a realização do sonho de várias mulheres que é ter uma mulher ocupando esse lugar, o nosso lugar.

A Contag segue avançando e rompendo barreiras. Conseguimos eleger a primeira presidenta da entidade. E não vamos parar por aí.

Acredita na força das mulheres que abriram caminhos para que uma mulher pudesse chegar à presidência da Contag?

Sei bem que represento hoje as várias mulheres que vieram antes de mim e construíram esse caminho, para que hoje fosse possível ter uma mulher na presidência da Contag. Tenho a plena convicção de que serei a primeira de muitas outras que virão.

Para não ser injusta e esquecer diversas mulheres sindicalistas rurais importantes, cito a Margarida Maria Alves, barbaramente assassinada a mando de latifundiários no dia 12 de agosto de 1983, aos 50 anos. Em homenagem a ela foi criada a Marcha das Margaridas, importante manifestação que destaca a luta das mulheres no campo brasileiro.

Nós mulheres somos a maioria entre as pessoas que trabalham no campo, assim como na agricultura familiar e também na atuação sindical. Por isso, chegamos a uma mulher no principal cargo da Contag depois de 61 anos de existência. E não vamos parar mais.

O campo te ensinou muitas coisas?

O campo me ensinou e continua ensinando muita coisa. Mas destaco que o principal ensinamento foi eu entender que faço parte da natureza, que carrego em mim essa energia, me ensinou que o respeito à terra é fundamental, que dela eu me nutro e consequentemente o trabalho na terra nutre e dá condições da vida.

Ser mulher negra, comunista, agricultora familiar, nordestina, e do candomblé te dá ainda mais força?

Quando a gente reconhece a essência e nossa identidade, isso automaticamente nos traz força. Quando me reconheço mulher, negra, candomblecista, nordestina, agricultora e comunista, me encontro nas coisas nas quais acredito e que me fazem ser quem eu sou.

Nesse lugar florescem meus princípios, minhas crenças e meus valores e me fazem mais forte. Porque vou imprimindo no mundo a minha marca, o meu jeito de ver e entender o mundo e isso me traz força para lutar pelo que acredito.

E acredito num mundo livre das desigualdades, um mundo onde as pessoas possam viver livres, amarem e serem amadas e sobretudo que a classe trabalhadora tenha vida digna e possam usufruir do produzem.

Como você chegou ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e qual a importância do partido em sua trajetória?

Conheci o PCdoB em 2004-2005. Coincidindo com o período quando comecei o curso de Pedagogia da Terra pelo Pronera (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária). No curso, havia vários colegas de turma de vários partidos políticos e sem partido como eu. Mas foi com o PCdoB que me identifiquei.

Depois ao ter contato com a Fetag-BA (Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado da Bahia), que tinha deputado eleito e vários militantes do partido, não tive dúvidas de que me filiaria ao PCdoB, pois foi um dos primeiros partidos a organizar a luta pela terra e organizar a classe trabalhadora no campo.

Mais mulheres em cargos de direção nos sindicatos, federações e confederações podem empoderar o movimento sindical?

Tem um ditado que diz: quando uma sobepuxa outra. Então mulheres conscientes do seu papel, mulheres na luta antimachista sem sombra de dúvidas podem empoderar outras mulheres e consequentemente o movimento sindical.

Dá para somar a luta por reforma agrária e valorização da agricultura familiar com a defesa da igualdade de gênero?

Eu acredito muito, mas muito mesmo, nisso. Como dizem as companheiras de luta, “sem mulher a luta vai pela metade”.

Hoje nós mulheres somos maioria em número de sindicalizadas, estamos no campo, na floresta e nas águas e na luta pela terra, nos acampamentos e assentamentos da reforma agrária. Então essa soma não é só possível, como também é muito necessária.

É possível ter candura e firmeza ao mesmo tempo?

Esse é um ensinamento que carrego para a vida. E se fortaleceu ainda mais quando entendi minha essência, que é a fluidez das águas. Na mitologia, Iorubá Osùn venceu uma guerra sem levantar uma espada. E tenho buscado internalizar cada dia mais os ensinamentos daquela que nutri meu Orí.

Candura e firmeza, embora pareçam opostas, na minha visão não são. Eu posso dizer o que eu quero, fazer a luta necessária e ao mesmo tempo imprimir generosidade, amorosidade e candura, principalmente para aquelas e aqueles que estão ao meu lado nessa trincheira.

Como mulher negra enfrentou muitos preconceitos, consegue citar algum?

