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Quinta-feira, Abril 25, 2024

As carpideiras de Agustina

Carlos de Matos Gomes
Carlos de Matos Gomes
Militar, investigador de história contemporânea, escritor com o pseudónimo Carlos Vale Ferraz

Imagino Agustina Bessa-Luís a ouvir a corte de carpideiras que se reuniram nas televisões a expor-lhe a vida.

Ars Moriendi, a arte de bem morrer:

O moribundo está recostado, rodeado pelos seus amigos e parentes. Seguem-se os rituais bem conhecidos. Mas sucede algo que perturba a simplicidade da cerimónia e que os assistentes não vêem; um espectáculo reservado apenas ao moribundo, que, por acréscimo, o contempla com um pouco de inquietação e muita indiferença.”

“Deus e a sua corte estão ali para constatar como o moribundo se vai comportar no momento da prova que lhe é proposta antes do seu último suspiro e que vai determinar a sua sorte na eternidade. A dita prova consiste numa última tentação. O moribundo verá a sua vida inteira tal como está contida no livro, e será tentado, tanto pelo desespero das suas faltas como pela vanglória das suas boas acções, bem como pelo amor apaixonado das coisas e dos seres. A sua atitude, no resplendor desse momento fugitivo, apagará de um só golpe todos os pecados da sua vida se afasta a tentação ou, pelo contrário, anulará todas as suas boas acções se não lhe resiste. A última prova tomou o lugar do Juízo Final”.

Imagino Agustina Bessa-Luís a ouvir a corte de carpideiras que se reuniram nas televisões a expor-lhe a vida.

Não sou e nunca fui um apreciador da obra da escritora Agustina Bessa-Luís, mas acredito na sua honestidade artística. As minhas questões quanto ao triste espectáculo da ars moriendi montado a propósito da morte física de Agustina Bessa-Luís (como escritora ela morreu com o seu último romance) são outras.

Em primeiro lugar como se constrói o mito da grande escritora? Ela comparou-se um dia (por pura provocação, acredito) na mesma nuvem de Dostoiewsk, não seria nada mau que se considerasse no circulo de Jane Austen, a do Orgulho e Preconceito, ou de Charlotte Brontë.

Às carpideiras que surgiram a derramar loas a Agustina: tenham modos, decência, sentido das proporções, do ridículo!

Não é altura para falar do vazio do mundo dos romances de Agustina. Que visão do mundo tinha? E de Portugal? Que ideia transmitiu das classes sociais em Portugal e no pequeno território geográfico e social onde viveu, a dos proprietários rurais na bacia do Douro e da burguesia indígena do import & export do Porto, parasitária da riqueza criada pelos ingleses? Nada. Escreveu uma caricatura dessa caricatura social de que a figura mais marcante é Francisco Sá Carneiro, filho de Sá Carneiro com alcunha do Saca Dinheiro, isto em os Meninos de Oiro. Aquele que julgo ser o seu romance mais próximo da análise social que os grandes romances expõem.

Mas não é de Agustina, nem da sua obra que eu queria falar no dia da sua morte física, mas do seu velório televisivo.

Pela câmara ardente passaram bandos de carpideiras da cultura. Masculinas e femininas. Falaram em uníssono da genialidade de Agustina. Onde encontraram a genialidade? Expliquem-se!

Mais fácil afirmar do que explicar. Mas dá cinco minutos de antena.

Nenhuma  das carpideiras do espectáculo fúnebre  de Agustina se lembrou de uma questão tão simples como esta: explicar o contributo de Agustina para nos revermos enquanto portugueses no nosso tempo histórico. Ela escreveu sobre a burguesia do Porto? Talvez. Mas isso também os extintos jornais «Comércio do Porto» e «Primeiro de Janeiro» escreveram. Ela teve alguma ideia da existência de uma burguesia liberal no Porto? Ou de uma burguesia reaccionária? Sim, desta ela teve. Ela abordou alguma vez a questão da liberdade em sentido lato ou restrito, ela lutou pelo voto e emancipação das mulheres, das intelectuais e das operárias, as do têxtil, as corticeiras, das casadas e das solteiras? Alguma das carpideiras de Agustina recorda uma luta social em que ela se tenha envolvido? Alguém escreveu que a escrita de Agustina era avassaladora. Nunca o senti. A linguagem de Agustina é tão avassaladora como o Mar Morto. Tudo ali flutua.

A questão, repito, não é a escrita de Agustina, é o “choro”, no sentido de cerimónia de luto, que foi e está a ser montado ao redor da sua memória. Choca-me ver escritores e intelectuais portugueses envolvidos neste coro lúgubre e vazio.

Porque não exigimos, os escritores, as carpideiras em primeiro lugar, que falem de nós, das nossas obras, enquanto estamos vivos e nos podemos explicar? Porque participamos (os que participam) nestas encenações macabras?

O governo decreta um dia de luto nacional por Agustina. Quantos portugueses saberão porque estará içada a meia haste a bandeira nacional? Quantos saberão o tema dos romances de Agustina? Que contributo deu Agustina, com a sua apregoada arte da escrita, para o fim da ditadura? Que denúncias expressou quanto a torturas e crimes? E sobre os 13 anos de guerra que consumiram uma geração, que disse Agustina? E sobre os escritores, pintores, atores censurados, presos, torturados, exilados, que disse Agustina?

O que devemos à arte de Agustina para termos, enquanto cidadãos, direito à cidadania?

Existe e é conhecida a velha questão da utilidade da arte. Eu não sou adepto da estética de Agustina. Quanto à essência da sua literatura entendo que os portugueses lhe devem pouco mais do que o respeito que merecem aqueles que retratam os seus jardins e as suas tardes de lazer.

Agustina merece-me o maior respeito enquanto pessoa e escritora. Viveu e escreveu o melhor que sabia, respeitando todos os códigos do seu grupo.

Percebo que as burguesias conservadoras portuguesas elevem Agustina enquanto sua santa intelectual, a sua Joana d’Arc. Que se esforcem por a apresentar como a prova de que a arte e os artistas não são um exclusivo dos progressistas. É a esse número de manipulação que estamos as assitir.

Choco-me com as carpideiras intelectuais que, a troco de cinco minutos de laudas nas TVs, se castram e abdicam do seu papel de livres pensadores. Um estatuto, o de críticos, inerente aos escritores e aos intelectuais, do meu ponto de vista, é claro.


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