Antestreado em Portugal durante a “Festa do Cinema Francês” na qual recebeu o Prémio do Público, chega agora à exibição comercial “Agnus Dei – As Inocentes”, filme da realizadora francesa Anna Fontaine. Entretanto, há poucos dias a película foi distinguida na SEMINCI – Semana Internacional de Cine de Valladolid com o Prémio FIPRESCI (Crítica Internacional)
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Violações de mulheres
“Agnus Dei – As Inocentes” traz para a ribalta um tema ignorado, ou poucas vezes relevado, quando se aborda a 2ª Guerra Mundial: as violações de mulheres dos países ou territórios que estavam sob ocupação nazi, pelos vencedores e supostos salvadores.
Construída a partir de um relato de factos reais, esta é uma obra que só aparentemente é datada. Infelizmente esta é uma prática de todos os días nos conflitos que vão acontecendo um pouco por todo o mundo.
Relato de factos reais
A trama está centrada num convento polaco, em Dezembro de 1945, escasos meses após o final da guerra. A Cruz Vermelha Francesa instalada num hospital de Varsóvia continua a ocupar-se dos inúmeros feridos na contenda. É neste enquadramento que uma jovem noviça, ultrapassando as regras do convento, parte à procura de um médico que possa ajudar a resolver um caso grave que se passa com uma das freiras. Acaba por encontrar, no dito hospital, uma médica francesa que, esquecendo também as regras a que está sujeita, aceita o pedido da religiosa. Quando chega ao convento, Mathilde encontra um cenário completamente inesperado: uma das freiras está em perigo de vida por causa de uma gravidez que tem graves complicações. De seguida, a médica vem a constatar que este não é um caso isolado. São várias as freiras que estão grávidas depois de repetidas violações por soldados russos.
O drama traumático de mulheres que nunca puseram a hipótese de serem mães e que inesperadamente (e contra a sua vontade) se vêem confrontadas com essa situação, a inevitabilidade de terem que aceitar o que para elas era inaceitável, dilemas de ordem moral e religiosa, crises na manutenção da fé, tudo isto é tratado por Anne Fontaine não só com assinalável fluência narrativa mas também com grande discreção, sem efectuar qualquer tipo de julgamento.
Um tema duro tratado de forma muito digna.
“Agnus Dei – As Inocentes” é um filme que merece ser visto.
Nota: A nossa avaliação de * a *****
Entrevista com a realizadora Anne Fontaine
Publicada na publicação da SEMINCI – Semana Internacional de Cine de Valladolid
O que há, em concreto, de factos reais no argumento de “Agnus Dei – As Inocentes”?
O conhecimento que temos da história real é bastante limitado. A autêntica Mathilde (Madeleine Pauliac) morreu muito jovem, não muito tempo depois dos factos descritos no filme, e deixou apenas um diário, que nos permitiu conhecer os antecedentes necessários: enquanto esteve na Polónia, conheceu umas freiras grávidas que tinham sido violadas por soldados russos. O resto, as outras personagens e a linha narrativa, surgiu da imaginação dos escritores.
Foi necessário, então, introduzir alterações significativas na história?
Não é fácil distinguir no guião o que é fictício e o que é real. Procurámos manter-nos fiéis a um certo espírito, mais do que a factos reais dos quais não tínhamos muita informação. É verdade que acrescentámos alguns elementos que nós próprios recolhemos e construímos livremente várias relações e situações, mas não me atreveria a dizer que algo real foi drasticamente modificado, pelo menos de forma deliberada.
Que importância tem a fé em “Agnus Dei – As Inocentes”?
A noção, ou noções, da fé, é o centro de tudo. Depois de falar com muitos sacerdotes e freiras antes de começar a fazer o filme concluí o mesmo que diz a irmã Maria: “A fé traduz-se em 24 horas de dúvida e um minuto de esperança”. Esta dura realidade aplica-se tanto à fé religiosa como a qualquer outra. Mathilde também tem fé no que faz, em ajudar os que sofrem e, ainda assim, a sua fé é continuamente posta à prova pelos acontecimentos, Nem sequer a madre abadessa está convencida de ter optado pelo caminho correcto. Pensamos que devemos ser guiados pela nossa fé (em Deus ou no que seja), mas às vezes surgem situações extremas em que somos nós mesmos que temos que guiar a nossa fé.
Que papel desempenha, num sentido amplo, o conceito de sororidade (*)?
Devo confessar que não concebo esta ou qualquer outra película numa perspectiva de género. Evidentemente que temas como a violação e a gravidez são especificamente femininos. Do ponto de vista temporal estou segura que muitas histórias em torno da guerra e da violência continuam a ter lugar nos nossos dias e são prova suficiente de que este trabalho é muito mais que um drama histórico.
Por que escolheu o ponto de vista de Mathilde em lugar de, por exemplo, o de qualquer das freiras?
Embora não chegue ao ponto de dizer que Mathilde é minha irmã gémea, sinto que a minha própria visão é muito mais próxima da de uma médica francesa do que da de uma freira polaca. Para além disso, creio que a história é muito mais interessante vista na perspectiva de alguém que não é crente. Assumi que o de Mathilde seria o ponto de vista maioritariamente partilhado pelos espectadores, sejam eles crentes ou não.
(*) Nota do tradutor
Sororidade é a união e aliança entre mulheres, baseado na empatia e companheirismo, em busca de alcançar objetivos em comum.
O conceito da sororidade está fortemente presente no feminismo, sendo definido como um aspecto de dimensão ética, política e prática deste movimento de igualdade entre os géneros.
Do ponto de vista do feminismo, a sororidade consiste no não julgamento prévio entre as próprias mulheres que, na maioria das vezes, ajudam a fortalecer estereótipos preconceituosos criados por uma sociedade machista e patriarcal.
A sororidade é um dos principais alicerces do feminismo, pois sem a ideia de “irmandade” entre as mulheres, o movimento não conseguiria ganhar proporções significativas para impor as suas reivindicações.
A origem da palavra sororidade está no latim sóror, que significa “irmãs”. Este termo pode ser considerado a versão feminina da fraternidade, que se originou a partir do prefixo frater, que quer dizer “irmão”.