Eu sou uma mulher negra de pele clara e alguns traços indígenas (minhas avós tinham uma descendência indígena muito forte). E sei que aqui no Brasil quanto mais escura for a cor da sua pele, mais racismo se sofre. Então eu nunca vivi situações de racismo explícito. Mas daquele racismo velado sim.

E o fato de ser mulher isso se mistura muito facilmente com machismo. Já percebi olhares tortos ao entrar em uma loja, por exemplo, e ter que entoar um tom de voz mais firme para ser ouvida. São coisas que na maioria das vezes passam despercebidas.

Lembro-me bem que já passei por racismo religioso. Não é todo mundo que olha com ar de naturalidade as pessoas de religião de matriz afro-indígena. Os olhares dizem mito da maneira preconceituosa com que nos veem.

Você se aproximou da comunicação, como você vê a comunicação sindical atualmente?

Ao longo da minha jornada formativa, tive o privilégio de ter ensino superior, coisa que poucos na minha família tiveram. Hoje temos um número maior na família, mas fui a primeira a fazer faculdade e ter um mestrado. Tive também a oportunidade de, além da universidade, poder me tornar educadora popular da Escola Nacional de Formação da Contag (Enfoc).

A comunicação veio um pouco mais tarde, quando assumi a secretaria geral da Fetag-BA. E nessa experiência percebi que a comunicação sindical é fundamental, mas ainda temos um bom caminho a percorrer, principalmente na atualidade onde a forma de se comunicar mudou muito. Aqueles jornais dos anos 2000 já não são tão atrativos como os vídeos de tik tok (embora por gosto pessoal eu prefira ler do que ver vídeos).

Fora que hoje tudo é muito mais rápido. Depois da velocidade 2.0, é muito difícil prender a atenção de uma pessoa por muito tempo. Então eu vejo que se adaptar a essa realidade é um grande desafio.

Então acredita na necessidade de se investir mais em comunicação nos sindicatos?

Acredito que a comunicação sindical pode ser um instrumento importante para combater as falsas informações, mas para isso tem que chegar nas pessoas, em suas redes sociais, em suas casas, nos próprios sindicatos. Essa é a forma que acredito ser necessária para se contrapor aos valores e ideias da burguesia.

Precisamos de uma comunicação atualizada, com todos os mecanismos das novas tecnologias, mas sem perder de vista a nossa essência. Por isso, devemos insistir na regulação da internet e das redes sociais, exigindo responsabilidade das big techs, assim como de todos os meios de comunicação. E combater as fake News como uma obrigação tenaz em defesa da ciência, da cultura, dos direitos humanos, da agroecologia, da natureza e da vida.


Texto em português do Brasil

Know Nothing Party

O regresso de Trump à presidência dos Estados Unidos, está, muito mais que o seu desempenho durante o primeiro mandato, a chamar a atenção para o formato peculiar da instituição presidencial americana, que viria a ser copiada por outros países, designadamente na América Latina.

André Maurois na sua História dos Estados Unidos(i), num capítulo em a título de introdução se debruça sobre o Século XIX e o princípio do Século XX refere-se deste modo ao presidente:

Eleito directamente pelo povo, ele é simultaneamente, diria um inglês, o rei e o primeiro-ministro; foi plebiscitado como um Bonaparte, diria um francês; o presidente possui, durante a duração do seu mandato, THE DIVINE RIGHT TO GOVERN WRONG (o direito divino de governar mal) mesmo se o seu partido sai vencido das eleições e está em minoria no Congresso. Porém, ele próprio deve respeitar a regra do jogo, O sistema americano permite de facto um sábio equilíbrio dos poderes. O presidente tem o direito de veto; o Congresso dirige o orçamento e pode passar por cima do veto presidencial mercê de uma maioria de dois terços; o acordo do Senado é necessário para aprovar os tratados e as nomeações para os cargos importantes; o Supremo Tribunal é o mais poderoso dos obstáculos, uma vez que as suas decisões são inapeláveis.

Não se pode dizer, contudo, que Trump, e até os republicanos no seu conjunto, estejam a respeitar a regra do jogo. A sucessão de presidentes republicanos e democratas deveria permitir ir equilibrando a composição do Supremo Tribunal, mas uma nomeação feita por Obama foi bloqueada e Trump, no primeiro mandato, aproveitou a seguir as suas oportunidades. Biden veio a ter problemas com o Supremo Tribunal e Trump, no novo mandato, espera ser protegido por este, como já o foi no período a seguir ao primeiro mandato em processos que tinha pendentes, podendo contar com que os juízes dos tribunais federais inferiores que se lhe oponham sejam desautorizados pelo Supremo. Entretanto está a tentar que a Câmara dos Representantes decrete o impeachment de juízes federais que estejam a bloquear decisões presidenciais, controla estreitamente os serviços da Attorney General(ii), afasta os advogados destes que litigaram contra si e até consegue intimidar alguns dos grandes escritórios privados.

Aliás Trump controla muito mais os membros do Gabinete por si nomeados que no primeiro mandato, tendo escolhido muitos destes – tal como os seus representantes diplomáticos e enviados especiais – entre conhecidos pessoais, e estando a controlar muito mais tanto o partido republicano como os membros republicanos da Câmara, assim como quer controlar os serviços, por exemplo na área da Saúde, do Clima, da Investigação Científica e das Forçar Armadas, e das próprias Universidades. Não se trata apenas de abrir caminho a desregulamentações que beneficiam os grandes interesses económicos, quer-se também impedir o acesso ou a própria produção de informação que possa ser utilizada pelo público. Não tendo ilusões quanto à credibilidade que merece, quer impedir que esta possa ser aferida por outros.

Há um aspecto em que os poderes presidenciais americanos incorporam prerrogativas que tradicionalmente pertenciam aos reis, e que nos E.U.A. têm sido usados e abusados sem que a sua utilização seja impugnada na Justiça. Refiro-me ao direito de perdoar criminosos, o que aqui tem sido muito utilizado, sobretudo em fim de mandato, para perdoar gente para quem o presidente cessante tem dívidas de ordem política. Trump fê-lo o início do primeiro mandato e ao “inaugurar” o actual perdoou os cúmplices condenados pela invasão do Capitólio em Janeiro de 2021. Biden decidiu-se a perdoar o filho e um conjunto de titulares de cargos políticos, republicanos e democratas, e de altos cargos públicos que Trump ameaçava perseguir depois de tomar posse. Nenhum chefe do Estado europeu se prestou a fazer figuras deste género.

A fomento do ódio aos estrangeiros, designadamente aos imigrantes, como arma política foi muito notável no primeiro mandato de Trump, na sua campanha eleitoral, e está a sê-lo no início deste segundo mandato.

No seu livro André Maurois assinala que em meados do século XIX suscitou alguma discussão a vinda de imigrantes europeus de países tal como a Irlanda, a Alemanha e a Polónia, predominantemente católicos. Para uma visão mais directamente política do fenómeno prefiro transcrever um excerto de A Autópsia dos Estados Unidos, da autoria do alemão L.L. Mathias, cuja primeira edição foi publicada em 1953 que li em tradução julgo que do final dos anos 1960 pela Editora Ulisseia(iii):

Sob o mandato do segundo presidente, John Adams, o prazo de residência necessário para obter a naturalização foi prolongado até catorze anos; um determinado grupo que se intitulava sob o nome significativo de “nativista” era mesmo de opinião que esse prazo era insuficiente e reclamava que fosse elevado para vinte e um anos. Esses nativistas não eram um punhado de sectários políticos, pois que, desde as primeiras eleições em Nova Iorque, recolheram nove mil votos num total de vinte e três mil. Tinham escolhido tão bem a sua palavra de ordem que, depois, todo o movimento político que reclama para si o mesmo princípio está seguro de reunir uma grande parte da população. Nisso reside a razão do êxito da A.P. A., a American Protection Association, ou do movimento “ignorantin” dos KNOW NOTHING e sobretudo do Ku-Klux-Klan, o qual era dirigido não apenas contra os negros, mas de uma maneira geral contra todos os estrangeiros.

Compulsando The Presidents of the United States of America, 6ª edição, 2ª impressão, 1975, publicado pela The White House Historical Association, encontramos uma referência a um ex-Presidente, Millard Fillmore (1850-1853), que fora Vice-Presidente de Zachary Taylor, tendo sido promotor de um compromisso entre estados sobre a introdução ou não da escravatura nos Estados do Oeste, se candidatara em 1956 por um Know Nothing Party ou American Party sem conseguir ser eleito. A referência ao Know Nothing Party consta também de George de Washington a Bush, a História dos 43 Presidentes 1979-2008, da autoria de Rita Ibérico Nogueira e Fernando Sobral.

Um artigo na Britânica explica que este movimento nativista predominantemente anti – católico cresceu a partir de 1850, atingindo 43 membros no Congresso que se reuniu em Dezembro de 1855, caindo para 12 no ano seguinte. Millard Fillmore conseguiria apenas ganhar no estado de Maryland.

A Wikipedia em língua inglesa contém numerosos dados sobre a implantação do Know Nothing Party.

Millard Fillmore

Movimento ignorantin como refere A Autópsia dos Estados Unidos?(iv) Uma explicação para o nome Know Nothing será a de que o movimento recomendava aos seus membros que quando inquiridos por outras pessoas sobre o tema, dissessem nada conhecer, mas esta qualificação de L.L. Mathias sugere uma postura anti-intelectual que se mantém em outras versões nativistas que substituem o desprezo pelos europeus católicos, pelo desprezo pelos amarelos que nas décadas seguintes começaram a surgiu nos EUA ou pelos índios hispanizados da América Central cuja entrada Trump tem procurado impedir ou cuja deportação está a tentar promover. O desprezo pela ciência, pela cooperação sobre o clima, pelo intercâmbio em matéria de saúde também sugerem esta postura. Aliás alguns dos materiais publicados fazem uma aproximação entre os Know Nothing do século XIX e o trumpismo.

 

Notas

(i) Integrada na Histoire Paralèle des États Unis et de L´Union Soviétique, 1963, editada em Portugal em tradução pelas Publicações Europa América

(ii) Depois de ter tentado nomear Attorney General um presumível criminoso.

(iii) Curiosamente o livro não se encontra na Biblioteca Nacional de Portugal embora o meu professor de inglês no Liceu Padre António Vieira lhe tenha feito referência em aula.

(iv) L.L. Mathias não explica a sua qualificação. A sua crítica ao desenvolvimento dos E.U.A. tem a ver com considerar os seus padrões como reflectindo as preocupações de uma acquisitive society com perda da referência a uma hierarquia social, vigente na Europa.

Os EUA não parecem apenas perdidos… | Parte I

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A opção da actual administração norte-americana pela aplicação de tarifas alfandegárias protectoras, invariavelmente classificada na Velha Europa como atentatória do livre comércio e fruto de um governo errático, talvez deva ser vista numa perspectiva diferente; a de um sistema político-económico que se reconhece à beira de um precipício, sempre negado, mas cada vez mais próximo e mais profundo.

As tarifas punitivas, apresentadas por Trump como uma via para o fortalecimento do investimento e da produção interna, sustentadas no argumento dos desequilíbrios das balanças comerciais, não passarão afinal de um meio para atingir o principal objectivo da sua administração de abrir uma frente de “guerra” com a China e promover uma espécie de reajustamento interno por via da redução do consumo e do aumento do investimento . Isso mesmo parece ressaltar do constante jogo de avanços e recuos (moratórias incluídas) e da própria sustentação técnica do seu cálculo, que, focada exclusivamente na balança de mercadorias ignora os superavits das balanças de serviços, revela uma completa ausência de fundamentação teórica e é denunciada pelo primitivismo, pela arbitrariedade e pela completa ausência de ponderação (nada de novo na gestão privada e pública de Donald Trump) com que tem sido apresentada e aplicada.

Escudada na palavra de ordem «Make America Great Again», a estratégia de Trump revela todo o seu simplismo quando pretende lançar uma política de reindustrialização nacional num ambiente profundamente globalizado e numa conjuntura em que os altamente endividados EUA revelam evidentes sinais de falta de capacidade financeira, que ele agrava com a sua verborreia e inconsequente jactância.

E é precisamente na área do investimento e da produção interna que os desejos da trumponomics podem colidir com a dura realidade depois de entre os primeiros anúncios de reacções dos países mais atingidos pelos agravamentos tarifários, a China ter respondido com tarifas de 84% às importações dos EUA e Trump ter reagido com a aplicação de tarifas de 104% contra aquele país asiático, logo respondido por este a carregar nas tarifas até aos 125%. Este clima de parada e resposta originou fortes quebras nas bolsas mundiais, com as bolsas dos EUA a fecharem, no início de Abril, a pior semana de perdas desde Março de 2020 e a uma reacção do poder económico-financeiro que terá induzido alguma contenção na administração norte-americana que levou Trump a anunciar uma pausa de 90 dias para os países que quisessem negociar e a agravar as tarifas à China para 125% e mais tarde corrigida para os 145%.

Esta aparente pausa na escalada das tarifas alfandegárias ocorreu depois de conhecida a notícia que a China tinha avançado com artilharia pesada e estava a vender 50 mil milhões de dívida dos EUA e da consequente corrida à venda de dívida pública norte-americana de longo prazo (10 anos e mais).

Deslocando a “guerra” do campo comercial para o financeiro, os chineses estão a visar o ponto fraco de uma economia altamente endividada e fortemente dependente de capitais externos. A China não é apenas o segundo maior credor de dívida norte-americana (o primeiro é o Japão), é talvez a única economia capaz de enfrentar a política de intimidação posta em prática pela Casa Branca, do mesmo modo que o Império do Meio não é apenas o principal produtor e exportador mundial de bens, mas também a segunda maior economia e a potência que revela maior capacidade para formular alternativas e aplicar estratégias de longo prazo.

Ao aumentar a pressão para a venda de títulos de dívida dos EUA (e com reconhecida capacidade para o continuar a fazer, pois os referidos 50 mil milhões de dólares representarão apenas cerca de 6% da sua carteira daquela dívida), a China forçou a queda do preço e a reação dos mercados foi imediata, com os juros dos títulos a 10 anos do Tesouro norte-americano a dispararem para valores que quase anularam a queda registada após os tonitruantes anúncios da nova política tarifária norte-americana, dando início a uma subida geral dos juros que deve ser a última coisa que os americanos desejarão num momento em que se apresentam altamente endividados e pretendem relançar o investimento na sua economia.

Além do efeito prático já referido, a reacção chinesa apresenta ainda outra virtude: a de mostrar que os fanfarrões devem ser enfrentados, não com as melífluas cortesias imediatamente respondidas com a habitual boçalidade de Trump, mas com respostas cirurgicamente orientadas para os seus pontos mais fracos. A propósito, já se interrogaram sobre a razão das tarifas se aplicarem apenas aos bens importados e não incluírem os serviços?

Sendo os EUA grandes exportadores de serviços não será a altura da resposta apontar precisamente aos magnatas de Wall Street e de Silicon Valley e grandes apoiantes de Trump? Ensaie-se a resposta mediante a aplicação de fortes restrições ao Google ou à Amazon, obrigue-se a Meta (Facebook e WhatsApp) e a X (antigo Twitter) a alojar a informação europeia em servidores na Europa e veja-se qual será a reacção.

Porém, não é nada disso ao que temos assistido e enquanto alguns se perfilam para negociar as tarifas com Donald Trump, os tristes líderes europeus ainda andam à procura de resposta comum; não se estranhe pois que ao nível do nosso pequeno país pouco mais se tenha ouvido que uma intenção do governo de preparar um apoio de mais de 2.000 milhões para mitigar as tarifas que inclui o reforço de linhas de crédito à exportação e de seguros de crédito, bem como apoios à diversificação de mercados, competitividade e inovação, não faltando sequer o oportunismo da AIP que já veio propor apoios à tesouraria das empresas e ao investimento directo nos EUA, que é precisamente o que em caso algum deverá merecer apoio público. Se as empresas quiserem acomodar a chantagem de Donald Trump deverão fazê-lo com os seus próprios recursos e assumir a totalidade dos riscos, naturalmente acrescidos pela instabilidade económica gerada.

Recorrendo a um modus operandi que há muito lhe é reconhecido (e louvado pelos seus seguidores), Trump tem “disparado” em todas as direções – começou por impor tarifas aos vizinhos México e Canadá para depois as generalizar a todos os parceiros económicos – e afirmado tudo e o seu contrário, procurando aterrorizar tudo em redor para depois recuar e se afirmar como o “salvador” do Mundo. O problema é que desta vez o arruaceiro terá escolhido uma “vítima” menos complacente e dotada de vontade e capacidade para o enfrentar.

 

Os EUA não parecem apenas perdidos… | Parte II

RJIES – Como surgiu e em que sentido poderá vir a ser revisto

O Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES), aprovado pela Lei nº 62/2007, de10 de Setembro, esteve longe de ser consensual por altura da sua aprovação, importando perceber contudo que nuns casos efectivamente modificou, noutros meramente reconduziu, regimes jurídicos relativos a áreas muito diversas. Publicado na vigência da maioria absoluta obtida por José Sócrates em 2005, e resultando a proposta de lei da iniciativa do então Ministro da Ciência e do Ensino Superior Mariano Gago, foi, não obstante, sujeita a algumas alterações na Assembleia da República.

Fazia nessa altura parte da Direcção do Sindicato Nacional do Ensino Superior (SNESup) que foi convocada pelo Ministro para uma reunião em que este apresentou a iniciativa, apesar de no seu entendimento não estar sujeita a processo de negociação. No decorrer da reunião Mariano Gago entendeu, sem que o assunto fosse levantado da nossa parte(i), fazer um elogio ao seu Primeiro-Ministro, por ser alguém que procurava continuar a estudar ao longo da vida. O elogiado tinha-se submetido há dias a uma entrevista televisiva (por Maria Flor Pedroso e outro jornalista) sobre as experiências académicas no seu currículo, designadamente na Universidade Independente. Pessoalmente tinha seguido a entrevista, e estava muito longe de adivinhar os posteriores desenvolvimentos com o mestrado francês. Não comentámos, nem sequer entre nós, depois da reunião, este apontamento de Gago(ii).

Por Fonte, Conteúdo restrito, https://pt.wikipedia.org/w/index.php?curid=4725637

Não posso, ainda hoje, deixar de sentir mixed feelings em relação a Mariano Gago, também por este episódio, não deixando de reconhecer que extinguiu a dita Universidade Independente e que o seu Primeiro o deixou fazer.

Dezassete anos depois, e quando se encetou finalmente um processo de revisão do RJIES que deveria ter sido, por sua expressa disposição, avaliado após decorridos cinco anos, foi curiosa a reacção que, nos meios sindicais, se veio a registar em relação à constituição de um Governo Montenegro em que as questões do Ensino Superior ficavam confiadas ao Ministério da Educação. A circunstância de o Ministro Fernando Alexandre ser professor do ensino superior foi implicitamente desvalorizada – o homem era economista e nem sequer era catedrático! Ao menos poderia ter um Secretário de Estado do Ensino Superior …

Afinal veio a perceber-se que tinha algumas ideias sobre o RJIES e acabou por entregar na Assembleia da República uma proposta de lei de revisão que tem sido pouco comentada, talvez por, um tanto surpreendentemente, ser muito extensa. Essa extensão decorre em parte de se pretender com a lei mudar a designação das “instituições de ensino superior” para “instituições de educação superior”, alteração essa extensiva à designação do diploma e de alguns dos organismos existentes no subsistema. Se a iniciativa passar duvido que volte a existir uma Secretaria de Estado do Ensino Superior. Mas também porque o texto ficou também a integrar algumas formulações indesejáveis em termos laborais, repescando normas que permitem contratações precárias desde que suportadas por receitas próprias, sendo que este aspecto que parece estar a passar despercebido às próprias associações sindicais.

No que segue analisarei a origem de algumas soluções do actual RJIES, na linha do que já havia sido feito por mim aqui no Jornal Tornado, no artigo, publicado em 25 de Janeiro de 2013, Da Reforma Veiga Simão ao RJIES, e, antes disso, no artigo publicado em 10 de Fevereiro de 2021, O Governo das Universidades e o RJIES, e anotarei brevemente as alterações propostas pelo governo agora demitido / candidato à recondução.

 

Ordenamento

Em matéria de ordenamento Mariano Gago fez do RJIES uma fortaleza do chamado sistema binário, procurando diferenciar universidades e politécnicos, e prevenindo o risco do chamado academic drift por parte destes últimos, mesmo que fosse necessário criar elementos de diferenciação artificiais, como a concessão do título (“profissional”, não “académico”) de especialista pelos Politécnicos, o que aliás levou a complicações com as Ordens Profissionais, e a redenominação dos conselhos científicos dos Politécnicos como “técnico-científicos”. Também procurou delimitar e condicionar a investigação científica feita nos Politécnicos(iii).

Pessoalmente, defendo, e não de hoje, que as Universidades também deveriam poder atribuir títulos profissionais de especialista, e que estes deveriam ser sujeitos a revalidação.

Do mesmo modo, embora sem reverter as situações já existentes, procurou impedir que as Universidades viessem, por fusão, a integrar unidades do subsistema politécnico, como António Nóvoa tinha pretendido ao propor a fusão da Universidade de Lisboa, do Instituto Politécnico de Lisboa e da Escola Superior de Enfermagem de Lisboa.

Embora mantendo a referência ao sistema binário, a proposta de lei do actual Ministro, oriundo de uma Universidade que, recordemos, engloba os dois subsistemas

  • prevê expressamente que as universidades possam incluir escolas politécnicas;
  • admite que possam existir três tipos de instituições de educação superior: institutos politécnicos, universidades politécnicas e universidades, sendo que os institutos politécnicos poderão ser convertidos em universidades politécnicas e as universidades politécnicas em universidades.

Certamente em perspectiva uma futura “corrida às promoções”.

Mantém-se a possibilidade de atribuição do título de especialista mas se bem percebo a nova configuração prevista no texto estes terão acesso ao exercício de funções docentes através de convite(iv).

 

Garantia de qualidade

Em 2006 Mariano Gago, Ministro da Ciência e do Ensino Superior publicou legislação sobre graus académicos que incorporava as preocupações do Processo de Bolonha e que a generalidade das instituições se preocupou – contra o que esperava, gostava de dizer – em adaptar os seus planos de estudos logo nas primeiras semanas. No ano seguinte, paralelamente à aprovação do RJIES consegue a criação da Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior, conhecida por A3ES que funcionará nestes quinze anos como verdadeiro órgão regulador em relação às formações das instituições do ensino superior e às qualificações dos seus corpos docentes, com uma estabilidade derivada de Alberto Amaral ter sido durante muito tempo o seu líder incontestado e de a actual liderança também ter sido recrutada no meio.

A A3ES tem sido, pelo que me é dado perceber, respeitada, ou, pelo menos, temida. Os reguladores modernos, que em vez de aplicarem aos regulados normas pre-existentes acabam por ser eles próprios a criá-las enervam os destinatários, mas também os políticos. António Costa pôs abertamente em causa a moda da regulação, e em particular a ANACOM, mesmo quando presidida por um correligionário da sua geração. Montenegro quando andou pelo país a prometer cursos de Medicina, que foram recusados pela A3ES viu-se também posto em causa.

Recentemente o regulador recusou a acreditação de cinco instituições de ensino superior privado já com largo tempo de funcionamento, incluindo o Instituto Miguel Torga, o qual, dinamizado como Instituto Superior de Serviço Social por Bissaia Barreto, nasceu no âmbito do sector público, teve como entidade titular a Junta da Província da Beira Litoral e mais tarde a Assembleia Distrital de Coimbra e foi durante largo tempo apoiado por docentes da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, estando a ser muito vocal na contestação ao encerramento.

A APESP – Associação Portuguesa do Ensino Superior Privado, associação empresarial e também patronal, veio formalizar através do seu Conselho Consultivo, presidido por Pedro Lourtie, ex-Secretário de Estado do Ensino Superior em governo socialista, uma proposta que vi logo vertida na proposta de lei assinada por Montenegro e Fernando Alexandre, segundo a qual a avaliação com vista aos processos de acreditação poderia também ser realizada

Por agências de acreditação nacionais de Estados-Membros da União Europeia, que desenvolvam atividade de avaliação dentro dos princípios adotados pelo sistema europeu de garantia de qualidade do ensino superior.   

Conheci Pedro Lourtie no processo de formação do Sindicato Nacional do Ensino Superior e respeito as suas décadas de experiência nas questões do ensino superior. No entanto este shopping de acreditações em que uma recusa da A3ES pode ser ultrapassada por recurso à agência da Croácia (à da Lituânia, à do Chipre), inspira-me alguma perplexidade. Bem basta que se tenham manipulado as conclusões de uma missão da OCDE que nos visitou quando o RJIES estava em preparação.

 

Governo das instituições

Supressão da paridade entre docentes e estudantes

A supressão, pelo RJIES, da representação paritária de docentes e estudantes nos órgãos de gestão do ensino superior decorrente do regime promovido por Sottomayor Cardia(v) poderá ser vista como uma evolução natural, ainda que seja curioso que tenha sido um dos expoentes do movimento associativo estudantil na sua época a liquidar a influência estudantil no governo das Universidades.

Em todo o caso, na altura circulava que entre os professores de Coimbra se defendia o fim da paridade, uma vez que na respectiva academia os representantes estudantis votavam em bloco, designadamente quando havia orientações aprovadas em Assembleia Magna.

Entretanto a transferência do poder para órgãos tipo Conselho Geral, com um número de lugares reduzido e em que os inicialmente eleitos cooptavam os elementos externos que passavam a existir tem criado uma percepção de restrição do funcionamento mais democrático anteriormente existente.

As alterações incluídas na proposta de lei de revisão não alteram significativamente o peso dos diversos corpos, sendo de chamar a atenção para:

  • a inesperada inclusão de uma representação de antigos alunos que não tenham ligações com as instituições(vi);
  • a não atribuição de direitos eleitorais aos docentes e investigadores que não integrem as carreiras, o que na minha leitura já decorria do actual texto do RJIES, ficando assim com menos direitos que os funcionários não-docentes.

 

O Führerprinzip ou, mais moderadamente, a supressão da colegialidade

No RJIES triunfou a atribuição de extensos poderes, inclusive o de fazer regulamentos, a reitores / presidentes de instituições e directores de unidades orgânicas quando a legislação que se consolidara logo após a Revolução de Abril criara uma uma pluralidade de órgãos, em regra de natureza e com funcionamento colegais.

Não se tratou exclusivamente de uma reforma que tenha saído, como se de uma Minerva se tratasse, da cabeça de Mariano Gago mas da consagração de um movimento que a partir da atribuição às instituições de ensino superior de autonomia estatutária, levou a consagrar nos estatutos de um certo número de escolas, designadamente da área de engenharia, a existência de um presidente geral, secundado por vice-presidentes que presidiam respectivamente aos conselhos directivo, científico e pedagógico.

Não quer isto dizer que Mariano Gago quisesse subalternizar deliberadamente os conselhos científicos, em relação aos quais para contrariar modelos de funcionamento pouco ambiciosos baseados no You’ll Scratch My Back, I’ll Scratch Yours pretendeu instituir uma representação proporcional sem ter conseguido fazer passar essa “revolução” no Parlamento, o qual preferiu remeter a definição da organização dos conselhos científicos para os estatutos das instituições.

Já tive ocasião de escrever que este reforço do peso dos reitores e presidentes se fez em prejuízo das garantias dadas na revisão dos Estatutos de Carreira Docente, as quais previam a intervenção dos órgãos científicos. A esmagadora maioria das propostas de regulamento de avaliação de desempenho não previam à partida tal intervenção, e o IST nunca a quis consagrar… a avaliação pertencia aos catedráticos…

 

Eleição ou selecção dos Reitores e Presidentes?

By Antonio Cruz/ABr – Agência Brasil [1], CC BY 3.0 br, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=1424923
O RJIES de Mariano Gago poderia conduzir a uma selecção de candidatos à liderança máxima das instituições que não se distinguisse assinalavelmente de um concurso. Todavia a memória da escolha dos líderes por eleição tem sido persistente e a apresentação de candidaturas “individuais” tem sido, creio, vista como um mero elemento folclórico.

A solução da proposta de lei não deixa de ser um compromisso: o processo de escolha abre como processo de eleição, a intervenção do Conselho Geral sobre as candidaturas apresentadas é qualificada como “selecção”, e só se o Conselho encontrar dois candidatos selecionáveis, se passa a uma eleição por eleitores de vários corpos tendo cada voto expresso uma ponderação em função do corpo – solução que foi defendida logo que o RJIES de 2007 foi aprovado. Se o Conselho Geral apenas seleciona um candidato, passa-se à eleição deste pelo próprio Conselho. Mas este compromisso, sendo essencialmente benigno, não contribuirá para uma revitalização do princípio democrático.

Deixarei para novo artigo a velha questão das fundações públicas de direito privado e das instituições de raiz genuinamente privadas. Fico em todo o caso curioso sobre se Luís Montenegro saberá mostrar em relação ao processo de revisão do RJIES o mesmo distanciamento formal que José Sócrates soube manter em relação à aprovação do texto original.

 

Notas

(i) A delegação do SNESup era constituída pelo Presidente da Direcção, Paulo Peixoto, pelo Vice-Presidente Joaquim Infante Barbosa, que sucedera durante o mandato a Eugénia Vasques, e por mim mesmo, também vice-presidente.

(ii) Também a parte do percurso académico feita no ISEL suscitava comentários a colegas professores desse Instituto.

(iii) Embora em sede de Estatuto de Carreira do Pessoal Docente do Ensino Superior Politécnico não tenha ficado consagrada qualquer inibição.

(iv) O que, julgo, aponta para impedir o futuro acesso de especialistas sem grau de doutor a posições de carreira.

(v) Que não foi aplicado às Universidades Novas quando estas saíram do regime de instalação.

(vi) Uma breve vista de olhos pelo articulado faz-me crer que me seria dado direito de voto na Universidade de Lisboa, uma vez que me licenciei na Universidade Técnica, e no ISCTE-IUL, onde fiz mestrado e doutoramento e que, se a proposta de lei fosse aprovada, passaria automaticamente a Universidade.